Eutanásia. Para a lei passar no TC basta mesmo só mudar uma letra?
PS espera um processo "mais rápido" para o novo texto subir a votação final global. Mas a solução para ultrapassar o chumbo do Tribunal Constitucional pode revelar-se complexa.
Sem avançar datas concretas, o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, defendeu ontem que a revisão do texto que despenaliza a morte medicamente assistida será agora "mais rápido", dado que o processo legislativo será retomado na especialidade e os socialistas vão iniciar já hoje a discussão das alterações a introduzir no articulado.
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Esta é já a terceira vez que os deputados retomam os trabalhos em torno do texto da eutanásia, alvo de dois vetos do Tribunal Constitucional (TC) e de um veto político do Presidente da República. Até agora, o trabalho do texto na especialidade (artigo a artigo) tem-se revelado sempre bastante demorado. Logo na primeira aprovação, os projetos de lei ficaram quase um ano em comissão até chegarem a votação final global. Após o primeiro chumbo do TC, em março de 2021, o texto revisto só voltou a subir a plenário em novembro do mesmo ano. E, face a novo veto no final desse mês, então pela mão de Marcelo Rebelo de Sousa, o diploma voltou a entrar em Belém mais de um ano depois, em janeiro de 2023 - uma demora que, neste último caso, se deveu em larga medida à interrupção dos trabalhos parlamentares por força das eleições legislativas. Ainda assim, o novo texto foi aprovado na generalidade em junho de 2022 e só seis meses depois, em dezembro, chegou a votação final global.
Ontem, Eurico Brilhante Dias avançou que "ainda esta semana" (será hoje) alguns membros do grupo parlamentar vão reunir "para discutir não só o acórdão, mas também as declarações de voto que estão anexas ao acórdão". Depois, o PS vai fazer "uma auscultação do próprio grupo parlamentar", para decidir as alterações legislativas que entender "pertinentes", para que o projeto de lei "possa ser votado mais uma vez no hemiciclo". Pelo caminho, como tem sucedido até aqui, o PS deverá tentar concertar alterações com os restantes partidos que têm assinado o texto único final, casos do Bloco de Esquerda, Iniciativa Liberal e PAN.
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Uma questão de "e" ou "ou"?
Mas as alterações ao documento, para suprir as inconstitucionalidades apontadas pelos juízes do TC, poderão não ser tão simples como parece à partida. Recorde-se que o TC declarou a inconstitucionalidade de uma norma que, ao estabelecer "o sofrimento físico, psicológico e espiritual" como condição para aceder à morte medicamente assistida, deixa uma "intolerável indefinição" sobre se estes requisitos são cumulativos ou alternativos. Numa primeira reação, o PS chamou-lhe uma questão "semântica", mas a solução poderá revelar-se mais complexa do que optar pela conjunção "e" (ou seja, os requisitos são cumulativos) ou "ou" (os requisitos são alternativos).
Filipe Neto Brandão, jurista que preside à comissão parlamentar de Orçamento e Finanças, já veio advertir que a questão não é simples. "Lido integralmente o acórdão sobre as condições de não punibilidade da morte medicamente assistida, e, sobretudo, as várias declarações de voto que o integram, equivocar-se-á certamente quem pensar que a mera aposição da conjunção "e" no texto será, por si só, suscetível de assegurar um futuro juízo de conformidade constitucional de um novo decreto da AR", escreveu no Facebook o parlamentar do PS (que o DN tentou contactar, sem sucesso).
A advertência para a dificuldade de dar resposta ao juízo do TC de desconformidade com a Constituição está, aliás, expressa numa das declarações de voto ao acórdão, subscrita por quatro juízes que votaram contra a declaração de inconstitucionalidade - Mariana Canotilho, António Ascensão Ramos, Assunção Raimundo e José Eduardo Figueiredo Dias. "O problema central desta fundamentação é que esta questão é irresolúvel. O conceito de sofrimento - por natureza, um estado holístico, com dimensões distintas, interrelacionadas e complementares - dificilmente se presta a uma definição cabal, em sede legislativa", escrevem os juízes, apontando um "standard de controlo que não se pode cumprir sem risco de abrir espaço a novas e distintas críticas à lei, numa espiral infinita de objeções possíveis". A declaração de voto sublinha que "prescindindo dos adjetivos, persistirá a dúvida sobre se qualquer das dimensões do sofrimento vale, por si só, como justificação bastante para o cumprimento do pressuposto legal de acesso à morte medicamente assistida". Já ao contrário, "exigindo expressamente a sua cumulação, cria-se uma situação de discricionariedade administrativa, passível de deixar de fora um conjunto de situações que o legislador claramente quis incluir no âmbito subjetivo da lei" - as pessoas com "lesões graves e amplamente incapacitantes, mas sem dor". E, "se se substituir o atual "e" por um "ou", o legislador corre o risco de se ver confrontado com a alegação de que abriu de tal maneira o leque de circunstâncias em que se pode recorrer à morte medicamente assistida que daí resulta a rotura do frágil equilíbrio entre os bens jusfundamentais em tensão", alertam os quatro juízes.
susete.francisco@dn.pt
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