António Filipe: "Não é expectável que o PCP possa ter a influência política e social que já teve"
Nasceu a 28 de janeiro de 1963. A sua ligação ao PCP começa na adolescência, na União dos Estudantes Comunistas. Foi aos 11 anos e nunca mais parou. É o deputado que mais vezes consecutivas foi eleito.
Quando é que despertou para o partido, quando é que o descobriu?
Despertei para a política com o 25 de Abril de 1974, tinha 11 anos de idade, e foi um sobressalto inesperado, pois não tinha noção e passei a ter. Os acontecimentos fizeram-me despertar para o fenómeno da política e com grande entusiasmo. Mas não necessariamente logo para o partido, até porque os meus pais não tinham qualquer filiação partidária, nunca em momento algum a tiveram. O meu pai era contra o regime, não tinha atividade política ativa, mas pelas conversas que ouvia em casa e pelos comentários que eram feitos relativamente aos noticiários televisivos, percebia-se que o meu pai contestava muito a situação política existente, sempre com aqueles cuidados que a minha mãe nos recomendava de que aquilo que se ouvia em casa não se podia repetir na rua. Despertei para o partido por via da escola secundária, diria que foi por via da UEC (União dos Estudantes Comunistas), direta e indiretamente pelo papel que o PCP desempenhou no processo revolucionário.
Mas era muito miúdo.
Era, mas aqueles dias foram muito intensos e, portanto, nós ouvíamos muitas coisas e eu absorvia muito avidamente a informação política logo desde os primeiros tempos que se seguiram ao 25 de Abril e tinha uma enorme admiração pelo papel que o PCP tinha desempenhado na luta antifascista. Ainda estava no ciclo preparatório quando foi o 25 de Abril, entrei no ensino secundário na Amadora logo a seguir, no ano letivo de 1974/1975, e aí comecei a participar em reuniões da UEC. E depois na JCP no ensino superior, porque a JCP é fundada precisamente no ano de transição, ou seja, eu termino o ensino secundário na UEC e entro no ensino superior já com a JCP.
E como é que foi na JCP?
Na Faculdade de Direito, quando entrei, enfim, estava referenciado [risos], comecei logo a participar, a entrar nas listas associativas quer para a associação de estudantes, quer para os órgãos de gestão. Fiz parte do conselho diretivo em representação dos estudantes no 2.º ano, integrei uma lista que venceu para a representação dos estudantes no conselho diretivo da faculdade, que, no nosso tempo, era presidido pelo Prof. Doutor Sousa Franco, já falecido, e eu era um dos quatro representantes dos estudantes nesse conselho diretivo. Depois tive um envolvimento mais intenso com a JCP a nível central, integrei uma direção nacional, a direção central do ensino superior, na altura, e depois os órgãos de direção nacional mesmo da JCP, em meados dos anos 80.
Guarda na memória algum momento particular desses tempos?
Havia uma grande competição entre as forças políticas, um peso grande das juventudes partidárias. No tempo em que eu andei na faculdade, andaram também o atual primeiro-ministro, o deputado Telmo Correia, o António Rodrigues, que era da JSD na altura. Havia um conjunto grande de estudantes do meu tempo que depois viriam para a política, como o Eduardo Cabrita, o Vitalino Canas, o José Apolinário e outros. Eram eleições muito competitivas e muito participadas e com episódios vários, nomeadamente um processo de luta que ficou conhecido, na altura, pela luta dos serviços sociais. Foi um processo de luta que começou com um levantamento de rancho na cantina velha e que depois alastrou. A Reitoria da Universidade de Lisboa esteve ocupada durante vários dias e noites.
Ficou por lá nesses dias?
