Manuel Alegre: “As reparações históricas são uma coisa absurda, porque a História não se rebobina, não anda para trás”
Reinaldo Rodrigues / Global Imagens

Manuel Alegre: “As reparações históricas são uma coisa absurda, porque a História não se rebobina, não anda para trás”

Opositor da ditadura, histórico do PS, grande nome da poesia portuguesa, Manuel Alegre fala da ideia de pátria, da História de Portugal, do papel da língua e dos afetos para a relação dos portugueses com o mundo. E não poupa elogios a outro poeta, Camões, que nasceu faz 500 anos, e amanhã inspira o Dia de Portugal.
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No seu Memórias Minhas, agora publicado a coincidir com os 50 anos do 25 de Abril,  conta o seu  regresso a Portugal, depois do exílio…
É, 2 de maio.

E a seguir vai a Águeda, a sua cidade, onde é levado em ombros até à casa dos seus pais. Como se recorda desse dia? Não foi só o voltar do exílio, foi o voltar com essa felicidade toda da liberdade reconquistada no país e ser levado em ombros à casa dos pais. Que memória guarda?
Tenho memória desse dia, é um dia inesquecível. Primeiro é o voltar do exílio, é voltar à pátria, poder abraçar a família, os amigos, sentir que se está na sua própria terra, que se está no sítio, no chão. Depois a ida a Águeda, que não foi no mesmo dia, foi dois ou três dias depois. Uma coisa apoteótica, que me deixou esfrangalhado por dentro, porque estava uma multidão, estava a gente toda na rua, as colchas nas janelas. Levaram-me aos ombros. Depois, havia um encontro com uma pessoa muito conhecida em Águeda - e foi das coisas que mais me comoveu na vida: o Manuel Barbosa, um homem que tinha um chapéu que nunca tirava, a malta dizia que ele não tirava o chapéu, nem para dormir. Ele chega-se ao pé de mim e faz este gesto, tira o chapéu, leva o chapéu aqui abaixo e diz: “Ó meu menino.” Então foi aí que eu comecei a chorar, comoveu-me esse gesto, porque é um gesto, como dizer, de reconhecimento, pá. Mas nunca se volta completamente do exílio, sabe? O Garrett diz isso muito bem, quando fala dos liberais, do exílio dos liberais em Londres. Há uma parte de nós que fica e depois já não é como era. E há uma parte de nós, também, que nunca volta. Há um encontro e há um desencontro no regresso do exílio. O tempo passou. Mesmo os nossos mais próximos foram vivendo a vida deles e nós éramos uma saudade que estava longe, mas é diferente do que estar a viver o dia a dia. Há muitas coisas que não se partilharam com a proximidade normal, não é?

Falou de regresso emotivo à pátria. Quando estava no exílio, como é que fazia a distinção entre uma pátria que amava, que ama, e um regime que detestava, a ditadura de Salazar e, depois, de Marcelo Caetano? Como é que se consegue fazer essa diferença entre o que é o país e o que é o regime? 
Para mim era muito simples. Eles, para mim, não representavam a pátria. Eram usurpadores. Não saíram de eleições livres. Saíram de um golpe de Estado, saíram de um ato de força, mantinham-se no poder pela força. Não faziam eleições, não consultavam o povo. Portanto, para mim, eles eram usurpadores. Usurpadores da pátria. A pátria, para mim, era outra coisa. Não eles.

O seu filho mais velho, Francisco, nasce em Argel muito perto do 25 de Abril. À medida que os seus filhos vão crescendo, e embora já não esteja no exílio, transmitir esse amor à pátria foi algo sempre presente na educação?
Sempre. É uma coisa permanente em mim. A minha grande causa foi Portugal, sempre. A minha grande causa foi Portugal. Portugal no seu passado e no seu devir. E no seu presente. Mas às vezes é-me difícil suportar os presentes de Portugal sem pensar em Portugal no seu passado e no seu devir. Na sua perspetiva histórica.

