Mural numa das paredes deste bairro construído nos anos 1980, no âmbito de um programa criado em 1974 para promover as cooperativas de habitação.
Mural numa das paredes deste bairro construído nos anos 1980, no âmbito de um programa criado em 1974 para promover as cooperativas de habitação.Reinaldo Rodrigues/Global Imagem

As eleições vistas do Portugal Novo

Em Lisboa há um bairro com este nome de sonho, criado, a seguir ao 25 de Abril, da ideia de comunidade, igualdade e progresso. Habitado por imigrantes dos PALOP e seus descendentes, por ciganos, pelos filhos dos que chegaram à capital no grande êxodo rural do século XX, e onde parece só haver dois partidos: PS e Chega.
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Grupo das Olaias pa du ca preocupa
 porque mondon ca tem mafama é cima bento
hoje du sta li 
manham ta subi na montanha.”

A letra é nova, é a primeira vez que é cantada pelo grupo de batucadeiras das Olaias, que se sentam em roda numa sala luminosa no rés-do-chão de um prédio camarário. Para quem não fala crioulo, é preciso tradução: “Grupo das Olaias, não te preocupes com quem se acha superior, porque a fama é como o vento, hoje está aqui, amanhã nas montanhas”. 

Neste dia de eleições, as terceiras legislativas em cinco anos, a mensagem cantada na torrente de batuque que, épica, estremece o coração, parece feita à medida. Da incerteza - tudo muda, nada é garantido, hoje estás em cima, amanhã em baixo - como da esperança e da resistência: os que se colocam acima dos outros não ficarão lá para sempre, hão-de ir-se na ventania do tempo. 

Ainda é cedo - estamos a meio da tarde - para saber para onde os votos sopram, mas se dependesse desta roda de mulheres e homens, muito mais mulheres que homens, todos de origem cabo-verdiana, todos de pele escura, todos, como se diz, racializados, o Partido Socialista teria maioria absoluta. Mas, atenção, nem tudo o que parece é. “Eu gostava que ganhasse o PS, é um partido que ajuda os imigrantes, os pobres”, comenta Ana Vicente, cabeleireira de 48 anos. “Porém acho que vai haver empate. E depois há o Chega, que diz o que o povo mais antigo quer ouvir. A geração do meu pai, por exemplo.” Faz uma pausa como quem toma balanço. “Uma das coisas que o Ventura diz é que é contra os ciganos, e o meu pai vai muito nisso. Diz: ‘Eu vim para aqui para Portugal e sempre trabalhei e nunca me deram nada’.”

O pai, informa Ana, tem 74 anos, é pescador. E votou no Chega. “Perguntei e ele respondeu. É um absurdo, mas a comunidade cabo-verdiana acha que tem mais direito a cá estar que os imigrantes que chegam agora. E há também o machismo, a ideia de que as mulheres é para estarem em casa, para servir. A minha mãe - que já morreu - sempre foi submissa ao meu pai. E o Chega também tem a ver com esses valores.”

Na foto de cima, a roda das batucadeiras, que se reúne todos os domingos; em baixo Ana Vicente, cujo pai, pescador nascido em Cabo Verde, de 74 anos, lhe disse ter votado no Chega.

O patriarcado é um dos pilares do fascismo, corrobora, rápido e articulado, do outro lado da roda, António (prefere não dizer o apelido), 44 anos, marceneiro. Quanto ao voto do pai de Ana, acha “um paradoxo”: “O Chega não é só contra os ciganos, como bem se sabe. E é como se não houvesse descendentes de cabo-verdianos que não têm ainda direito a nacionalidade… Também conheço imigrantes do Brasil que são negros e vão votar no Chega. É muito estranho. Quanto aos ciganos, as pessoas passam a vida a falar neles e a dizer que fogem aos impostos mas não reparam nos grandes empresários que fazem isso aos milhões. E vemos os ciganos a sair de casa às quatro da manhã para montar as tendas. Para trabalhar. Se calhar era de nos ralarmos menos com eles e mais com os outros. Todos sabemos que o problema deste país não são os ciganos.” Não há palmas para o discurso mas muita concordância enquanto António conclui: “Acho que vamos ter uma surpresa nestas eleições, e não sei se vai ser favorável.” 