Estive lá, passei lá alguns períodos noturnos. Nessa altura tínhamos o governo do bloco central e, portanto, quando entrei para a faculdade tínhamos o primeiro governo da Aliança Democrática, 1980, e depois, nos últimos anos, um governo de bloco central do PS e PSD, de Soares e Mota Pinto. E lembro-me que nessa luta, naquela altura, passavam os carros da polícia de intervenção só para meter medo. [Risos] Não chegou a haver nenhuma intervenção policial, mas houve um processo, uma ocupação da Reitoria com várias manifestações, com vários plenários, e isso depois traduziu-se num melhoramento das condições. Talvez, a nível estudantil, tenha sido a maior luta do meu tempo, que começou, precisamente, na Cidade Universitária e depois, a nível da própria faculdade, com um processo de grande contestação a uma reforma curricular que desvalorizou, designadamente, a disciplina de Direito do Trabalho. Eu estava na faculdade quando houve o primeiro processo de revisão constitucional, fizemos muitos debates sobre essa revisão com anfiteatros cheios. Além do professor da casa, Jorge Miranda, que era meu professor e que era deputado e participou na primeira revisão constitucional, também o Dr. António Vitorino, que era o monitor de Direito Constitucional e que eu apanhei... Enchemos anfiteatros para ouvir o Professor Vital Moreira, para ouvir várias perspetivas sobre a primeira revisão constitucional. Depois, quando terminei a faculdade, estava na direção da JCP e fazia parte do secretariado e do executivo da JCP e, mais tarde, veio a proporcionar-se integrar as listas e vir para aqui.
Nas eleições de 1987.
Integrei as listas em 1987, era um dos candidatos indicados pela JCP pelo círculo de Lisboa e tinha ficado combinado que não entraria logo de início. Aliás, fiquei numa posição mais recuada da lista, mas estava acertado que haveria um processo de substituição e que eu integraria e viria para a Assembleia da República. Isso aconteceu em 1989, em fevereiro de 1989.
Foi praticamente sair da faculdade e preparar a entrada na Assembleia da República.
Termino a faculdade no final de 1985 e fiz o estágio de advocacia, que depois não cheguei a concluir porque, entretanto, ficou assente que viria assumir funções na Assembleia da República e, portanto, não quis exercer. Tive uma cédula de estagiário, mas depois não concluí o estágio, não fiz a inscrição definitiva na Ordem dos Advogados. Nesse período fiz parte da direção da JCP, onde participei em várias coisas interessantes, uma delas a fundação do Conselho Nacional de Juventude, que começou a ser pensado, mais ou menos, em 1983. Embora então eu não fizesse parte da direção da JCP a nível central, fui encarregue de acompanhar o processo de elaboração dos estatutos. Foi um processo de negociações demorado. Depois, no momento exato em que se procedeu à fundação do Conselho Nacional de Juventude, à eleição dos primeiros órgãos, houve uma divergência entre nós, a JS e a JSD, porque nessa época ainda estávamos no governo de bloco central e havia uma grande convergência de posições entre a JSD e a JS. A JSD era presidida pelo Carlos Coelho, que era deputado da Assembleia da República, e a JS tinha como secretário-geral o José Apolinário, mas o representante no Conselho Nacional de Juventude era o António José Seguro, que, aliás, veio a ser o primeiro presidente do Conselho Nacional de Juventude. A divergência fez com que a JCP, nessa fase inicial, não tivesse participado. Passámos a participar algum tempo depois, porque, entretanto, desfez-se o governo de bloco central e a convergência entre a JS e JSD [risos] também diminuiu de intensidade pois entretanto vieram os ventos de Cavaco Silva.
E só entra em 1989 no Parlamento.
Nesse período, entre 1987 e 1989, continuei na direção da JCP e, ao mesmo tempo, tive durante um período de um ano e pouco funções no gabinete dos deputados do Parlamento Europeu. Estive a dar apoio, embora em Lisboa, à atividade dos deputados do PCP no Parlamento Europeu. Depois, em 1989, vim para aqui e caí em cima da segunda revisão constitucional. A primeira intervenção que fiz foi mesmo num dos primeiros dias, era uma reunião da comissão eventual de revisão constitucional, porque se estava a discutir a parte relativa à defesa nacional e ao serviço militar e as organizações de juventude participavam muito ativamente nesse debate. E foi assim o primeiro mergulho, que fiz logo na comissão eventual de revisão constitucional.
