Líderes históricos alertam para perigo de um sindicalismo enfraquecido
"Sabem porque é que não há mão de obra suficiente na hotelaria e na restauração? Porque pratica-se um regime de escravatura”. Adivinha quem voltou e fala assim? José Manuel Torres Couto, antigo líder da UGT (União Geral de Trabalhadores ), afastado há anos da cena mediática. Reapareceu uma vez sem exemplo, como fez questão de sublinhar, para um encontro noutros tempos improvável: ele e Manuel da Carvalho da Silva, antigo líder da CGTP. Esta semana, em Ansião, a norte do distrito de Leiria, os dois responderam ao convite de um amigo – José Miguel Medeiros, atual presidente da Assembleia Municipal, antigo deputado e secretário de Estado, que chamou para moderar a conversa o jornalista José Pedro Castanheira.
Antes que maio se acabasse, os dois recuperaram para uma pequena plateia ideais antigos do sindicalismo, memórias do 1º dia do trabalhador em liberdade, já que o pretexto era – ainda – a comemoração dos 50 anos do 25 de abril. Um dia antes, as notícias falavam noutra comemoração, a dos 50 anos da criação do salário mínimo nacional. E esse foi o mote para o momento mais empolgante da conversa, a propósito das declarações recentes da presidente da AHRESP (Associação de Hotelaria e Restauração), sobre a falta de mão-de-obra no setor.
“As pessoas trabalham 60 horas semanais. Sem horas extraordinárias e a maior parte com o salário mínimo nacional”. Torres Couto justificava assim a frase-chave da sua intervenção, perante a anuência de Carvalho da Silva. Falam hoje a uma só voz, mas nem sempre foi assim. “Houve tempos em que os dois não se sentavam sequer à mesma mesa”, lembra José Pedro Castanheira, e remete para o momento em que tudo mudou: a greve geral de 1988. Mais tarde, ambos se haveriam de cruzar em casa de Mário Soares, já sem gelo para quebrar.
Eram outros os tempos, era outro o país. A conversa gira invariavelmente em torno da crise no sindicalismo (e no associativismo). José Pedro Castanheira quer saber que causas apontam os dois oradores. Carvalho da Silva, 75 anos, agora dedicado à investigação, longe da época em que era o rosto da maior central sindical do país, ainda mais longe dos tempos de operário fabril, não tem dúvidas: “A crise do sindicalismo é a crise da democracia. A mim uma da coisas que me arrepia é alguns governantes se vangloriarem de não responderem aos sindicatos”. De resto, liga essa crise a um problema maior – de cidadania e desigualdade.
“Hoje a produção está subjugada à distribuição. Os sindicatos são postos fora. E isso dá lugar a processos inorgânicos”, lembra o antigo líder sindical. Nessa altura olha para a assistência, composta por antigos companheiros dessas lides e vários jovens, alunos de uma escola profissional da região. É para eles que fala(m), afinal. “Nós somos hoje um outro país. Discutir hoje o SNS ou a escola é saber que há novas questões; 1/5 são imigrantes. Mas o trabalho e o emprego estão sempre no centro”. Sabendo que entre 2009 e 2023 “passámos a ter mais 900 mil empregos por conta de outrem”. Ainda assim, nem tudo pula e avança. Carvalho da Silva justifica o desfasamento dos sindicatos com questões de vária ordem, desde logo “na articulação da tecnologia”. “Vão ter que se reinventar e encontrar novos caminhos”, conclui.
Torres Couto acrescenta que “sem o movimento sindical português, sem o papel que as duas centrais tiveram, as transformações sociais em Portugal não teriam tido lugar”. Tem agora 77 anos o antigo líder da UGT, divide o tempo entre Portugal e o Brasil, sem perder de vista os anos de sindicalismo forte que ajudou a implementar, logo a seguir ao 25 de abril.
“Não há democracias fortes com sindicatos fracos. Em Portugal infelizmente olha-se muitas vezes para os sindicatos como segunda ordem. E hoje a negociação coletiva em Portugal não existe. Está bloqueada”. Também ele encontra várias razões para o declínio, mas há uma que lhe merece reflexão: “Somos o país da Europa onde a maioria dos empresários tem um nível de escolaridade mais baixo que os seus trabalhadores. E isso faz muita diferença”. Também por isso se dirigiu de novo aos jovens da sala: “Quando chegarem ao mercado de trabalho filiem-de, militem nos sindicatos. Ninguém terá o futuro garantido se o movimento sindical português não tiver força”.
Dos jornaleiros aos colaboradores
Carvalho da Silva continuou a reflexão: “Hoje na escola fala-se muito pouco de profissões.O liberalismo avassalador que anda aí quer que as pessoas discutam as suas condições de trabalho com os acionistas principais dos grupos”. E lembrou o caminho feito em matéria laboral, desde o tempo em que se trabalhava “à jorna”, com “jornaleiros, em que o dia era era dividido em 4 quartos”, até à época pós-revolução, em que foi publicada num ano a maioria da legislação que trouxe, por decreto, direitos aos trabalhadores (férias, subsídios, apoio à maternidade).
“Hoje os setores mais fortes da economia portuguesa acham que não é prioritário discutir as condições do emprego dos jovens, para evitar a emigração. Nada mais errado”, lembra Carvalho da Silva. “Hoje preferem referir-se aos trabalhadores como colaboradores. Acontece que a palavra ‘colaborador’, no mundo do trabalho, não tem nenhum enquadramento jurídico”, sublinhou.
Na sala, os estudantes do secundário davam mostras de inquietação. Alguns nunca tinham ouvido falar destes conceitos, por oposição aos que estavam nas filas da frente, velhos camaradas de lutas sindicais e políticas.
“Estou ali a ver o Júlio Henriques (ex-autarca de Castanheira de Pêra e governador civil de Leiria) e isso faz-me lembrar de Kalidás Barreto, fundador da CGTP, e das lutas no setor têxtil aqui nesta região”, atira Torres Couto. “Há 38 anos, ia eu a passar aqui, com o Rui Vieira, e avistámos um fogo enorme. E fomos nós a chamar os bombeiros”. Kalidás já cá não está, o setor têxtil definhou quase por completo naquela região, e nesse mundo em mudança só o fogo ganha terreno por ali, num interior vez mais abandonado.