Drones. Força Aérea fez outro ajuste direto com empresa que falhou todos os prazos no verão
O sistema de drones que a Força Aérea Portuguesa (FAP) adquiriu para apoiar a prevenção e combate aos incêndios no verão passado - cujos prazos de entrega falharam todos - foram testados no ano anterior pela própria FAP, num contrato de aluguer por ajuste direto à mesma empresa.
Dos 12 drones, financiados pelo Fundo Ambiental, apenas quatro ficaram operacionais a tempo do Dispositivo Especial de Combate aos Incêndios Rurais (DECIR) de 2020, tendo dois deles sofrido quedas graves.
No mesmo dia, 16 de dezembro último, em que o ministro admitia à Comissão de Defesa, na Assembleia da República, que relativamente à utilização de drones, "nem tudo correu na perfeição" mas que estava satisfeito "com o trabalho desenvolvido pela Força Aérea a este respeito", era publicado no portal Base (onde são registados os contratos públicos) um contrato feito 531 dias antes (a 5 de julho de 2019), por ajuste direto, entre a FAP e a empresa que veio a escolher oito meses depois para fornecer as 12 aeronaves e que, como se sabe, não foram entregues nas datas previstas, em total incumprimento do contrato.
O contrato de 2019, consultado pelo DN, visou o aluguer por 87 dias "de sistemas aéreos não tripulados para avaliação operacional" e o ajuste direto, no valor de 143 900 euros (176 997, com o IVA), foi justificado pela "necessidade de avaliação operacional de UAS para o cumprimento de missões no âmbito de incêndios florestais".
No entanto, a FAP noticiou esta ação, não como um teste a novos equipamentos, mas como uma operação real. Com ampla divulgação na comunicação social da altura, a FAP anunciou que "durante a operação, foram cumpridas 48 missões de vigilância e reconhecimento, bem como 25 missões de teste, treino e manutenção, num total de 237 horas de voo, das quais 197 horas em ações de vigilância.
Quer o valor em causa, quer o objeto do contrato suscita reservas a peritos em contratação pública, consultados pelo DN . O seu valor (143 900 euros), aponta Gonçalo Guerra Tavares, sócio da sociedade de advogados CMS Rui Pena & Arnaut, "excede o montante limite para um ajuste direto com base neste critério material, que era, à data em que foi assinado, 135 mil euros".
Este jurista, autor do livro (em coautoria com Nuno Monteiro Dente) Código dos Contratos Públicos , questiona ainda "como se poderá entender que um drone a fazer patrulhas de vigilância, está a fazer investigação, experimentação e estudos?". Salvaguarda o facto de não ter acesso ao caderno de encargos (não divulgado pela FAP) para poder realizar uma avaliação mais rigorosa.
Questionada a FAP sobre o enquadramento legal para aquele valor, não respondeu, mas sobre a discrepância entre objeto do contrato (testes) e o que foi realmente feito, responde assim: "O valor da avaliação reside precisamente no facto de se ter desenrolado em contexto real (daí o objeto do contrato consistir numa avaliação operacional), podendo-se subtrair efetivamente os requisitos de operação em missões de vigilância aérea em apoio ao combate a incêndios rurais."
Nesse sentido, completa a mesma fonte oficial, "foram estabelecidos e testados requisitos operacionais/técnicos que permitiram identificar lições no âmbito do planeamento, coordenação e execução destas operações", tendo "os resultados da avaliação operacional contribuído para a identificação de lições e experiência de operação por forma a serem replicadas nos mais diversos cenários de emprego de UAS sobre terra e sobre o mar, nacionais e internacionais, em apoio a diversas entidades".
Mas quando questionada porque não consultou outros equipamentos, tendo em conta que o objetivo era testar novos sistemas, alega que "ao longo dos anos, o Centro de Investigação da Academia da Força Aérea (CIAFA) acumulou competências de Investigação e Desenvolvimento (I&D) e experimentação de Unmanned Aircraft Systems (UAS) em conjunto com várias entidades da Base Tecnológica e Industrial de Defesa e o Sistema Científico e Tecnológico Nacional, incluindo a operação real em ambiente marítimo, em 2018 na Croácia, em parceria com a empresa UAVision, ao abrigo de contrato de prestação de serviços à Agência Europeia de Segurança Marítima".
Esta operação na Croácia, porém, não acabou bem, pois as duas aeronaves que estavam a ser utilizadas, sofreram quedas, com perda total, obrigando a antecipar o fim do contrato. Indagada sobre se, tendo em conta estes acidentes, não teria sido mais avisado experimentar outros modelos, fonte oficial deste Ramo, comandado pelo Tenente-general Joaquim Borrego, refuta.
"A razão para a perda das aeronaves na Croácia foi identificada e corrigida, não sendo por isso constrangimento para esta avaliação operacional. Note-se que durante o período da avaliação operacional (13 de junho a 21 de setembro de 2019) foram efetuadas 236 horas e 40 minutos de voo com uma única aeronave, sem qualquer anomalia registada".