Correu-lhe bem?
Acho que correu razoavelmente, embora tivesse uma posição muito contracorrente, porque as organizações de juventude batiam-se pela eliminação do serviço militar obrigatório na Constituição e eu defendi uma posição que era a da JCP e do PCP. Na altura, sobretudo entre os jovens universitários, não era uma posição muito popular, que era a de considerar que se deveria manter o serviço militar obrigatório na Constituição. Foi esse o primeiro debate em que eu aqui participei. À época, havia uma comissão parlamentar de juventude, uma coisa que hoje não existe, e eu participava nela e na comissão parlamentar de educação. Foram as minhas duas primeiras comissões parlamentares.
O que é que se sente quando se entra aqui e se faz a primeira intervenção? Estava nervoso?
Sim, sobretudo em plenário. Nessa altura, as comissões parlamentares não tinham a publicidade que têm hoje, eram coisas à porta fechada e a pressão não era tanta. Claro que as primeiras intervenções em plenário têm sempre um peso particular.
Tem ideia da sua primeira intervenção no plenário?
Foi sobre a apreciação parlamentar, que então não se chamava assim - chamava-se processo de ratificação parlamentar -, de um decreto-lei do governo relativo à Universidade do Algarve. Era um diploma que procedia à fusão entre a Universidade do Algarve e o Politécnico de Faro. Então, os tempos de debate eram muito grandes comparados com o que são hoje. Só esse debate deu para ter três intervenções. Houve uma intervenção do líder parlamentar, que era o deputado pelo Algarve Carlos Brito, houve também uma intervenção do coordenador na comissão de educação, o deputado Jorge Lemos, e ainda houve tempo para intervir o deputado da JCP, que era eu. Fiz a terceira intervenção do grupo parlamentar sobre esse diploma relativo à Universidade do Algarve. Esse foi o primeiro debate.
Estava preocupado com o que iria dizer? Com receio de falhar?
Não, porque escrevi a intervenção. É uma forma de defesa, sobretudo para a primeira intervenção que se faz, para não haver imprevistos. Intervenções de improviso é algo que, passado algum tempo, se começa a fazer, mas sobretudo quando se é mais jovem é preciso ter mais cautela, porque, além do que possamos dizer, há sempre o medo também das reações que a nossa intervenção possa suscitar e das quais tenhamos de nos defender.
Aconteceu-lhe pensar que não devia ter dito determinada coisa?
Lembro-me de, por exemplo, por vezes sentir alguma insatisfação, de sentir que poderia ter dito algo que não disse ou até pensar em dizer, mas depois não se proporcionar ou sentir que devia ter respondido melhor. Há essas coisas na vida: acontecer alguma coisa e no dia seguinte pensarmos que se fosse hoje diríamos outra coisa.
O que é que leva destes 33 anos de Parlamento?
Levo a consciência de ter cumprido o meu dever como sabia e com grande dedicação e empenho e gosto também, e de ter participado defendendo as posições dos eleitores e do meu partido o melhor que soube e em questões relevantes da vida nacional. Ter procurado representar o melhor possível os cidadãos dos círculos eleitorais por que fui eleito e ter participado em alguns debates marcantes e até na elaboração de alguns diplomas também muito importantes. Foi muito honroso para mim ter tido a confiança do PCP para poder estar tanto tempo na Assembleia da República a representá-lo.
Algum sentimento de saudade ou de nostalgia?
Não, isso não tenho e não entrei em depressão pelo facto de não ter sido eleito. Claro que politicamente é negativo e obviamente que é com alguma mágoa que encarei este resultado eleitoral.
Ficou surpreendido?