“Não percebo nada de política, voto Sagres”

Coisa curiosa: durante a tarde de reportagem, é como se apenas houvesse dois partidos em Portugal - Chega e PS. Só uma pessoa falou de outra força política: Manuela Sá, de 63 anos, que seguiu os debates na TV e de todos os líderes gostou mais de Luís Montenegro. Também gostou de André Ventura. Porquê? Sorri: “Gosto de o ouvir falar, acho que ele fala coisas certas.” Mas ele não diz mal dos ciganos? “Diz, mas as coisas que ele diz não são verdade, os ciganos agora trabalham. Tenho um filho de 47 anos que sempre trabalhou, trabalha naquilo dos telefones.” Em todo o caso, não fez diferença no seu voto: “Então, votei no PS. Voto sempre no PS.”  

Manuela Sá está a uns 40 metros do edifício onde as batucadeiras se reúnem todos os domingos, e frente aos prédios azuis e amarelos que dão o nome à reportagem, os do Portugal Novo. É um conjunto construído nos anos 1980 por uma cooperativa de habitação com o mesmo nome criada no âmbito dos projetos “SAAL” - o Serviço de Apoio Ambulatório Local, por sua vez criado em julho de 1974 pelo subsecretário de Estado da Habitação e Turismo do Primeiro Governo Provisório, Nuno Portas. 

O objetivo do SAAL era resolver o problema da falta de habitação decente que, à época, atingia quase 25% da população portuguesa, especialmente na zona de Lisboa, onde existia uma miríade de bairros de barracas, e estimular a auto-organização das comunidades necessitadas através da criação de cooperativas. Para abreviar, acabaram construídos 221 fogos, tendo o Estado emprestado à cooperativa cerca de 266 milhões de escudos (ou 1,3 milhões de euros) dos quais apenas 20 mil euros terão sido pagos de volta. A cooperativa extinguiu-se e até hoje  existe uma indefinição na propriedade dos apartamentos, que não podem ser legalmente comprados . 

O Portugal Novo é assim uma espécie de legado amargo de um tempo de sonhos, um sítio mal afamado à conta de algumas reportagens que o garantiram inseguro e marginalizado, uma proverbial terra de ninguém onde há décadas se protesta pela inexistência daquilo a que se dá o nome de “equipamentos sociais” - nem uma escola, nem uma creche, nem sequer um parque infantil. 

José Pacheco acha que "é preciso criar as condições para que as pessoas possam trabalhar em vez de ficarem em casa a receber subsídios" e, acusado de votar Chega, não se descose: "O voto é secreto".

É disso em primeiro lugar que se queixa José Pacheco, 55 anos, ladrilhador, que, no único local de reunião do bairro, a Associação de Moradores Paz Amizade e Cores - na verdade um pequeno café onde aos sábados se serve um panelão de cachupa (prato típico cabo-verdiano) -, garrafa de mini Sagres na mão, considera que a falta de uma creche é uma das razões pelas quais há gente a ficar em casa a receber o Rendimento Social de Inserção em vez de sair para trabalhar. “Atenção, eu sou apologista de que as pessoas recebam subsídio se precisarem, mas é preciso criar as condições para que possam trabalhar. Se lhes pedem 200 a 300 euros por uma creche para os filhos, fazem contas e decidem que o melhor é ficar em casa a receber 500 euros e a tomar conta dos filhos.”

Ao lado de Pacheco (é assim que toda a gente lhe chama) no balcão, Maria Emília Furtado, 40 anos, filha de um casal de cabo-verdianos que veio para Portugal há 45, corrige: “Ninguém recebe 500 euros de RSI, atenção.” Pacheco responde: “Se tiverem 10 filhos, recebem”. Emília acusa: “Ele vota no Chega”. Nada, dribla o ladrilhador, erguendo a garrafa: “Eu não percebo nada de política, voto Sagres”. 

