Maria Inácia Rezola: “O 25 de Abril continua a ser um tema muito lato e, felizmente, atual”
Leonardo Negrão

Maria Inácia Rezola: “O 25 de Abril continua a ser um tema muito lato e, felizmente, atual”

Comissária para as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril falou com o DN no evento Bootcamp da Sustentabilidade, em Marvão. Passando em revista o trabalho feito, a historiadora levanta o véu sobre o que se segue e garante: para conhecer a história é preciso “ouvir as várias vozes” e interpretações dos acontecimentos.
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Enquanto comissária para estas celebrações dos 50 anos do 25 de Abril, que balanço é que faz do trabalho feito até aqui?
Não serei de certeza a melhor pessoa para fazer esse balanço. Mas na minha perspetiva tem corrido muito bem. No que diz respeito ao trabalho que a minha equipa desenvolve, que é muito exigente, acho que nos podemos sentir muito recompensados pela grande mobilização, pelo grande entusiasmo que o 25 de Abril continua a despertar. Foi comovente ver como, de Norte a Sul, todas as associações, todas as autarquias, todas as escolas quiseram participar neste momento de celebração. Outro aspeto muito interessante destas comemorações - e  sobre o qual não sou responsável - é o facto de terem sido concebidas neste arco temporal tão lato. Ou seja: começaram em 2022, quando Portugal passou a ter mais dias de democracia do que de ditadura, e vão até ao encerramento da institucionalização da ordem democrática, a 12 de dezembro de 2026, quando se vão assinalar os 50 anos das primeiras eleições autárquicas. Podemos dizer que estamos a meio caminho. A experiência até aqui foi muito positiva. Estas são matérias que toda a gente conhece. É por isso importante reavivar e, sobretudo, lançar perspetivas para novos estudos, novas reflexões e trazer para a atualidade todas estas questões: perceber como se chegou ao fim da ditadura, quem contribuiu e por que contribuiu para o fim dessa ditadura e o que é que foi o 25 de Abril e os primeiros momentos em liberdade. 

Até porque o 25 de Abril já é uma data muito estudada, mas há outros momentos da história, como por exemplo o 11 de março ou datas semelhantes que não estão tão aprofundadas, não é? Este também é um bocadinho o vosso trabalho, certo?
A partir daqui, a atividade continua tão ou mais intensa do que foi. Posso dar-lhe como exemplo os 100 anos do nascimento de Amílcar Cabral [celebrados no passado dia 12 de setembro], que é um tema incontornável para a questão da descolonização e que assinalamos [nomeadamente, com "Amílcar Cabral, uma Exposição", na sua versão itinerante, que está patente até 30 de outubro na Amadora, no Espaço Delfim Guimarães]. Teremos também a segunda parte da nossa exposição sobre o papel do Movimento das Forças Armadas (MFA) até 1982, que vai ser itinerante e que vai percorrer todo o país. Será dedicada às escolas, instituições e autarquias. Tenta explicar-se um pouco, ou melhor, lançam-se modos para as pessoas tentarem perceber como chegámos à plena democracia em 1982 e à Comunidade Económica Europeia (CEE). Vamos inaugurar, a 9 de outubro, a Exposição "Portugal, Espanha: 50 anos democracia", com um colóquio associado, onde se vai analisar a transição portuguesa e a espanhola em paralelo. Em novembro de 1975 morreu Francisco Franco, ditador espanhol, e começa uma transição muito diferente da nossa. Portanto, vamos ver pontos de contacto. Isto num espaço de um mês. Para se perceber: estamos já a preparar o próximo ano, nos 50 anos das primeiras eleições livres, a 25 de Abril de 1975. Aí, 92% dos portugueses foram votar. Queremos que esse ciclo seja um chapéu enquadrador de muitas outras iniciativas, em que não só a história de datas como o 28 de setembro de 1974 [quando alguns setores conservadores da sociedade se manifestaram em apoio a António Spínola, Presidente da República l], do 11 de março de 1975 [tentativa de golpe de Estado consequência do 28 de setembro], ou do primeiro recenseamento eleitoral, que é uma coisa fabulosa. É um processo muito pouco conhecido e fundamental para a democracia e para as eleições. Esse ciclo eleitoral permite, então, recuperar a história, mas também serve para pensarmos a democracia hoje. Estamos todos tão insatisfeitos, atribuímos tantas culpas e tanta responsabilidade ao passado e ao 25 de Abril. Mas qual é o papel que nos compete hoje nessa democracia, nos processos eleitorais e na cidadania? Finalmente, em 2026, temos a constitucionalização da nova ordem política, da democracia e o ciclo eleitoral que lhe dá vida. Não esqueçamos aqui em 2025 uma coisa muito importante - e que já começámos a assinalar nomeadamente nas redes sociais: a descolonização. Terá um grande momento no início do verão, do próximo ano. Comparando, nesta altura do ano, o processo já arrancou, já foram assinados, finalmente, os primeiros acordos e formalizam-se depois as descolonizações. Portanto, o caminho que percorremos foi longo. Mas acho que ainda há um longuíssimo caminho para percorrer e isso está a mobilizar bastante as pessoas.

