"Costa tem todo o interesse em não governar sozinho e dar protagonismo ao PR"
A experiência, as personalidades e a conjuntura - três fatores que levam os politólogos a não prever grandes ondas de choque entre a maioria absoluta socialista de António Costa e o Presidente da República, mesmo perante um segundo e último mandato de Marcelo Rebelo de Sousa.
Mas a experiência portuguesa de governos maioritários - de Cavaco Silva (dois) e de José Sócrates (um) - e as respetivas relações muito conflituosas com Belém - no caso Mário Soares e o próprio de Cavaco - levariam a pensar o contrário.
"Ao contrário das outras duas experiências , no caso destes dois protagonistas políticos não vai haver conflitos desse género, vai haver equilíbrio institucional normalíssimo", perspetiva José Adelino Maltez.
Citaçãocitacao "Costa vai ter uma responsabilidade gigantesca na qual não vai ter com quem partilhar os erros. A geringonça permitia isso. E tem todo o interesse em não querer governar sozinho e dar protagonismo ao PR."
O politólogo frisa que Marcelo Rebelo de Sousa não será o chefe da oposição, tanto mais que "Costa já sublinhou que o conhece bem e sabe quais são as linhas vermelhas que não vai atravessar". Mas não entende que o Presidente da República fique diminuído nos seus poderes, incluindo o da magistratura da influência, perante a maioria absoluta, apenas os irá usar de uma forma "mais elegante" do que os anteriores.
Do ponto de vista dos poderes, Viriato Soromenho-Marques concorda com Adriano Moreira quando disse que a maioria absoluta confere "presidencialismo" ao primeiro-ministro.
O filósofo lembra, no entanto, que é preciso olhar para a experiência de coabitação, embora em maioria relativa, entre Costa e Marcelo para perceber "o contributo muito positivo" que o Presidente da República deu para a "sustentabilidade da geringonça". De tal forma, que "a direita quase o expulsou e lhe retirou o cartão", diz.
Citaçãocitacao"Ao contrário das outras duas experiências , no caso destes dois protagonistas políticos não vai haver conflitos desse género, vai haver equilíbrio institucional normalísssimo."
Viriato Soromenho-Marques considera que Marcelo e Costa são os dois políticos mais inteligentes dos 47 anos da 3.ª República e de "inteligências complexas". "Marcelo é um académico, mas também um tático. António Costa tem uma inteligência com muita coreografia política: cheira, apanha e escuta", afirma o filósofo. E acrescenta: "vão tentar não entrar em guerra porque nenhum tem vantagem nisso".
Até por um motivo muito simples. António Costa, diz, "vai ter uma responsabilidade gigantesca na qual não vai ter com quem partilhar os erros. A geringonça permitia isso. E tem todo o interesse em não querer governar sozinho e dar protagonismo ao Presidente da República". Conclui: "É demasiada luz sobre um homem só."
A politóloga Sofia Serra Silva cita um recente estudo académico que demonstra que a Presidência não é uma barreira ao cumprimento dos programas de governo, seja com maioria relativa seja com absoluta. E também ela não prevê que a coabitação São Bento/Belém venha a ser problemática.
Citaçãocitacao"Costa e Marcelo têm uma relação relativamente cordial em que os dois capitalizam com a imagem um do outro."
Admite, contudo, que o Presidente possa vir a ser uma "força de contenção" ao governo caso alguns fatores se conjuguem em desfavor do executivo. As eventuais tensões sociais e sindicais na rua - recorda que os partidos à esquerda, PCP e BE, antigos parceiros de geringonça, já anunciaram que vão mobilizar os protestos - podem alterar a correlação de forças entre Costa e Marcelo. Ou se eventualmente, considera, se vierem a verificar-se casos de corrupção ou de má prática na gestão da coisa pública ou dos fundos comunitários.
Viriato Soromenho-Marques prevê na mesma linha de pensamento que o maior adversário do primeiro-ministro vai ser o seu próprio partido quando, perante a maioria absoluta, achar que tudo é possível e não há limites.