Maria Emília Furtado, no balcão da associação que o irmão dirige. Filha de imigrantes, crê que Portugal deve manter as fronteiras abertas, mas que "está a mais já, já está a prejudicar as pessoas de cá."

Ela ri e volta à conversa: “Se o Estado não ajudasse as pessoas, o que não haveria de roubos e de violência. É preciso pensar nisso.”

Mas também, concede, noutras coisas: “Sou a favor de que abram as fronteiras à imigração mas acho que está a mais já, está a prejudicar as pessoas de cá.” Como assim? “Na habitação e no trabalho. Porque não há casas para todos. Há pessoas a viver na rua. Têm de ter condições para vir, têm de lhes dar condições.”

“É um país bom, evoluiu-se muito”, ou “não se evoluiu nada”?

Maria Emília sabe o que é viver sem condições: o pai veio para Portugal com um contrato de trabalho dos Caminhos de Ferro Portugueses que supostamente garantia alojamento, mas quando chegaram, conta o irmão, Nuno Furtado, 42 anos, presidente da associação, “deram-lhes um espaço num quartel, sem condições nenhumas, era tipo acampamento”. Daí, subindo mais um degrau na hierarquia dos excluídos, foram para uma barraca na zona do Areeiro. “Eram as barracas que os brancos portugueses tinham construído e já tinham largado.” Das barracas a família passou depois, há 27 anos (em 1997) para este bairro. Os pais morreram entretanto mas os filhos ficaram a viver aqui até agora. 

Nuno, que assume ter votado PS e já foi candidato à Junta de Freguesia pelos socialistas mas também pelo PAN, vê “uma grande diferença” nas condições que teve como criança e adolescente e aquelas que agora existem para os seus filhos e sobrinhos. “Tenho uma filha de 16 e outra de 13, e para elas agora não há limites para o que podem fazer, em termos de escola, das escolhas. É tudo muito diferente do que foi para mim, para a minha geração, que abandonou a escola para fazer qualquer coisa para ganhar dinheiro, para ajudar. O meu pai ficou inválido e a minha mãe, que estava em casa a tomar conta de nós, teve de ir trabalhar em limpezas o dia todo. Para nós, o estudo não foi  uma oportunidade nem uma condição. ”

Nuno Furtado é um dos sete filhos de um casal de cabo-verdianos que imigrou para Portugal há 45 anos. Sobre a ascensão do Chega graças ao discurso anti-imigração e anti-RSI, comenta: "As pessoas têm uma dor e arranjam um bode expiatório. Estamos a lutar contra nós próprios."

Tudo somado, acha Emília, que votou no mesmo partido que o irmão, “Portugal é um país bom onde se viver, onde podemos criar os nossos filhos e viver com dignidade. Espero que melhore, que se consiga chegar a um ordenado mínimo de mil euros. Tenho esperança.”

Há porém aqui quem ache exatamente o contrário: que “não se evoluiu nada”. É o caso de Marlon Lima, 34 anos, que, diz, vive no Portugal Novo (ou velho, no caso) desde que nasceu. É cigano mas, garante, só não vota em André Ventura “porque ele é racista, porque ele tem razão no que diz, as pessoas têm de trabalhar. Eu sou cigano e declaro tudo, faço descontos, não estou de acordo que as pessoas fiquem a receber sem fazer nada.”

Marlon aliás não vota: "Nunca votei porque não beneficio em nada do Estado”. Fica interdito quando lhe é perguntado se a casa onde vive não foi paga pelo Estado. “As pessoas pagavam à cooperativa”, indigna-se. Certo, mas nunca foi pago de volta nada de parecido com o que foi emprestado. “Há pessoas que ainda depositam no banco uma quantia todos os meses”, insiste. O facto de poder colocar os filhos numa escola sem pagar nada, ou beneficiar de saúde pública, também não o desconcerta: “Os meus filhos ainda não andam na escola”. 