Não posso dizer que tenha ficado surpreendido, pois quando fomos para esta eleição sabíamos que era um lugar de risco, mas assumimo-lo. Sabíamos que poderia ser eleito ou não ser. Encarámos este resultado como o resultado que era possível. Não era o que desejávamos e lutámos para que assim não fosse, mas aconteceu que foi. Sinto que politicamente é negativo, mas não por mim, não do ponto de vista pessoal e do empenhamento que vou manter politicamente, que é idêntico, embora noutro local e com outras funções. Tenciono manter a atividade política.
O que vai fazer a seguir?
Continuo a ser membro do Comité Central do PCP, já tenho uns anitos de membro do Comité Central, aliás fui eleito em 1992, portanto vou manter naturalmente as minhas funções partidárias. Passado este período, e quando for instalada a próxima Assembleia da República, logo se verá que tipo de funções concretas é que irei desempenhar.
Apoiar, dada a sua experiência, o grupo parlamentar?
Sim, e talvez também ter a possibilidade de fazer outras coisas que tinha pouco tempo para fazer, nomeadamente no plano académico, onde mantive sempre alguma atividade, embora forçosamente pequena, de professor universitário, mas agora, possivelmente, poderei ter um pouco mais de disponibilidade para isso. Mas penso em manter uma atividade política intensa.
Tirando isso, há alguma coisa que lhe apeteça fazer?
Talvez tenha tempo para escrever coisas. A vida parlamentar é muito absorvente, ocupa muito tempo, muita disponibilidade, e sobretudo em função de agendas que não são as nossas, ou seja, temos de intervir naquilo que acontece, independentemente daquilo que gostaríamos mais de fazer.
Escrever o quê?
Escrevo muito, mas sempre em função daquilo que se costuma dizer "a espuma dos dias", portanto, tirando a tese de mestrado e de doutoramento que fiz e que ocuparam vários anos, o resto tem sido na base do artigo que é solicitado, da intervenção que deve ser feita, e por isso escrevi muita coisa. Por vezes pensava que gostaria de ter tido tempo para poder refletir um pouco melhor e escrever uma coisa mais estruturada.
Um livro do António Filipe?
É uma possibilidade que não direi que não, mas depende, ainda vamos ver.
Viu este edifício crescer, alterar-se, mudar muito...
Era muito diferente a todos os níveis. Os deputados dos grupos parlamentares mais pequenos ainda tinham algum espaço vital para se poderem movimentar, eu sempre tive uma secretária, embora compartilhada com vários outros deputados, mas nos grupos parlamentares grandes os deputados não tinham onde se sentar. [Risos] Os deputados do PS e do PSD ficavam todos em salas grandes, comuns. O mais estável que tinham ainda era o plenário, mas isso alterou-se profundamente. Quando entrei para a Assembleia da República, não havia computadores e também não havia tudo aquilo que está hoje associado. Eu, por exemplo, que escrevia uma coluna semanal para o jornal O Diário, tinha de entregar aquilo à mão e escrito à máquina. Por acaso, vivia na Amadora e a redação do jornal era na Venda Nova - depois passou aqui para a Estrela, para a Rua de São Bernardo -, e eu no caminho para casa tinha que parar na redação.
Há algum recanto da casa que não conheça?
Não deve haver. Se bem que tenha havido aqui grandes descobertas. Por exemplo, uma das inovações é aquela sala lindíssima que é o refeitório dos monges, que hoje é um centro de acolhimento para jovens e era uma zona completamente abandonada e com entulhos. Na altura, eu não conhecia e fiquei surpreendido quando a vi, mas neste momento creio que conheço praticamente todos os cantos à casa.
E há por aqui funcionários do seu tempo?
Há ainda alguns, outros que eram mais antigos e que até se reformaram. Fui vendo alguns reformarem-se e outros, infelizmente, foram falecendo. Mas ainda há alguns.
E é homem de criar empatia com essas pessoas?