O Manuel Alegre é um homem que combateu em Angola…
Combati.

Depois é um homem que convive de perto com os líderes dos movimentos de libertação africanos, no exílio  na Argélia. Mas é um homem também que não tem vergonha  da História de Portugal e que acha que - e neste último livro até fala muito disso -, findo o Império  Colonial, é preciso aproveitar essa história para reinventar algo.
Eu não peço desculpa pela História de Portugal. Assumo a história com as suas grandezas e as suas misérias, que também tem, como todos os países. Eu não vou pedir desculpa pelo Bartolomeu Dias, nem pelo Vasco da Gama, nem pelo Camões, nem pelos grandes movimentos que colocaram Portugal na vanguarda da História. Portugal é o primeiro país que leva a Europa para fora da Europa. Que leva a Europa ao encontro de outros povos e de outros continentes. É o país do ver, claramente visto, como diz Camões. É o país que deita por terra, com o saber de experiência feita, o saber fantasioso das escrituras e dos livros que, até aí, formavam a cultura europeia. E, com isso, contribui para o Renascimento europeu. As navegações portuguesas, o encontro com outros povos, com outras culturas, o ver, claramente visto, o saber de experiência feito, é uma coisa que faz parte da Europa. E que contribuiu para o Renascimento europeu e que faz parte hoje da cultura europeia, no seu todo.

Quando diz que não pede desculpa pela História de Portugal, por exemplo, quando se fala desta ideia de reparações históricas, que percorre um pouco a Europa, para si é uma boa ideia, uma ideia a debater ou uma má ideia?
As reparações históricas, eu acho que isso é uma coisa absurda, não têm sentido, porque a História não se rebobina, não anda para trás. Que por certas coisas se peça desculpa, que nós possamos pedir desculpa pela escravatura, que é um lado negro da nossa História, muito bem.

Desse seu contacto em Argel, com figuras como Agostinho Neto, como Amílcar Cabral, como é que estes líderes rebeldes olhavam para a história dos portugueses? Eles sentiam que Portugal, mesmo sendo o colonizador que combatiam, era um país que lhes dava também uma parte da identidade nacional?
Eles tinham-se formado aqui em Portugal, esses dois. Portanto, tinham sido marcados também pela nossa cultura e pela vivência aqui. E o Amílcar Cabral citava Camões aos seus guerrilheiros. E citava algumas datas históricas de Portugal, como por exemplo o 5 de Outubro. Celebravam isso. E o Agostinho Neto a mesma coisa. Eram homens cultos, homens que conheciam bem a História de Portugal, embora se sentissem colonizados e sentissem o dever de libertar os seus países e os seus povos, que tinham sido escravizados e tinham sido colonizados por Portugal. Mas faziam uma distinção entre o que era o colonialismo português e o que era o povo português, e até a História de Portugal. Eu, numa entrevista que fiz ao Amílcar Cabral, ouvi-lhe dizer, não é mentira não, os portugueses deram, de facto, novos mundos ao mundo e o que se está a passar agora é uma coisa que corta os laços que entre nós se estabeleceram. A guerra está a desunir aquilo que nos uniu.

Então, e falando do que se pôde reconstruir a seguir ao 25 de Abril, o que se reconstruiu nestes 50 anos e no que vem a seguir, é sobretudo a língua portuguesa que pode ser esse cimento entre os povos que, de alguma forma, estiveram ligados à História de Portugal?
É a língua e os afetos, não é? Em que os afetos por vezes são complicados porque o amor mistura-se com o rancor. Misturam-se as duas coisas. Mas o que nós conseguimos, em 50 anos, foi resguardar a língua portuguesa e ter a língua espalhada por várias pátrias. Pátrias que a escolheram. Ninguém lhes impôs a língua. Escolheram-na. Escolheram-na como instrumento da sua própria unidade nacional. Porque muitos daqueles países africanos têm várias línguas, têm várias tribos, têm várias etnias. Portanto, escolheram o português como instrumento da sua unidade nacional. Por exemplo, com  Angola são relações complicadas, mas muito afetivas, porque muitos angolanos têm uma ligação profunda a Portugal. Aos clubes de futebol, por exemplo. Eu estava, uma vez, em Angola a fazer uma conferência sobre literatura e ouvia-se muitos gritos, muitas ovações, e era o Benfica que estava a jogar com o Porto, e o Benfica estava a ganhar. Também há adeptos do Porto, não é só do Benfica e do Sporting. E da seleção nacional. Quando joga a seleção portuguesa, eles vão ver e torcem por Portugal.