“Estamos a lutar contra nós próprios”

Da mesma família, Arlindo Lima, 29 anos, proclama que votou Chega: “Sou contra o PS, porque é um partido contra a vida. Por causa do aborto, das casas de banho mistas nas escolas, do casamento LGBT.” Casas de banho mistas? Isso vem de onde? “Vi num vídeo.” 

Arlindo Lima, que diz ter "votado Chega, contra o PS" por este ser "um partido contra a vida". Lá atrás, o seu irmão João e Nuno Furtado.

Há até quem aqui garanta que as crianças “podem decidir mudar de sexo e que se os pais não concordarem, tiram-lhes as os filhos”, e fique confuso quando lhe é asseverado que não é assim. As informações resultam de de vídeos que circulam no WhatsApp e, pelo menos no caso de Arlindo, da igreja evangélica de que é membro. "Tenho três filhos e vem aí o quarto. Se por acaso acontecesse um querer mudar de sexo era erradicado."

Um dos irmãos de Arlindo, João, 32 anos, entra na conversa: “Tu és muito inteligente mas tens cinco minutos de esperteza e 15 minutos de estupidez.” Mais tarde, vem asseverar que o irmão não votou Chega, estava “só a provocar, a queimar sangue”. Quanto a si, declara-se abstencionista. "Nunca votei antes, agora vou votar só porque está lá o Chega?"

Pode ser, mas estas eleições arrancaram muita gente da abstenção - a taxa foi a mais baixa desde 1995. Bem dizia Nuno Furtado que tem reparado que "as pessoas estão a falar muito mais de política. Antigamente iam votar e estava feito. Agora há muito debate sobre isso. Nunca vi falar tanto de política como ultimamente. E os jovens têm medo do amanhã, de não ter uma casa, uma família, trabalho. Conseguiram contaminar a cabeça dos jovens."

Quantos deles terão votado no Chega? Certo é que o partido fundado em 2019 conquistou mais de um milhão de eleitores: num país que se gabava de não ter extrema-direita, passou-se, em pouco mais de quatro anos e três eleições legislativas, para 48 deputados. O quádruplo dos obtidos em 2022 e mais 47 que em 2019. Um resultado que deixa Ana Vicente chocada: “Esperava que o Chega subisse, mas não tanto”, diz quando o DN lhe liga depois das oito da noite. Já António, o marceneiro das batuqueiras que aventara “uma surpresa”, não se quer, perante as primeiras projeções, alongar na conversa: “Não tenho muito a dizer. Acho que será inevitável este resultado.” 

Sentada à frente da TV, Maria Emília Furtado mantém a calma: "Estou aqui a acompanhar, tenho esperança de que isto vá mudar."

Mas as palavras do irmão, ditas no fim da reportagem, sabem a oráculo: "O Ventura e o Chega conseguiram trabalhar bem as mentes das pessoas. Era impensável até há pouco tempo alguém dizer bem do Chega. Nas últimas eleições não se ouvia falar deles e de repente as pessoas já pensam bem do Ventura. Tenho um grupo de Whatsapp com pessoas da minha geração e diziam que iam votar todos no Chega. As redes sociais fazem uma grande propaganda. Meteram na cabeça das pessoas que os imigrantes estão a retirar-lhes trabalho, que as casas estão caras por causa desses imigrantes do Bangladesh que vêm para aqui viver. Não reparam que há uns anos toda a gente dizia que a Segurança Social estava falida e agora graças aos imigrantes já melhorou. É aquela conversa 'ando a trabalhar para eles', e não reparam no que eles  fazem pelo país, por nós." Suspira. "As pessoas têm uma dor e têm de arranjar um bode expiatório. Estamos a lutar contra nós próprios."

Os edifícios do bairro Portugal Novo foram projetados em colaboração com os membros da cooperativa do mesmo nome - era esse o espírito dos projetos SAAL, envolver as pessoas nas soluções, criar comunidade e futuro.

O vento rodou, como na canção. E há-de rodar de novo, porque "mondon ca tem mafama é cima bento. Hoje du sta li, manham ta subi na montanha."

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