O problema é que, passados mais de cinco meses do prazo definido para a entrega, com capacidade operacional total (incluindo voos noturnos e autonomia de 10 horas), a FAP continua sem ter o sistema a funcionar em pleno e reconhece que apenas metade dos 12 estão, neste momento, "aceites". De acordo com a mesma fonte oficial, a empresa que contratou já entregou "todos os drones, mas seis encontram-se em processo de aceitação".
Mas, ainda não estão a cumprir as missões previstas para o período entre outubro e maio de cada ano, definidas na Resolução de Conselho de Ministros (RCM) e no acordo firmado com o Fundo Ambiental, que financiou o investimento a 100%.
A RCM (30-4-2020), que autorizou a despesa de 4,5 milhões de euros por ajuste direto, determina que, fora da época de fogos, "no período compreendido entre outubro e maio de cada ano, a Força Aérea disponibilize aos serviços competentes da área governativa do ambiente e da ação climática 300 horas de voo para execução de tarefas que se compreendem na sua esfera de atribuições, designadamente a vigilância da orla costeira, de áreas protegidas, de pedreiras e a referenciação necessária à execução do cadastro, a concretizar mediante protocolo".
Este protocolo, a que o DN teve acesso, assinado a quatro de junho de 2020, antes do contrato de compra (três de julho), entre o Fundo Ambiental e a Força Aérea, prevê que, para as missões no âmbito das atribuições do Ambiente as três centenas de horas "sejam distribuídas" por várias entidades do Ministério "sem qualquer encargo".
O protocolo determina ainda que as 12 aeronaves devem ter uma "menção expressa ao Fundo Ambiental e ao seu logótipo" - o que, até agora, nos drones apresentados, não é visível.
Fonte oficial do ministério de José Matos Fernandes, que tutela o Fundo Ambiental, avançou ao DN que está definido um plano para a utilização dos drones "entre fevereiro e maio" de 2021, ou seja, quatro meses depois do que a RCM determinava.
"Prevê-se o desenvolvimento de cerca de 60 ações de vigilância e acompanhamento do território, abrangendo 10 pedreiras, 10 minas, cinco barragens, três cursos de água, 11 troços da orla costeira, duas infraestruturas de gestão de resíduos, três áreas florestais e 14 áreas classificadas", assinala.
O porta-voz da FAP garante que "ainda é estas horas de voo previstas". Ao que o DN apurou, desde 15 de outubro, quando caiu o último drone da FAP (dois dos quatro que estavam a voar sofreram acidentes), segundo os registos oficiais, os aparelhos têm estado a voar apenas sobre a pista da base aérea da OTA e voaram apenas cerca de meia centena de horas, em voos muito curtos (alguns com apenas sete e nove minutos), indiciando que continuam ainda em testes.
A autorização desta despesa, recorde-se, foi feita à boleia do regime excecional aprovado pelo Governo para o combate à pandemia (decreto-lei 10-A de 2020), que permitiu aos gestores públicos o ajuste direto por motivos de urgência ou a isenção de fiscalização prévia do Tribunal de Contas para contratos superiores a €350 mil (antigo limiar que vigorou até 24/07/2020) ou €750 mil (novo limiar que passou a vigorar a partir de 25/07/2020).
Desconhece-se que missões têm os drones relacionadas com o combate à pandemia. Inquirida a FAP, responde apenas que "a celebração do contrato referido ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, decorre do enquadramento e autorização conferidos pelo Governo através da RCM n.º 38-A/2020, de 30 de abril".
No entanto, frisa o Ramo, este contrato "está sujeito aos regimes de fiscalização concomitante e sucessiva do Tribunal de Contas decorrente deste regime de exceção", garantindo que "em cumprimento deste regime, a Força Aérea remeteu o contrato para o Tribunal de Contas no prazo fixado". Não indica, porém a data em que o enviou.
Questionada pelo DN sobre a análise desse contrato, fonte oficial do Tribunal de Contas, atualmente presidido pelo juiz conselheiro José Tavares, limitou-se a dizer que "não deu entrada para fiscalização prévia qualquer contrato com esse objeto", não revelando, apesar da nossa insistência, se o contrato deu ou não entrada entretanto, como afirma a FAP, para outro tipo de fiscalização.
De lembrar que o procedimento deste ajuste direto foi lançado por convite à apresentação de propostas limitado a três empresas nacionais: UAVision, Tekever e Ceiia. Apenas a UAVision apresentou uma proposta, enquanto as outras duas apresentaram conjuntamente uma declaração de protesto sobre o caderno de encargos que, no seu entender, apontava para uma "solução única", a da UAVision. Mais de 90% dos cerca de 300 requisitos eram obrigatórios e apontavam exclusivamente a solução tecnológica desta empresa.
Resta saber se a intenção de integrar estes 12 drones no sistema de forças do Estado-Maior-General das Forças Armadas se vai mesmo concretizar, tendo em conta os compromissos assumidos no protocolo entre a FAP e o Fundo Ambiental. O Ministério da Defesa não respondeu sobre em que estado este plano.