São os tais afetos que se mantêm.
São os afetos que se mantêm. O Neto era casado com uma portuguesa. O Amílcar Cabral foi casado com uma portuguesa. Andaram aqui na escola, andaram aqui na universidade. São afetos que se mantêm. Depois, com a juventude, já é um bocado diferente. Foram formatados no anticolonialismo. Sempre que as coisas estão mal, lá vem Portugal fazer de bode expiatório. Mas Portugal não tem culpa de certas coisas que correm mal noutros países. Têm de olhar para si próprios, não só para Portugal. Portugal tem culpa do colonialismo, tem culpa da escravatura, dos erros que cometeu no colonialismo, na própria guerra, mas não tem culpa dos erros que eles cometem, depois, em relação a si próprios.

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Há poucos dias, a presidente do Instituto Camões esteve em Timor-Leste e Ramos-Horta fez-lhe um grande apelo a um investimento na língua portuguesa. É essa uma das prioridades que o Estado português devia ter? Promover a língua, talvez em aliança com o Brasil?
As alianças com o Brasil são complicadas. O Brasil, de todos estes países que falam português, é talvez o mais afastado de nós. Pelo menos, ao nível do Estado, ao nível do Ministério dos Negócios Estrangeiros, tem uma política mais autónoma. Também porque o colonialismo português, quando lhes deu a independência, foi por causa da Revolução liberal cá. Alguns agora descobrem lutas anticolonialistas que nunca se travaram propriamente no Brasil.

Mas é o gigante lusófono, mais de 200 milhões de falantes...
Claro, não há projeto lusófono sem pensar no Brasil. Mas as relações com o Brasil, desse ponto de vista, são mais complexas, porque o Brasil, por ter 200 milhões de habitantes e por ter a dimensão que tem, também tem as suas pretensões à liderança. À liderança e, por vezes, a renegar a pátria-mãe. As relações são mais fáceis com Cabo Verde, que é uma maravilha. Com Timor. Em Timor devia-se investir muito, porque a língua portuguesa não está tão divulgada em Timor como está noutros países. Por exemplo, em Angola, se ouvir na rádio, às vezes, quando há eleições, jovens a falar, vê que falam melhor do que os nossos jovens aqui. Falam com as sílabas todas, falam impecavelmente.

O português está a tornar-se mesmo a língua nacional de Angola.
Uma língua nacional. Falam um português impecável. E as mulheres, as mulheres do povo, a gente do povo, fala melhor que muita gente aqui de certas regiões de Portugal, ou de certas condições, ou mesmo melhor do que os nossos jovens estudantes, que falam hoje um português muito reduzido.

Esta ideia de festejarmos o Dia Nacional celebrando um poeta, há muita gente que diz que isto define Portugal. Acha que é mesmo assim, importante homenagear Camões, e em 2024 até faz 500 anos do seu nascimento?
Eu acho que é, porque nos outros países os símbolos nacionais são guerreiros, ou santos, ou heróis, ou vencedores de batalhas, etc. Nós celebramos um poeta, que simboliza, um bocado, a grande peregrinação portuguesa, porque o próprio Camões foi poeta e soldado. Ele viajou o seu poema antes de o escrever. Ele foi parar à Índia, andou por Macau, depois esteve na Ilha de Moçambique, onde acabou porventura Os Lusíadas, e onde lhe roubaram o poema O Parnaso, que nunca mais foi encontrado. Mas ele viajou a sua história, e foi poeta e foi soldado.

