José Adelino Maltez: "Costa pôs a carne toda no assador, está lá o PS inteiro, o Largo do Rato em força"
Como interpreta este novo governo com 17 ministros e paritário?
Não há dúvida nenhuma que o eleitorado ultrapassou as suas dúvidas e escolheu com clareza dar carta-branca ao primeiro-ministro Costa. Ele teve a hipótese de fazer um governo à espanhola, de coligar-se com uma das pernas ou com duas das pernas da geringonça, percebeu que a ilusão do Bloco Central não existia e agora sozinho, em diálogo direto com quem elegeu, escolheu este modelo. É um primeiro governo pós-abrilista ou pós transição de um novo ciclo que vai dar origem a outra coisa em termos de relações políticas internas.
Mas que modelo é esse?
Há três núcleos funcionais que Costa com a sua experiência escolheu. Há uma parte de ministérios clássicos, vindos do século XIX, ainda ligados ao velho governo da casa do rei, que alguns dizem de soberania: Ministério das Finanças, da Defesa, da Justiça, da Administração Interna e dos Negócios Estrangeiros. São os cinco clássicos. É o governo que vem do século XIX e que podia estar todo no Terreiro do Paço. Depois temos o governo do século XX, o que está aí nas Avenidas Novas, o governo do Estado social que vem do 25 de Abril, os das grandes políticas públicas: o dos Transportes, o da Educação, das Universidades, do Trabalho, da Saúde. Os da Praça de Londres e da concertação social. E depois, o que é o grande risco do Costa, é governo do Campo Pequeno, que vai todo para a Caixa Geral de Depósitos. O governo da Marianinha, do Costa Silva, a zona de ministros que têm uns ministérios compósitos, de altos comissários. Aqui é a zona em que se mistura o Costa Silva e a Elvira Fortunato, o governo dos planos, que no século XIX começava pelas obras públicas, comércio e indústria, da Fontes Pereira de Melo, e depois chamamos de Fomento. Esta terceira zona do governo que vai ser instalada na CGD e que tem como subcoordenadora a Marianinha é a zona de risco, a que Costa foi escolher com ministros para nos fazerem aquilo a que chamamos a engenharia de sonhos. O que fica bem representado pela Elvira Fortunato, com os seus transístores de papel, que é uma tentativa de haver um novo Mariano Gago, e o Costa Silva que tem uma personalidade curiosa e que o Costa viu na televisão e achou que encaixava neste papel, o engenheiro de sonhos típico que até é poeta, que tem os planos da pólvora. Esta é a zona que vai gerir o PRR. Depois os "homens" do Costa, o ministro da Cultura novo pode ser uma espécie de António Ferro, a Ana Catarina Mendes, devido aos programas de debate televisivo, e Duarte Cordeiro, que coordenou a campanha eleitoral, conhecem bem os modelos de comunicação ao país. Costa tem aqui um conjunto de ministérios do século XX, onde pôs a carne toda no assador, está lá o PS inteiro, o Largo do Rato em força. Fez o melhor governo da prata da casa que podia ter e alargou à sociedade civil um pedacinho. Tem sorte porque o fim da geringonça, a guerra na Ucrânia sintetizaram o núcleo de valores deste governo: europeísta, adepto da democracia pluralista e não precisa do PSD para fazer um Bloco Central para o consenso valorativo. Há condições para tudo isto funcionar.
O Presidente da República dizendo que não queria comentar o Governo acabou por sinalizar a concentração nalguns ministérios e em particular o reforço do poder do ministério da Presidência de Mariana Vieira da Silva. Foi um alerta para algum risco?
A Mariana Vieira da Silva é a número dois do Costa e disso ninguém duvide e, portanto, tem funções delegadas pelo primeiro-ministro para essa função. Nem precisam de grandes reuniões, é carregar no botão e já funciona em piloto automático. Não vejo essa telenovela da sucessão de Costa, quem for sucessor de Costa tem de ser número dois de Costa nos próximos anos.
E as tão faladas ambições de António Costa de vir a exercer um alto cargo europeu daqui a dois anos e meio, nomeadamente presidente do Conselho Europeu, irão afastá-lo do governo?
É uma das lendas e narrativas do pós Barroso, do Guterres. Estamos sempre à espera que os que se destacam na política interna terão um cargo importantíssimo no governo europeu. É uma coisa do passado e não quer dizer que volte a acontecer. Não conheço o Costa, mas neste momento e durante dois ou três anos, quando pôs a carne toda no assador, ele apostou tudo, pode correr bem ou pode correr mal. Mas colocou um dos seus melhores colaboradores, o Tiago Antunes, como secretário de Estados dos Assuntos Europeus, quando podia ser ministro, porque tem ali um papel muito importante. Isto não é um governo de viagem fácil. O principal desafio do governo é que isto é um conjunto de pessoas da esquerda dos valores, e de uma esquerda livre da geringonça. Mas tem de ter um contrato com a direita dos interesses, os patrões, com coisas bastante pragmáticas com o tecido empresarial português. E essa é uma zona que pode levar a atritos e riscos. Costa Silva pode não se dar bem neste jogo e terá de haver inversões de rumo, tal como os ministérios do Estado Social podem ter um problema gravíssimo de contestação social, podem ter de aturar greves sem fim, o ministro da TAP pode ter camionistas em protesto ou taxistas. Há aí uma série de contestações sociais que vão afetar esta segunda zona do governo. Nem há uma viagem assegurada pelo estado de graça.
Nessa viagem a relação com o Presidente da República, em segundo mandato, será complexa?
Acho que não. Como todos conhecemos, há a relação institucional - e houve coisas que correram mal - e vai depender da qualidade dos ministros, por exemplo, da Defesa para evitar aquela fissura que o governo de Costa anterior abriu com altas figuras do pensamento militar. Helena Carreiras vai ter esta tarefa imediata de recuperar a gestão da política de Defesa Nacional. Marcelo vai ser a voz tribunícia, que é o que ele gosta de ser, andar pelo país, tirar selfies e comunicar. Costa não se pode zangar porque o Presidente apoiou o governo em momentos de crise. Agora o papel do Marcelo, além dos belos discursos, vai ser de Rainha de Inglaterra e esse papel é muito importante, e se o for é bom. Não vamos pedir ao Marcelo para ser chefe da oposição.
E a oposição, nomeadamente o PSD, está paralisada neste momento...
Isto resulta da paralisia do PSD, que quase se autoextinguiu. Vamos ter duas novas forças de direita, o CDS não existe, só IL e o Chega. E o PSD, que devia representar toda esta força de oposição tem de encontrar um novo papel, o que não se faz num ano nem em dois . O PS está descansado porque tem tempo para refazer a confiança das populações e não vai pedir que Marcelo seja o chefe da oposição.