Sei que demora um bocadinho, tenho fama e proveito de introvertido, portanto, provavelmente demora sempre algum tempo até ter alguma confiança com as pessoas. Mas sim, tenho sempre uma relação muito cordial com toda a gente, nunca criei nenhuma animosidade pessoal.
E há alguma amizade especial com alguém de outro grupo parlamentar?
Nunca tive nenhum conflito pessoal com nenhum deputado, nunca confundi debates acalorados e combativos, e até às vezes com alguma agressividade verbal, com qualquer ataque pessoal. Nunca sofri nem nunca fiz nenhum ataque pessoal a ninguém e tenho relações de amizade com deputados de outros partidos. Fui companheiro de escola do Telmo Correia e até podemos dizer que somos adversários há 40 anos. Ele representava a JC na Assembleia de Representantes da faculdade e eu era da JCP. Temos uma relação cordial e, até nem exagerando muito, posso dizer que somos amigos. O mesmo acontece com o ex-deputado Carlos Coelho, do PSD, ou com António José Seguro, com quem trabalhei na criação do Conselho Nacional de Juventude, ou o atual primeiro-ministro, que foi meu colega de turma. Mesmo com os atuais deputados do PS, há alguns de quem sou amigo, e com alguns do Bloco de Esquerda também.
Gente com quem, eventualmente, vai jantar ou almoçar?
Aí não tanto, isso não tem acontecido porque, normalmente, sai-se daqui cansado e quer-se é ir para casa. Houve momentos, por exemplo, quando as sessões se prolongavam muito, e mesmo assim não apanhei a fase pior... aquelas sessões que acabavam às sete da manhã para recomeçar às dez. Eu já não apanhei isso, mas ainda participei em sessões em que as coisas acabavam entre as nove e as dez da noite. Por exemplo, quando foi a revisão constitucional de 1989 e também a de 1997, havia sessões noturnas, portanto a sessão terminava com intervalo para jantar e depois continuava. Interrompíamos, então, para comer e jantávamos aqui perto, mas isso normalmente entre nós. Ou seja, não havia muito intercâmbio partidário. Juntávamos os deputados do PCP que estavam a participar e íamos jantar. Era muito frequente haver outras mesas em que estavam socialistas ou pessoas do PSD.
E a vida familiar como é que se gere nestas circunstâncias?
Com dificuldade, isso não é fácil. Exige grande compreensão das pessoas que vivem connosco, porque são muitas horas roubadas ao convívio familiar e, no meu caso, até porque a certa altura comecei a conciliar o trabalho parlamentar com a elaboração de teses académicas, e isso foi uma sobrecarga de trabalho muito grande para mim e que se refletiu, evidentemente, na disponibilidade para a vida familiar. Mas contei com grande compreensão e procurei sempre, particularmente no que se refere aos meus filhos, nunca faltar com a minha presença naquilo que era essencial. Hoje já são crescidos e temos uma excelente relação. Creio que, apesar de tudo, isso foi conseguido, mas implicando sempre um sacrifício enorme para as pessoas que vivem connosco.
Porque é comunista?
Sou comunista porque acredito que o capitalismo não é o fim da história e acredito que a humanidade pode libertar-se da exploração do homem pelo homem e, portanto, acredito na possibilidade da construção de uma nova sociedade. E creio que essa nova sociedade deverá ser uma sociedade socialista, uma sociedade sem classes, e, nesse sentido, acho que aquilo que Marx nos procurou ensinar é válido.
Ainda hoje é válido?
Claro que é válido, o marxismo é uma contribuição para a história do pensamento mundial e da ação política que se mantém inteiramente válida nos seus fundamentos. Vale a pena lutar por isso, apesar das vicissitudes da história e do processo conturbado que a construção do socialismo se rodeou historicamente.
É onde está a diferença entre o PCP e o PS?
