Cavaco responde a Costa e desafia-o a fazer "mais e melhor" do que ele
Cavaco Silva desafiou o primeiro-ministro a fazer mais e melhor do que ele, agora que são "colegas" no "que à conquista de maiorias absolutas diz respeito". O antigo Presidente da República responde, assim, a António Costa num artigo publicado esta quarta-feira no jornal "Observador". Em causa estão declarações do chefe do Executivo proferidas a 30 de março, durante o discurso de tomada de posse do XXIII Governo, quando Costa disse ter feito parte de uma "geração que se bateu contra uma maioria existente que, tantas vezes, se confundiu com um poder absoluto". Estaria a referir-se aos governos de Cavaco Silva.
Num texto pautado pela ironia, o antigo chefe de Estado começa por dar os parabéns a Costa pela maioria absoluta nas últimas legislativas, pedindo desculpa pelo atraso da felicitação.
"É certo que beneficiou dos erros do PSD e da benesse do PCP e do BE ao chumbarem o orçamento do Estado para 2022, mas ninguém lhe pode tirar o mérito", escreve Cavaco Silva, recordando ao destinatário deste artigo de opinião que também ele beneficiou de "uma benesse na conquista da primeira maioria, em julho de 1987". "A aprovação pela Assembleia da República da moção de censura ao governo apresentada pelo PRD".
Lembra, depois, a conquista da sua segunda maioria, quando obteve 50,6% dos votos. E é aqui que lança o desafio a Costa. "Talvez V. Exa. reconheça que se deveu à obra realizada pelo governo. Estou, aliás, convicto de que o senhor Primeiro-Ministro é capaz de fazer mais e melhor com a sua maioria absoluta e não tem qualquer razão para ter complexos", lê-se no artigo.
Escreve, no entanto, que o trabalho feito durante o tempo em que liderou governos com maioria absoluta ajudou o Executivo liderado por António Costa, fazendo questão de recordar o diálogo e consenso que teve na época com o PS.
"Contudo, penso, modestamente, que no tempo das minhas maiorias absolutas foram dados alguns passos que abriram novas perspetivas à sua geração e que facilitam agora a tarefa do seu governo. Receio que, na excitação da tomada de posse, se tenha esquecido de que vários desses passos resultaram do diálogo e do consenso com o seu partido".
Nesse sentido, começa então a elencar o que considera terem sido os resultados desse diálogo levado a cabo pelos seus governos, começando pelas "revisões constitucionais de 1989 e de 1992". Sem deixar de recordar a "cordialidade, a urbanidade e o respeito mútuo que sempre imperou" nas suas múltiplas reuniões com os líderes dos partidos da oposição, assim como "a dignidade e o sentido do interesse nacional que marcou a cerimónia em que eu e o líder do PS assinámos o histórico acordo político de revisão constitucional", nota Cavaco Silva.
Lembra ainda a Costa as "complexas negociações do Tratado de Maastricht", que tiveram o apoio do PS, a aprovação, com voto favorável dos socialistas, da Lei de Bases do Sistema Educativo, assim como a primeira Lei de Bases do Ambiente, entre outras.
"Pelo que observei nos seis anos de governo da "geringonça", V. Exa. considera certamente um exagero o meu entusiasmo e valorização do diálogo e da concertação social", escreve Cavaco Silva.
No texto publicado esta quarta-feira, enumera como os seus governos conseguiram a "redução da inflação", o "aumento real dos salários e das pensões", a "elevada taxa de crescimento da economia e para a aproximação do país ao nível médio de desenvolvimento da UE como nunca mais voltou a acontecer".
Destaquedestaque"Sendo conhecida a sua vontade de fazer reformas e habilidade no diálogo com o maior partido da oposição no sentido de as concretizar, estou certo que, com o seu governo de maioria absoluta, tudo correrá na perfeição"
Lamenta não ter sido alcançado do consenso com o PS na "abertura da televisão à iniciativa privada e a liberalização da comunicação social".
"Para o PS era então estranho que o governo quisesse afastar o Estado de um instrumento tão suscetível de influenciar a opinião pública e importante para a preservação do poder. O senhor Primeiro-Ministro sabe que nunca tive jeito ou apetência para a arte de sedução dos jornalistas e que, ainda hoje, muitos deles não gostam de mim, o que nada me incomoda. Esta é uma área em que V. Exa. é, e continuará a ser, muito melhor do que eu".
Falando sobre impostos, Cavaco Silva volta a desejar que Costa faça melhor que ele, caracterizando, no entanto, "o atual sistema de impostos" pela "iniquidade, ineficiência económica e pela brutalidade da sua carga para o nosso nível de desenvolvimento".
"Estou certo de que V. Exa. atuará melhor do que eu no diálogo com os partidos e organizações sociais e deixará na história da fiscalidade portuguesa uma marca reformista que ultrapassará em muito a dos meus governos de maioria absoluta".
Sobre a "deterioração da qualidade dos serviços prestados" pelo SNS "durante o tempo do governo da "geringonça", o ex-Presidente da República deseja: "estou certo de que ao seu governo de maioria absoluta não faltará a coragem para fazer mais e melhor do que foi feito pelos meus governos na área da saúde".
Recordou a "reprivatização de 38 empresas públicas" levada a cabo pelo seu governo de maioria absoluta, bem como da "nova Lei de Bases da Reforma Agrária".
"Dirá o senhor Primeiro-Ministro que a falta de apoio do PS a algumas das reformas se deveu à inabilidade ou à insuficiência de diálogo dos meus governos e a erros por mim cometidos. É provável que tenha alguma razão. Costumo dizer: "nobody is perfect"", sintetizou.
Recorrendo, mais uma vez, à ironia, Cavaco Silva manifesta um desejo: "sendo conhecida a sua vontade de fazer reformas e habilidade no diálogo com o maior partido da oposição no sentido de as concretizar, estou certo que, com o seu governo de maioria absoluta, tudo correrá na perfeição".
Apesar de retirado da vida política ativa, mas, como diz, preservando os seus direitos cívicos, conclui: "estou certo de que, encerrada a fase da "geringonça", o seu governo de maioria absoluta fará mais e melhor do que as maiorias de Cavaco Silva".