Do "caos" aos "desafios". Um debate que mostrou dois países opostos

António Costa enfrentou o seu primeiro debate do Estado da Nação desde que tem maioria absoluta tentando demonstrar que o governo não perdeu ímpeto reformista. Não se cansou de colar o novo PSD a Pedro Passos Coelho.

António Costa já reconhece. Afinal, "o efeito da inflação será mais duradouro do que previsto". Por isso, em setembro, o governo irá anunciar um novo pacote de medidas de apoio aos "rendimentos das famílias" e à "atividade das empresas".

Foi assim que o primeiro-ministro enfrentou, esta quarta-feira, no Parlamento, o primeiro debate do Estado da Nação desde que, em janeiro, o país confiou maioria absoluta ao PS.

O chefe do Executivo quis desmentir a ideia de falta de fulgor do seu governo, anunciando novidades. O tal novo programa de combate à inflação, mas também o acordo (das últimas horas) entre o Executivo e a Associação Nacional de Municípios de Portugal para completar o processo da descentralização de competências da administração central para a administração local. E ainda a garantia de que, por acordo (também dos últimos dias) entre o governo, as Misericórdias e as IPSS, avançará mesmo já no início do próximo ano letivo o programa das creches gratuitas. E ainda a renovação do programa Simplex, já hoje, para discutir e aprovar em Conselho de Ministros.

Puxou também para si os galões do crescimento económico em perspetiva: "Segundo a Comissão Europeia, Portugal será o país da UE que terá o maior, repito o maior, crescimento económico este ano; no desemprego, hoje mesmo soubemos que junho teve o melhor registo dos últimos 20 anos." E, além disso, "o investimento das empresas está em máximos históricos e estamos no bom caminho, finalmente, para - com responsabilidade social - cumprir a meta do défice e da dívida, com o objetivo de retirar Portugal da lista dos países mais endividados".

A isto, António Costa juntou ataques à nova liderança do PSD, corporizando-os no novo líder parlamentar, Joaquim Miranda Sarmento (e não sem, pelo meio, agradecer a Rui Rio, "o contributo que deu em momentos tão duros e difíceis" para o país, nomeadamente durante a pandemia).

Para o chefe do governo, o que está em causa agora, com a ascensão de Luís Montenegro à liderança do PSD, é o "regresso do passismo puro e duro", ao PSD "velho e revelho". Recordou, para isso, soluções em tempos defendidas por Miranda Sarmento, como o congelamento de prestações sociais, o regresso do IVA da restauração aos 23 por cento, uma coleta mínima obrigatória para todas as empresas sem lucros para pagar IRC e também uma outra coleta mínima de 40 euros por cada contribuinte sem rendimentos suficientes para pagar IRS. A brincar, Costa disse mesmo que, nas suas férias, já não irá só ler romances - somando às suas leituras o manual que, em tempos, o novo líder parlamentar do PSD escreveu.

Apertado pela oposição, não deixou porém de reconhecer que hoje o país está "pior" do que há um ano - mas porque, "do estado de pandemia, passámos para o estado de guerra". "Claro que há problemas", diria. Mas "a grande diferença é que, perante problemas", "a oposição fala em caos" e "o governo vê desafios". "Há muitos problemas por resolver e é, por isso, que aqui estamos."

A certa altura, respondendo a João Cotrim Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal, acrescentaria: "Acha que não pago contas do supermercado? Acha que não encho o depósito? Ó sr. deputado, eu não sou da Iniciativa Liberal! Conheço bem as necessidades dos cidadãos!"

Rutura com o BE confirmada

O debate confirmou, mais uma vez, que o tempo do diálogo entre o primeiro-ministro e a líder do BE, Catarina Martins, é definitivamente um tempo do passado que não se vislumbra como poderá ser recuperado.

A coordenadora bloquista pegou no caso do empresário Mário Ferreira (dono da Media Capital e da Douro Azul), supostamente privilegiado no acesso a fundos do PRR.

"Mário Ferreira, que é conhecido pelo escândalo [das operações] com o navio Atlântida, pelos cruzeiros no Douro, pela compra da TVI, não é só o maior beneficiário dos apoios agora conhecidos do Banco de Fomento. Ele recebe mais do que todos os outros: 40 milhões de euros de investimento público", começou por dizer. Acrescentando que lhe "foi dada prioridade" [no acesso a apoios do PRR] apesar de estar "a ser investigado a nível nacional e europeu por branqueamento de capitais e por fuga ao fisco", e isto através de uma "empresa que é administrada por um ex-assessor do primeiro-ministro, Diogo Lacerda Machado". Ou seja: "Que envolvimento teve o senhor primeiro-ministro nesta decisão?"