Nasceram de uma mesma família, mas foram por caminhos diferentes e separaram-se ao longo da história. Creio que a diferença fundamental é que os socialistas desistiram da construção de uma nova sociedade, ou seja, conformaram-se com a ideia de serem gestores do capitalismo. E esse terá sido o maior cisma, embora reivindicando ambos uma herança marxista, mas, a partir de uma certa altura, quando os comunistas assumiram uma perspetiva revolucionária da sociedade, de superação do capitalismo e da construção de uma sociedade nova, os socialistas ou sociais-democratas - foram assumindo cada vez mais essa designação - passaram a pautar a sua intervenção política por obter algumas conquistas no quadro do capitalismo, não o contestando em si. No terreno da atualidade, por exemplo, basta olhar para a forma como encaramos a legislação laboral, a defesa e a valorização do fator trabalho, que não é a posição dos socialistas.
E porque é que isso não se traduz em votos?
Falta ter votos. [Risos] No tempo que vivemos, não é expectável que o Partido Comunista em Portugal, como noutros países, possa ter a influência política e social que já teve nos anos 70 e que o fez crescer até aos 200 mil militantes. Mas estamos a falar de um tempo com muitos milhares de assalariados agrícolas, onde o PCP tinha uma influência decisiva porque tinha encabeçado a luta pelas oito horas de trabalho. Estamos a falar de enormes cinturas industriais, a enorme Cintura Industrial de Lisboa com centenas de milhares de trabalhadores, em que o PCP tinha uma influência decisiva. Hoje temos muito poucos assalariados agrícolas. Aliás, o assalariado agrícola começa, cada vez mais, a ser mão de obra imigrante. E assistimos a um processo de desindustrialização do país.
E o processo histórico?
Houve um processo histórico que não foi favorável à causa comunista e não ignoramos o que foi a desagregação da União Soviética e o que isso significou para muitas pessoas. Significou uma perda de referência e deixaram de acreditar nessa possibilidade, tendo em conta que foi um processo histórico em que tinham depositado muitas esperanças e as sentiram, de certa forma, goradas com o fim da União Soviética. Teve uma influência enorme, muitas pessoas deixaram de ser comunistas e isso refletiu-se, obviamente, na influência social e política. Os tempos são mais difíceis hoje, mas já tivemos tempos ainda mais difíceis. E em democracia já houve momentos de muito maior influência do que oa que temos hoje, mas estamos cá para enfrentar essas dificuldades.
Acredita no crescimento do PCP?
Independentemente daquela que seja a dimensão que o partido tenha em cada momento ou a influência que possa ter, a partir do momento em que eu considero que os seus fundamentos são válidos e que é uma ação política que vale a pena prosseguir, estou cá para o que der e vier.
Fundamentos válidos, como diz, mas que perdem representação parlamentar e autárquica.
Estamos a passar por um momento complexo de perda de influência eleitoral, traduzida pelos resultados das últimas eleições e sempre tendo em conta as circunstâncias próprias que rodearam este processo eleitoral - uma profunda bipolarização -, que nos prejudicou, mas estamos cá para enfrentar isso e continuar e levar por diante a nossa atividade. Não vemos que a perda de influência seja uma inevitabilidade, as coisas não estão perdidas para todo o sempre - nós acreditamos e é por isso que trabalhamos, não é uma questão de fé, é uma questão de convicção. É para isso que lutamos e lutamos com as forças que tivermos e, em termos eleitorais, com a força que os portugueses nos derem.
Sente que tem as características para poder ser secretário-geral do PCP?
Não, isso nunca me passou pela cabeça, nem passa. Nunca foi algo em que tenha pensado sequer por um momento. É que essa questão nunca passou pela cabeça nem de mim nem de mais ninguém.
Se os seus camaradas o escolhessem, ia recusar?
Os meus camaradas ainda não ensandeceram. Diria que isso não lembra nem a um careca.
Quais são as características para ser secretário-geral do PCP?
