André Coelho Lima: “A senhora procuradora-geral demonstrou a mais absoluta alienação social”
Reinaldo Rodrigues / Global Imagens

André Coelho Lima: “A senhora procuradora-geral demonstrou a mais absoluta alienação social”

Advogado, antigo deputado do PSD, é dos políticos com mais conhecimento de Segurança Interna e revela tristeza por polícias se deixarem “instrumentalizar” por partidos, como foram pelo CHEGA. Subscritor do Manifesto dos 50, lamenta que Lucília Gago tenha embarcado "na bipolarização” no debate sobre a Justiça.
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Há cerca de ano e meio (dezembro de 2022) foi aplaudido de pé no parlamento por deputados de todos os partidos, à exceção do Chega, num debate sobre as forças de segurança, ao refutar a narrativa “possessiva” de André Ventura em relação aos polícias. O que sentiu na semana passada quando viu as galerias da assembleia cheias de polícias que responderam ao apelo do presidente do CHEGA?
Senti tristeza. Esse momento parlamentar que recordou não foi pela qualidade do que disse, mas por ter dito que as forças de segurança não são uma preocupação do CHEGA, nem do PSD nem do PS. São de todos os partidos.

Ou seja, o que levou a haver um consenso, com exceção do CHEGA, no aplauso a essa minha intervenção foi o facto de eu ter dito que as Forças e Serviços de Segurança são uma preocupação de todos os partidos políticos. Não são nem devem ser nunca partidarizados.

Ora, este momento da semana passada acaba por demonstrar precisamente o contrário. Assistimos a uma atuação de sindicalismo em áreas de soberania e assistimos a um apelo à insubordinação por parte de um partido que se diz conservador e de direita. Ou seja, isto é uma contradição total que, no fundo, ajuda a definir o que é o populismo. O populismo é isto mesmo. É um partido trocar de convicções em função das diferentes temáticas.

Porque nunca um partido conservador e defensor de áreas de soberania faria ou tentaria fazer uma tamanha instrumentalização das forças de segurança e das polícias em concreto, como foi feito pelo CHEGA. Fiquei muito satisfeito por ver a demarcação dos diferentes sindicatos, mas, ainda assim, fiquei triste porque houve agentes que se deixaram manipular política e partidariamente. 

Acha que, em campanha, o candidato Luís Montenegro criou expectativas aos polícias em relação às quais agora Luís Montenegro primeiro-ministro está a falhar?
Acho essa apreciação extremamente injusta para o primeiro-ministro. Injusta em duas dimensões. Primeiro, essas expectativas foram criadas por todos os candidatos. Foi um dos temas das eleições legislativas. Todos se manifestaram disponíveis para se sentarem à mesa das negociações com os polícias. E isso consta no programa eleitoral do PSD. Hoje (dia nove de junho) vai decorrer uma nova ronda negocial com os sindicatos da PSP, e associações da GNR.

Segundo, foi oferecido pelo governo um aumento de quatro vezes mais do que aquilo que tinha sido oferecido pelo Partido Socialista, pelo governo anterior, que aumentou 100 euros a componente fixa do subsídio de risco (há ainda a componente variável de mais 20% do salário). Agora é proposto um aumento de mais 300 euros, ou seja, para 400. Isto são quatro vezes mais.

O esforço financeiro que o Governo está a fazer é enorme. É natural que o primeiro-ministro tenha dito que não aumenta nem mais um cêntimo, pois a proposta que apresentou é extremamente vantajosa.  

Não podemos esquecer, ao avaliar estas questões, das circunstâncias concretas que criaram tudo isto e que foi o aumento do suplemento de missão da Polícia Judiciária que tem um impacto em 1900 agentes. Aqui na PSP e na GNR são 43.000 agentes. Portanto, o impacto daquilo que foi já oferecido pelo governo é da ordem dos quase 200 milhões. É brutal.

O André Coelho Lima sempre defendeu, quando foi coordenador da bancada parlamentar para esta área, um reforço do poder do Sistema de Segurança Interna (SSI). Um novo modelo de organização do SSI estava, aliás, descrito no programa eleitoral do PSD de 2022. Não estranhou que, nem no programa eleitoral de 2024, nem no programa de Governo, não haja qualquer referência ao SSI?
A resposta direta é que sim, estranhei. Por duas ordens de razões. A primeira, por uma lógica de continuidade da política. Mas surpreendeu-me mais por uma segunda razão que tem a ver com a visão do que é necessário ter para o SSI. O SSI não é uma estrutura orgânica, bem o sabemos. É um conceito criado na Lei de Segurança Interna (LSI em 2008) e que pressupõe a organização de todo o sistema. O SSI é o que permite criar a interoperabilidade, a coordenação operacional e a miscigenação de bases de dados.