Na sua lacónica resposta a Catarina Martins, Costa demonstrou como parece totalmente impossível um regresso ao diálogo entre as duas partes: "Sobre a pergunta insultuosa que me dirigiu, a minha intervenção é zero. Foi zero, como muito bem a senhora deputada sabe."

À esquerda, PCP, BE e Livre tentaram sistematicamente caracterizar o governo como simplesmente estando, quanto à crise, "à espera que passe", com comunistas e bloquistas sintonizados na ideia de que este é um Executivo - nos preços dos combustíveis, por exemplo, mas também face ao SNS - subordinado aos interesses económicos.

À direita, a narrativa centrou-se na ideia de que a governação de Costa tem "estagnado" a economia. Rodrigo Saraiva, líder parlamentar da Iniciativa Liberal, sintetizou, numa frase, esta crítica, corporizando-a no próprio chefe do governo: "É omnipresente na estagnação e no desgoverno socialista, e todos estes problemas estruturais que atrasam Portugal têm a sua impressão digital".

Outras palavras que se ouviram foram "caos" (João Cotrim Figueiredo). E o PSD, através do seu novo líder parlamentar, apostou na ideia de que o governo, apesar de só ter quatro meses, está "esgotado". "O governo vive hoje de descoordenação, desorientação, incapacidade de decidir e governar e casos e "casinhos" internos. Os portugueses interrogam-se, se isto é assim ao fim de quatro meses, como será durante quatro anos?", acusou.

Já o Chega preferiu insistir na ideia - e foi o único partido a fazê-lo - de que a ministra da Saúde deveria ser demitida, aproveitando também o debate para, a propósito dos incêndios, voltar a exigir endurecimento de penas para os incendiários.

Como André Ventura salientou criticamente, Costa não escolheu nem Marta Temido (Saúde) nem Fernando Medina (Finanças) para o complementarem na intervenção governamental no debate. Preferiu antes dar a palavra a dois "jovens turcos" da governação: o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, e o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, a quem coube o encerramento do debate.

Sintonizados, ambos tentaram fazer passar a mensagem de que o ímpeto reformista do governo permanece incólume, apesar dos efeitos da guerra na Ucrânia e das crises de coesão interna no Executivo (que, de resto, foram pouco exploradas pela oposição).

"Os portugueses podem contar que o governo, durante estes quatro anos, vai implementar reformas muito significativas para as suas vidas na energia, na água, nas florestas", sublinhou Duarte Cordeiro.

Já Adão e Silva explicaria que o empenho do governo em reformas estruturais não significa que elas se façam de um dia para o outro: para "problemas estruturais, soluções graduais", sendo que "as reformas que perduram não são as que são feitas contra as pessoas, mas sim as que se fazem com as pessoas". Ou, dito de outra forma, as prioridades são "modernizar o país" e "proteger as pessoas", fazendo "as duas coisas ao mesmo tempo" e no quadro de uma "maioria de diálogo". "Precisamos de convergir" para ter um "Portugal mais competitivo e inovador", insistiria ainda o ministro da Cultura.

O debate teve no Presidente da República e no novo líder do PSD, Luís Montenegro, dois espetadores atentos.

Marcelo, falando com jornalistas à margem de uma conferência na Gulbenkian, sublinhou o reconhecimento por Costa de que, afinal, a crise inflacionista pode ser mais dura do que à partida o governo queria reconhecer. Salientou por isso que Costa tenha anunciado um novo pacote de medidas para setembro, que "é já amanhã". Quanto ao mais, o óbvio: seria para o primeiro-ministro "muito difícil explicar aos portugueses que a situação é melhor do que antes da guerra, do que antes da inflação, da subida do preço dos combustíveis, do preço de vários bens alimentares básicos".

Já Luís Montenegro - que assistiu ao debate num gabinete do PSD no Parlamento - o primeiro-ministro insistiu no "folclore político": "O primeiro-ministro pode divertir-se na retórica e folclore parlamentar, mas isso não resolve o problema dos portugueses".

Depois, respondendo a Costa, reiterou "honra e orgulho" em ter estado ao lado do ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho - mas contra-atacando. "Tenho uma grande honra e um grande orgulho em ter estado ao lado de Pedro Passos Coelho e tirado a troika de Portugal. Exortou António Costa a dizer se tem o mesmo orgulho e a mesma honra de ter estado ao lado de José Sócrates."

joao.p.henriques@dn.pt

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