É o primeiro poeta que realmente conhece o mundo. 
E é o primeiro grande poeta europeu que vai também ao encontro de outros povos e de outras culturas. Para além da cultura extraordinária que ele tem, porque sem a cultura que ele tem não se pode escrever Os Lusíadas, Camões conhecia os gregos, os latinos, conhecia isso tudo. Conhecia a geografia, conhecia aquilo que nessa altura se sabia mesmo sobre a ordem do mundo. Ele viaja o poema, e adquire conhecimento com esses contactos. É o primeiro poeta europeu que vai realmente ao encontro do mundo, das sete partidas no mundo. E isso dá-lhe uma dimensão verdadeiramente universal. Outra coisa ainda, é que os heróis de Os Lusíadas, ao contrário dos heróis de Homero e de Virgílio, não são heróis fictícios, nem inventados. Os heróis de Os Lusíadas são heróis de carne e osso. É o povo. É Vasco da Gama, mas é o povo. É o povo português.

Há um poema de Camões que elogia a beleza da mulher negra, que é extraordinário para a época.
A Bárbara cativa. Endechas a Bárbara… 
Pretos os cabelos/ onde o povo vão/ perde opinião/ que os louros são belos.

Quando, na altura, na Europa, toda a beleza se resume ao louro...
Há quem diga que o seu soneto mais célebre, Alma minha gentil, que me partiste  é dedicado a uma chinesa, a Dinamene, que vinha com ele e morreu no Estreito de Mekong.

E mesmo aquele lendário Jau, que vivia com ele cá,  um escravo javanês, é também alguém que ele trata num plano muito igualitário, não é? Mais como um amigo. 
Não há grandes provas de que ele tenha tido um escravo ou não. Jau ou não. Porventura teve e é muito provável que ele tenha tido. Era muito dedicado e pescava para ele em Lisboa. Ia pescar para ele no Tejo... E pedia para ele. Isso é o que diz aí... Porque, sobre Camões, sabe-se muito e sabe-se pouco. São poucos os documentos que há sobre Camões. E não se percebe por que é que se perderam os seus manuscritos. Porque 500 anos também não é tanto tempo como isso. Há manuscritos do Sá de Miranda, que é anterior, e não há de Camões. Há quem diga que eles foram parar a Espanha. Não se sabe. É um mistério.

Podemos, com sorte, ainda descobrir coisas novas sobre Camões?
Ele tinha um livro chamado Parnaso. Eu tenho esta dúvida. Ou era a lírica que ele estava a compor e, portanto, não havia aí nada especialmente novo. Era só aquilo que se sabe. Ou então era outro livro, outro poema filosófico. O livro que lhe roubaram, que se perdeu. Mas a minha dúvida é esta. Eu penso que ele, porventura, estava a juntar os poemas que tinha dispersos. As Rimas, os sonetos. E ia chamar Parnaso à sua obra lírica. Mas não há certeza sobre isso. Diogo do Couto, que foi amigo dele, que é uma grande figura das Descobertas, é que fala dele em Moçambique, que o encontrou pobre e miseravelmente vestido. Terminando as suas Lusíadas, como ele diz, e compondo um poema chamado Parnaso, que depois lhe roubaram. Diogo do Couto é um dos testemunhos válidos porque fala de Camões. Fala de Camões e dá testemunho pessoal sobre o Camões.

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Há uns anos houve um programa de televisão que era para eleger os grandes portugueses. As pessoas votavam à distância. Foi muito marcado por uma disputa ideológica entre os apoiantes de Salazar e os de Álvaro Cunhal. Em terceiro lugar ficou outra figura do século XX, Aristides de Sousa Mendes, em quarto ficou D. Afonso Henriques e em quinto Camões. Se esquecermos estas partes mais políticas, o despique Salazar versus  Cunhal, um poeta ficar em quinto lugar numa escolha dos maiores de uma nação quer dizer algo sobre a sua popularidade.
Eu não dei uma grande importância a isso. Não foi eleito pelo povo. Não são eleições. Era um concurso.