Numa palavra, é o que permite organizar toda esta complexidade das forças e serviços de segurança para um objetivo comum, com uma visão global. Nesse sentido, fiquei surpreendido também com o facto de isso não constar, embora não signifique, obviamente, que não exista uma visão nesse sentido. Ela apenas não foi vertida naqueles documentos que referiu.

Não está a haver uma desvalorização do SSI? Estamos a menos de uma semana do atual secretário-geral sair e até agora ainda não se sabe quem é o sucessor. Há aqui também uma indefinição relativamente ao futuro...
Antes do mais, quero dizer que lamento imenso, como cidadão, a saída do senhor Embaixador Paulo Vizeu Pinheiro da função de secretário-geral do SSI. Porque é, de facto, uma pessoa extremamente competente, com muita experiência,  transversal, com  tal visão superior organizacional de um sistema. Como, aliás, já tinha feito nos serviços de informações quando criou o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), juntando parte do SIS (Sistema de Informações de Segurança) e do SIED (Sistema de Informações de Segurança de Defesa). Quanto a se considero se isso terá sido desvalorizado, sinceramente penso que não.

Penso que agora, à medida que entram nas suas funções, tanto a senhora ministra da Administração Interna, como o Secretário de Estado verão a relevância que tem. Poderem olhar para o SSI como um todo e não para as diferentes capelas que o compõem, com uma perspetiva transversal e interoperacional.

Entretanto, ainda com o anterior governo,  o SSI cresceu, tem hoje quase 200 funcionários, a maior central de sistemas de informações policiais (Ponto Único de Contacto - Cooperação Policial Internacional) e um espécie de mini-SEF que coordena toda a atividade nas fronteiras. Acha que esta orgânica também pode e deve evoluir para uma “Agência”, como o Embaixador defende, com autonomia financeira e com outro tipo de poder e responsabilidades?
Não tenho a menor dúvida disso. Com todo o respeito por quem ocupou estas funções antes, veja-se a diferença do alcance operacional e de coordenação conseguidos por este secretário-geral. Essa Agência,  que superintende as forças e serviços de segurança que estão no terreno, é claramente o caminho que se tem de seguir.

Acompanhou e foi sempre muito crítico da extinção do SEF. Como avalia a situação atual?
Avalio da pior maneira possível. Diria o processo da extinção do SEF é, talvez a ação mais incompetente do período democrático em Portugal. Porque nós tínhamos uma um serviço de segurança com experiência e competência na área de estrangeiros e fronteiras e por preconceito ideológico, acabou-se com anos de experiência adquirida.

Só fico satisfeito porque praticamente todos os inspetores estão na PJ e poderão continuar a transmitir o seu conhecimento.

Enfim, tudo feito com os pés e é uma forma um bocadinho prosaica, mas eu não posso dizê-lo de outra forma. Começa com o ministro Eduardo Cabrita a dizer que fazia isto tudo em 60 dias, naquela que é a maior demonstração de inconsciência daquilo que tinha pela frente.

Depois, daí para a frente, claramente que o governo anterior não tinha uma visão do que haveria de fazer após a extinção do SEF e foi improvisando, transferindo competências a eito, sem critério e sem um edifício estruturado. Algumas fazem sentido, como por exemplo, a PSP ter competências aeroportuárias. 

Acha que o  Plano de Ação para as Migrações que o governo anunciou recentemente é uma solução ou um remendo temporário?
É claramente um programa que se vai implementar. Não diria que é um remendo temporário, mas uma solução temporária necessária. Foi criada uma Estrutura de Missão para resolver as 400.000 pendências. Quanto ao programa em si, depois ver-se-á. Neste momento foi revogada a manifestação de interesse e penso que ela se justifica como provisória. Já não concordarei totalmente se ela for definitiva, mas não é nada disso que está neste momento anunciado pelo Governo. Foi dito que a revogação da manifestação de interesse era provisória para que esta Estrutura de Missão pudesse resolver as 400.000 pendentes.

É subscritor do Manifesto dos 50 por uma Reforma na Justiça. O que concluiu da entrevista da Procuradora-geral da República (PGR), na segunda-feira?
A entrevista da PGR foi extremamente clarificadora. A senhora Procuradora-geral demonstrou a mais absoluta alienação social. Isto ficou absolutamente claro. Há uma questão de cultura no Ministério Público (MP) que investiga.

O MP alheia-se dos efeitos colaterais que as suas investigações possam ter ou não nos cidadãos. Portanto, os cidadãos são aqui meros detalhes. Alheia-se sobretudo da sua responsabilidade jurídica, que é a de acusar com fundamento sólido para essas acusações. De certa forma, usa o edifício processual penal para deixar às instâncias judiciais superiores a correção ou a retificação das inexatidões da investigação.