Ao que José Adelino Maltez acrescenta, tal como dizia Sofia Serra Silva, a contestação na rua. "Os principais adversários do governo e do PS não vão ser os partidos da oposição, vai ser a opinião pública, vários ciclos que podem afetar a maioria absoluta. "O Presidente não irá surfar essas ondas", assegura.
Já na perspetiva de António Costa, "ele tem de ter uma atitude de grande abertura e tem de dialogar porque os casos e os escândalos vão existir", afirma o sociólogo, remetendo para a grande "bazuca" de fundos europeus que vão ser executados no país. "Ele [António Costa] entrou noutro patamar e pode ficar na História de Portugal e não fazer apenas parte da história, pode-se tornar o político mais importante da 3.ª República", diz, remetendo para os seis anos de governação de Costa com maioria relativas e agora mais quatro e meio se as próximas legislativas forem em outubro de 2026.
Sofia Serra Silva remata com a ideia de que "Costa e Marcelo têm uma relação relativamente cordial em que os dois capitalizam com a imagem um do outro". Por isso, "talvez a maioria absoluta não mude assim tanto essa dinâmica".
Mário Soares, então Presidente da República, nunca gostou de Cavaco Silva, e não escondia publicamente que o considerava um tecnocrata e fora da órbita da elite política. Mas ainda o tolerou, sem grandes ondas na primeira maioria absoluta que arrancou ao país, em 1997. Nesse período o antigo líder socialista aproveitou para se afirmar "o Presidente de todos os portugueses" e de presidência aberta em presidência aberta foi firmando o seu poder na rua, junto dos portugueses.
Cavaco Silva também o tolerou, mas à primeira oportunidade demonstrou o quanto lhe desagradava essa postura presidencial. Mas apoia, com irritação de parte do PSD, a recandidatura à Belém. Soares ganhou esmagadoramente, com 70% dos votos, e ficou relegitimado no seu mandato. Fez a vida num inferno a Cavaco, a começar com um congresso "Portugal que futuro?" em 1993 e uma presidência aberta na Área Metropolitana de Lisboa, onde andou sempre a expor a política de "betão" do então primeiro-ministro. Cavaco incluiu-o no que chamou "forças do bloqueio". Seguiram-se vetos, mensagens ao Parlamento e muito atrito público entre os dois políticos, acentuado pelo grupo parlamentar social-democrata que questionou sem parar as visitas ao estrangeiro de Soares.
O Presidente quase deitou o governo abaixo na sequência da crise dos corredores, em que os jornalistas parlamentares deixaram de noticiar durante 35 dias os trabalhos na Assembleia da República em protesto pela limitação à liberdade de circulação.
Cavaco Silva tinha prometido, se calhar até a si próprio, não fazer com José Sócrates o que Mário Soares tinha feito com ele. Mas o relacionamento com o líder do governo socialista conseguiu atingir um nível de conflito muito superior e grave. Com a agravante de se ter tornado tudo público e muitíssimo notório.
Da "cooperação estratégica" que tiveram nos primeiros dois anos, Cavaco Silva em Belém e José Sócrates em São Bento passaram para outros dois de desconfiança total. O caso das escutas é o mais grave de vários episódios e data de 2009, quando o jornal Público fez manchete com as suspeitas de a Presidência da República estar a ser "vigiada" pelo governo.
Na sequência dessa notícia, uma bomba maior rebentaria em plena campanha eleitoral para as legislativas de 2009 quando o DN noticiou que o "homem forte do Presidente", no caso Fernando Lima, tinha encomendado o "caso das escutas".
É bom de perceber que tudo isto inquinou completamente a relação institucional entre os dois principais atores políticos da altura, com Cavaco Silva a dizer nas suas memórias: "Frequentemente, as palavras não se conformavam à realidade dos factos e passei a olhar desconfiado para as "boas notícias" do primeiro-ministro [José Sócrates]".
paulasa@dn.pt