Sim, mas de qualquer forma é um reconhecimento de que Camões é uma figura popular.
É uma figura popular. Claro que é uma figura popular. Até nos ditos populares. O Torga, quando fala do Camões, diz que uma vez numa feira viu o Camões transformado num assobio. Aqueles assobios de barro, que as pessoas compravam, eram a figura do Camões.

E aquela expressão vai chatear o Camões também é muito popular. 
E outra, Camões, o poeta zarolho, o poeta português, via mais por um só olho do que nós por todos os três. Ou seja, tem essa dimensão popular... É popular. Mesmo as pessoas que não sabem os versos dele, ou que nunca leram, sabem dele. Quer dizer, entrou no povo, como entrou a Amália, como entrou o Eusébio. Ora, é outra dimensão, porque escreveu Os Lusíadas... As pessoas sabem que Os Lusíadas é o livro sagrado dos portugueses. É um livro onde está a nossa identidade, onde está inclusivamente a nossa história.

Se não fôssemos nós portugueses a olhar para Os Lusíadas, mesmo assim, é um grande livro da História da Humanidade?
Os Lusíadas foram traduzidíssimos. Através dos séculos, foram traduzidíssimos. E em relação às Rimas, há uma coisa muito curiosa na 1.ª edição das Rimas, organizada pelo Soropita e pelo Estêvão Lopes. A gente nem se lembra do que lhes deve. Eles organizaram as Rimas, os sonetos e tal, dois anos depois tinha esgotado a 1.ª edição. E já Portugal era um país ocupado. Já Portugal era um país ocupado. E isto é extraordinário para a época, que uma edição daquelas tivesse esgotado e já fossem fazer a 2.ª e a 3.ª edição. Quer dizer que as pessoas, para além dos sentimentos, etc., reconheciam-se naquela linguagem poética e naquela língua. Era uma forma de preservarem a sua identidade e a sua língua.

Esta ideia de batizar o futuro aeroporto de Lisboa de Camões, é uma boa forma de homenagear o poeta?
Bom, ele é o máximo símbolo nacional. Eu sou um devoto de Camões, portanto não vou pôr isso em causa. Mas Camões não precisa de ser o nome do aeroporto. Camões é Camões. Camões está identificado em cada um dos seus sonetos, em cada um dos seus versos e n’Os Lusíadas. Esses é que são os grandes monumentos onde está o nome de Camões.

O Manuel Alegre tem essa devoção especial a Camões. Tem, inclusive, um livro que são poemas dedicados a Camões. 
Sim. Vinte poemas para Camões.

Para um poeta como o Manuel Alegre, Camões é o modelo? Como é a relação de um poeta com um poeta com Camões?
É aquele a quem nós devemos a nossa linguagem poética. O Eugénio de Andrade contava isso. Perguntaram-lhe qual é o poeta mais atual. Ele disse, são os sonetos de Camões escolhidos por mim. Claro, os escolhidos por ele poderiam ser os escolhidos por mim ou os escolhidos por si. E ele fez o livro. E a gente lê aquilo e ali está a fundação de uma nova linguagem poética. Mário Cesariny dizia que o português que nós falamos e escrevemos é o português que Camões escrevia. No essencial, o português que Camões escrevia. Portanto, ele funda não só uma nova linguagem poética, que é das mais belas de qualquer língua e de qualquer literatura, como consolida a língua portuguesa. E acho que todos os poetas têm de ser gratos a Camões. Todos, mesmo aqueles que querem fugir de Camões. São devedores de Camões. Camões é o pai da poesia portuguesa.

