Costa e Rio. De aliança em aliança até à rutura final

Do que foi em tempos uma aliança, primeiro nas autarquias mas depois até com Costa já a primeiro-ministro, já nada sobra. O DN recorda o percurso percorrido por ambos de um ponto ao outro. Costa e Rio enganaram-se no que ambos pensavam um do outro.
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A história foi assim: António Costa, já primeiro-ministro, faz um acordo com o PSD, então ainda liderado por Passos Coelho, para os dois partidos retirarem às autarquias o poder de veto que têm na decisão sobre a localização de um novo aeroporto. Seria através de um processo legislativo, provavelmente partindo de uma proposta de lei do Governo, que depois o PSD deixaria passar na Assembleia da República.

Depois, no início de 2018, Rui Rio sucede a Passos Coelho na liderança do PSD - e Costa consegue renovar o acordo. Continua a sentir-se seguro de que há maioria clara no Parlamento para revogar a lei que deu às câmaras da Moita e do Seixal (ambas comunistas) o poder de recusarem a escolha do Montijo para local do novo aeroporto da área metropolitana de Lisboa. Seria só então uma questão de tempo e escolha de oportunidade política para se legislar.

Mas eis senão quando Rio - sensível ao coro de vozes cada vez mais audível que protesta contra a escolha do Montijo - introduz uma nova exigência na agenda.

Sim, aceita mudar a lei. Mas em troca o Governo terá de reiniciar o processo de escolha de localização para o novo aeroporto, desistindo do Montijo (e passando, por exemplo, admitir Alcochete).

Costa enfurece-se com o volte face. A situação só não ficou mais grave porque chega a pandemia de covid-19 e, face à crise económica e social que se instalou, falar de um novo aeroporto perdeu o sentido.

O episódio é só um de vários que retrata como uma relação que em tempos até foi funcional e colada por interesses comuns, se tem vindo a degradar, ao ponto de agora estar à beira do insulto, como Costa fez na entrevista DN/TSF/JN do fim de semana passado: "Um cata-vento tem uma grande vantagem sobre o dr. Rui Rio: é que um cata-vento ao menos tem pontos cardeais, o dr. Rui Rio não tem." Rio reagiu mordendo os lábios: "Se eu tiver aqui estados de alma, amuava e dizia 'com ele não falo mais porque ele não foi correto comigo'. Não posso estar com estados de alma com o cargo de responsabilidade que tenho."

Um antigo dirigente do PSD que conhece tão bem um como o outro não tem dúvidas e, pedindo o anonimato, conversa-as com o DN. "A relação tinha de falhar porque foi sempre baseada em equívocos. Ambos pensaram que o outro era melhor do que efetivamente é."

Sim, em tempos Rio e Costa até foram aliados. Quando o primeiro presidia à câmara do Porto (2001-2017) e o segundo à câmara de Lisboa (2007-2015). Nessa altura andaram de braço dado a defender a causa do municipalismo, da descentralização e do reforço dos poderes das autarquias face à administração central. A convite de Rio, Costa ia ao Porto comemorar o S. João. A convite de Costa, Rio ia a Lisboa assistir ao desfile popular das festas de junho. Pareciam mesmo amigos. Perante companheiros do PSD, Rio não escondia a admiração que tinha pelo seu colega autarca de Lisboa. "Costa sempre teve ascendente político e intelectual sobre Rio", afirma o interlocutor do DN.

O líder socialista, pelo seu lado, nunca teve nenhuma razão para pensar que o seu colega autarca do Porto não seria uma pessoa confiável. Viu com bons olhos a sua ascensão à liderança do PSD, em 2018. Contava ter ali um parceiro para, em sendo necessário, travar no Parlamento, ao lado do PS, eventuais excessos despesistas dos partidos à esquerda do PS. Rio até tinha fama, vinda dos tempos de presidente da câmara do Porto, de ser férreo a defender finanças públicas saudáveis e défices mínimos. Enfim: dois sociais-democratas, um ligeiramente à esquerda, outro ligeiramente à direita - mas ambos só mesmo ligeiramente. E ambos, também, bastante compenetrados da necessidade de manter Portugal alinhado com as exigências de disciplina orçamental impostas pela UE.

Só que não há na política profissão mais difícil do que a de líder do maior partido da oposição. No início e durante bastante tempo, o presidente do PSD até se mostrou dialogante com o primeiro-ministro socialista. Em abril de 2018 assinaram publicamente acordos sobre descentralização e fundos europeus. E, dado os apoios que Costa tinha à esquerda para viabilizar Orçamentos do Estado, Rio nem tinha de colaborar nisso, conseguindo assim manter alguma imagem de distância face ao primeiro-ministro socialista. Uma situação ideal para ambos, parecia então.

Mas não. No PSD, Rio começou a ser progressivamente cada vez mais pressionado para se afastar de Costa. E aproximavam-se as eleições legislativas de outubro de 2019 - na verdade o primeiro grande teste à sua liderança.

É certo que o presidente do PSD nunca prometeu que conseguiria levar de novo o partido ao poder somente quatro anos depois de o ter deixado. Mas era imperativo impedir que o PS chegasse à maioria absoluta. O caminho fez-se explorando a fragilidade do Governo com o caso do assalto a Tancos (ou melhor, com o caso do "achamento" das armas). Em outubro de 2018 - um ano antes das legislativas - rebentou a bomba.

Foi noticiado nessa altura, pelo Expresso, que o então ministro da Defesa, Azeredo Lopes, tinha tido conhecimento de que toda a operação do "achamento" fora forjada pela Polícia Judiciária Militar em conivência com o autor do roubo. Isto foi em 4 de outubro. Azeredo durou uma semana no cargo, demitindo-se dia 12. Mas o pior estava para vir.

Em julho de 2019, já com o país político todo em campanha para as legislativas de outubro seguinte, Azeredo Lopes seria constituído arguido, sob suspeita de denegação da justiça. E de arguido passaria depois a acusado (o julgamento está a decorrer). O líder do PSD não hesitou em explorar o caso ao máximo, chegando mesmo a acusar Costa de ter sido "conivente".

Para o primeiro-ministro, foi a gota de água. Rio tinha passado a vida a produzir discursos contra aquilo a que o próprio chamou de "julgamentos de tabacaria" (julgamentos na praça pública). E agora estava justamente a fazer isso, na visão do chefe do Governo. Rui Rio, por sua vez, por mais de uma vez ficou surpreendido com o teor brutal das respostas de Costa às suas críticas. Nem um nem o outro esperavam isto um do outro.

A esta acrescentaram-se outras divisões. Costa acreditava que Rio seria um aliado a controlar a despesa pública. Mas depois viu-o alinhar com a esquerda, por exemplo para aumentar os apoios às vítimas sociais e económicas da pandemia.

É certo que amizade nunca houve. Costa e Rio são aliás diametralmente opostos na educação que tiveram e nos interesses extra política. O primeiro, filho das elites culturais de Lisboa, cultiva as artes e a cultura e enche a sua residência oficial de S. Bento com peças do melhor design que se produz em Portugal; o segundo manifestou no Porto um vivo desprezo pelas elites culturais locais e já confessou, até, que não lê romances - só livros de História e Economia. Do que foi em tempos uma aliança de interesses já nada resta.

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