Não sei, é difícil dizer. Já tivemos secretários-gerais com características muito diferentes. Assim como não há modelos para a construção do socialismo, também não há modelos de secretários-gerais. Há de resultar da consideração que o coletivo partidário faz a cada momento, diante dos seus quadros, diante dos que existem, e não em função de retratos robô. Durante muitos anos era Álvaro Cunhal uma figura inquestionável e com um carisma extraordinário, mas quando deixou de ter condições devido à sua idade para desempenhar essa função, houve uma escolha que recaiu sobre um secretário-geral [Carlos Carvalhas] com características completamente diferentes e com um estilo de intervenção também diferente. Durante aqueles 12 anos cumpriu a sua função, que abandonou por vontade própria, e hoje o partido está-lhe grato pela forma como desempenhou o seu papel de secretário-geral. Depois foi substituído pelo atual secretário-geral, também com um estilo de intervenção distinto.
Onde é que estão os traços comuns entre esses três homens?
Três pessoas com grande capacidade, três comunistas muito reconhecidos pelos seus camaradas e pelo coletivo partidário. Não me peça palpites sobre isso, a vida o dirá, mas a única coisa que posso fazer é excluir-me.
Porque é que falhou a "geringonça"?
A chamada "geringonça" nunca existiu.
Não gosta da palavra?
Nada. E digo-lhe porquê: a "geringonça" nasce de uma expressão depreciativa,de um insulto dirigido a uma solução governativa. Creio que essa expressão, de certa forma, envenenou a vida política portuguesa, impediu muitas pessoas de terem uma noção exata das características daquela solução governativa, que era um governo minoritário de um PS que não mudou de natureza, o que mudou foram as circunstâncias que permitiram ao PS formar governo. Para nós foi sempre muito clara a insuficiência desta solução do ponto de vista de objetivos, não estávamos à espera que o PS nos acompanhasse. As nossas divergências foram sempre assumidas e nunca foram ocultadas. Houve, por vezes, quem nos procurasse responsabilizar por medidas que eram opções do PS e muitas vezes suportadas pelos partidos de direita. Por outro lado, não foi devidamente valorizada a contribuição que o PCP deu quando, por exemplo, o PS foi obrigado a assumir a gratuitidade dos manuais escolares, os aumentos das reformas em janeiro e não em agosto, como queria, ou a redução significativa dos preços dos passes sociais.
E então?
Então muitas pessoas atribuíram essas medidas exclusivamente ao mérito do PS, o que se traduziu depois num reforço eleitoral do PS, quando, em boa verdade, o PCP teve uma grande responsabilidade na adoção dessas medidas.
Quando é que percebeu que o Orçamento ia dar no que deu?
Os sinais começaram antes do verão, quando se viu que havia uma grande indiferença do PS relativamente às questões que o PCP ia colocando em cima da mesa e que considerava necessárias. E não houve nenhuma resposta do PS a isso. Essa falta de resposta foi prosseguindo até se ter chegado a um ponto em que o PS não estava interessado em negociar o Orçamento do Estado nem tão pouco em corrigir.
Nem na especialidade?
Não, porque se tivesse essa intenção teria dado algum sinal, e não deu. Deu um sinal contrário e sobretudo a partir do momento em que se percebeu - até porque foi dito pelo Presidente da República - que se o Orçamento não fosse aprovado seriam convocadas eleições antecipadas. Se reparar, houve uma reunião do Comité Central do PCP a poucos dias da votação do Orçamento do Estado e o comunicado conclusivo dessa reunião ainda deixava em aberto a possibilidade de viabilização.
Qual o receio que tem agora com a maioria?
O receio é de que esta maioria absoluta seja parecida com maiorias absolutas anteriores. No plano parlamentar, a Assembleia da República fica muito empobrecida na sua capacidade de negociação, de procura de convergências e de soluções que sejam participadas. O receio é que a história se repita relativamente a isso. Da parte do PCP, há uma atitude de abertura para convergir naquilo que considere positivo, portanto não haverá nenhuma visão ressentida nem nenhuma tentação de encetar um processo de oposição sistemática.