Falou muito do papel da língua na construção desta nova comunidade de afetos. Mas, ao mesmo tempo, Portugal também é muito hoje um país de destino  europeu. Foi um fruto da descolonização voltarmos a olhar para a Europa e o Manuel Alegre, no seu livro de Memórias  diz que sempre apoiou Mário Soares nesse projeto europeu para consolidar a democracia. É possível conciliar sermos um país europeu e mantermos esta ligação de afetos ao resto do mundo?
Mas uma das características da cultura europeia é a sua abertura ao mundo. Não foi só Portugal, embora Portugal tenha sido o primeiro a levar a Europa para fora do mundo. Uma das características da cultura europeia é a abertura ao mundo. Desde as viagens de Marco Polo, dos ingleses, dos franceses, dos espanhóis, não esquecer os espanhóis. Uma viagem extraordinária, provavelmente a mais extraordinária que jamais se fez, é a viagem do Magalhães. Que dá a volta ao mundo. Nós somos um pequeno país com uma grande História. Já fomos uma grande potência, mas hoje não somos nem uma potência económica, nem uma potência militar. Somos uma potência histórica. Temos História. E, portanto, mesmo nós na Europa, nunca podemos esquecer esta nossa dimensão atlântica, euro-atlântica. Não podemos esquecer isso. Seremos tanto mais valorizados na Europa, quanto mais perto de nós tivermos essa dimensão. E nos países da lusofonia.

Como é que vê esta nova vaga migratória? Acha que Portugal deveria, de alguma forma, ter uma atenção especial aos imigrantes dos países de língua portuguesa?
Seria o desejável. O desejável, porque temos essa comunidade de afetos e de língua, etc. Mas nós temos de ser, sobretudo, um país de acolhimento. Não podemos ter uma atitude repressiva. Nós somos um país de emigrantes. Eu vivi essa epopeia do avesso. Foi chegar a Nanterre, Champigny, Aubervilliers, etc., e ver ali os filhos dos antigos navegadores, os filhos dos descobridores. Ali, assim, emigrados, a fazerem os trabalhos que mais ninguém queria fazer. Hoje não, as novas gerações estão integradas, etc. Mas nós somos um país de emigrantes que foi acolhido pela França e foi acolhido por outros países. Para além daqueles que fugiram da polícia política, para além daqueles que não foram para a guerra, e se refugiaram em vários países europeus. Portanto, nós temos de ter essa noção de que ajudámos a fazer outros países, mas fomos acolhidos por eles. E Portugal precisa também de imigrantes. Portugal tem um problema demográfico. Precisa de imigrantes. E deve ter, de acordo com a sua História, uma atitude acolhedora. Embora com regras. Só que essas regras não devem ser regras repressivas, nem regras de seleção de etnias, nem nada que se pareça com isso.

Manuel Alegre, vou ter de fazer uma última pergunta que é um bocadinho provocatória. Porque fala disso nas suas Memórias, que é quando recebeu o Prémio Camões em 2017. Na altura dá uma entrevista ao DN em que diz qualquer coisa como “já era tempo”.
Já não era sem tempo.

Apesar de tudo isso, de ser tardio, o Prémio Camões foi uma alegria, um reconhecimento?
Foi uma grande alegria. Foi uma alegria. E uma honra. Foi mesmo do ponto de vista literário uma das alegrias maiores que eu recebi.

Manuel Alegre, fez agora, há pouco tempo, 88 anos. Publicou Memórias Minhas. Continua a escrever todos os dias? Tem projetos para publicar? 
Tenho escrito menos agora. Coloquei muita da minha energia neste livro. E os anos vão pesando, não é? Agora estou à espera. Porque eu não escrevo de uma maneira programada. Não escrevo por obrigação. Eu acredito na inspiração. Eu tenho de ter o prazer da escrita para escrever. Eu escrevi estas memórias com um grande prazer de escrita. Se não for assim, não me sai bem.

Então há de haver essa inspiração um dia destes. 
Espero que sim.

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