Nesse período têm também iniciativas para assinalar os 50 anos da Constituição?
Sim, ainda não temos esse ciclo encerrado, mas é uma das datas-chave que têm de se assinalar. A Constituição. Depois foram as primeiras legislativas, a seguir as presidenciais, a Madeira e os Açores, isto no verão de 1976, e depois as autárquicas no fim do ano, como é evidente.

Enquanto Comissão que trabalha nesse sentido temporal mais lato, qual é o vosso papel também para dar uma perspetiva sobre outras datas que não se cinjam ao 25 de Abril, que não sejam não uma consequência direta, mas que estejam interligadas? Sejam elas antes ou depois.
Tentamos sempre assinalá-las. E posso dar-lhe um bom exemplo desta nossa associação à agência Erasmus+ e ao evento [Bootcamp da Sustentabilidade] que realizamos. Sabe qual foi a primeira pergunta que coloquei aos participantes? “Vocês acham que há alguma relação entre o 25 de Abril e a sustentabilidade?” É evidente que há. Basta pensarmos no que são as três dimensões da sustentabilidade: ambiental, social e económica. E o que é que os três Ds do programa do MFA dizem? [Democratizar, Descolonizar e Desenvolver]. Não podia ser coincidência maior. Esta questão traz-nos, como é evidente, para outros debates da atualidade, relacionados com a questão intrínseca da mensagem do 25 de Abril, e que continuam a ser muito pertinentes. A questão da habitação, por exemplo, a questão da participação cívica, a questão da qualidade de vida, e que passa pelo ambiente e por muitas outras coisas. Portanto, às vezes, muito mais, do que desenvolver atividades próprias, lançamos alertas, estamos abertos a cooperar (porque temos limitações, claro) em todas as iniciativas que nos pareçam relevantes, interessantes, e onde possamos ajudar nesse sentido. Portanto, o tema é o 25 de Abril, mas o 25 de Abril continua a ser um tema muito lato, com muitas potencialidades e, felizmente, muito atual.

Um dos debates que tem sido muito recente é a questão do 25 de Novembro, que é também uma data que está neste período em que trabalham, entre 1974 e 1976. Considera que o 25 de Novembro é uma data que merece ainda ser, não digo mais escrutinada, mas mais estudada? É uma cisão entre esquerdas, no fundo, mas parece não haver muito essa ideia.
Muito mais do que isso. E aí tocou no ponto exato. Desde o primeiro momento, quando definimos o programa - que se pode ver no nosso site -, há alguns momentos em que fomos muito restritos. Haverá três ou quatro datas em cada ano, mas estamos a assinalar muito mais, como é o caso desta iniciativa onde nos encontramos. O 25 de Novembro, incontornavelmente, está nessas datas. Não entendemos todo o processo anterior e posterior se não entendermos o 25 de Novembro. Mas também não se vai entender o 25 de Novembro se não souber o que foram, por exemplo, as primeiras eleições livres, o que foi o Verão Quente, para não recuar mais para trás. Ou seja, está a criar-se um mito e a empolar a questão do 25 de Novembro de uma forma um pouco absurda. O que é preciso é conhecer e discutir a história. E, aí, não existe uma só voz. Não é a nossa função, nem de nenhuma instituição, muito menos de um académico, dizer que há uma única versão sobre os acontecimentos. Esta é a hora de ouvir as várias vozes, colocar as várias interpretações sobre a mesa. Só assim se vai compreender o que foi a construção da democracia.

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