A senhora Procuradora-geral diz sobre o acórdão do Tribunal da Relação e da própria pronúncia do juiz de instrução, que arrasou os factos e a relevância jurídico criminal atribuída aos factos nas medidas de coação do processo Influencer, que é a justiça a funcionar.

Ou seja, quando o MP não pode desconhecer que tem como função só apresentar aquilo que sabe, que tem um grau de punibilidade elevadíssimo e que é o primeiro degrau de proteção do cidadão, a cultura que ontem foi manifestada é a senhora Procuradora-Geral considera que a função do MP é acusar e depois as instâncias superiores logo veem se está bem acusado ou não. Isso é perigosíssimo. Diria até, usando uma expressão popular que às vezes gosto de usar, “quando se anda de martelo na mão, tudo parece um prego”.

Acho que esta frase se aplica bem à cultura inflamatória no MP, porque a qualquer coisa que tenha um leve esgar de ilicitude ou criminalidade potencial, avança. Se não tiver tido sustentação devida, pois paciência, alheando-se totalmente dos impactos que isso tem nas pessoas e na comunidade. Porque o facto de ter envolvido um primeiro-ministro teve um impacto na comunidade, tendo levado a terminar um mandato de eleição popular. Mas é igualmente grave quando tem impacto em pessoas em particular. 

A PGR considera que há uma campanha “orquestrada” contra o MP, na qual, aparentemente, inclui a ministra da Justiça, que criticou ferozmente...
Teve uma postura de ataque, do ponto de vista político, tanto ao ex-primeiro ministro como ao Presidente da República, mas onde foram ultrapassados os limites, foi nas referências à senhora ministra da Justiça. Foram ultrapassados os limites do relacionamento institucional que deve existir entre um membro do Governo com tutela na área e a Procuradora-geral da República. Até porque a ministra da Justiça referiu-se sempre em abstrato sobre a necessidade de intervir. E quando se fala em necessidade de intervir, não se está necessariamente a criticar o que tem sido feito até aqui. 

Mas quando a Ministra diz que é necessário “arrumar a casa” no MP pode justificar essa reação...
Pois, imagino que sim. Mas repare, antes falei-lhe numa cultura de que existe no MP e essa cultura vem através da própria formação do Centro de Estudos Judiciários. Sinceramente não vi a expressão “arrumar a casa” como algo direcionado.

Vi como a necessidade de repensar toda a cultura investigatória no país para que aquele número, que eu nem sabia, mas ouvi ontem do jornalista Vítor Gonçalves, de que Portugal tem o quádruplo das escutas, que, por exemplo, um país como França ou como a Alemanha,  que têm o quadruplo da população.

Significa que não há uma cultura de respeito pelos direitos fundamentais na investigação criminal, ou seja, que a eficiência investigatória sobrepõe-se ao respeito pela presunção de inocência, por exemplo. E presunção de inocência não é um conceito abstrato. É um comando de grande cautela para a investigação criminal. Não deve condicionar, mas deve haver um grau de certeza jurídica grande quando se conduzem investigações desta natureza. 

Portanto, essa expressão, de orquestração, é muito infeliz. Mas também é reveladora de que a senhora Procuradora-geral, e espero que não o MP, se está a deixar embarcar nesta bipolarização de uns contra os outros. Eu, e fez-me a pergunta como subscritor do manifesto, nunca permitirei isso.

Achei extremamente positivo que a senhora Procuradora-geral viesse a público. Achei extremamente positivo que o procurador-adjunto Rosário Teixeira, tivesse vindo a público. Isso é que é importante. É importante não olharmos dogmaticamente para o edifício jurídico penal que temos hoje, a 9 de julho de 2024. Mas olharmos para ele com a humildade necessária para nos interrogarmos todos uns aos outros, se não fará sentido este ou aquele ajustamento, mas sem ser uma imposição da política para a investigação criminal ou para a Justiça.

Até me custa compreender que se possa dizer que estão em polos opostos. Estão todos no mesmo sítio. Estamos todos a lutar por um país melhor e aí não há bons e maus políticos, bons e maus procuradores. Há bons e maus em todas as profissões. É isso que nos une.

Não é nenhuma cavalgada contra a Justiça ou contra uma determinada classe. E faz sentido repensar. Faz sentido questionarmo-nos sobre o que é que tem estado menos bem. Temos de ter a humildade intelectual e democrática de o permitir.

Exercendo advocacia, o que pensa da expressão “terrorismo judiciário” usada pelo diretor nacional da PJ para caracterizar a utilização de recursos de forma abusiva, por quem tem posses financeiras, para adiar ou até deixar prescrever os seus processos? Admite limitar, de alguma forma, este expediente?
Essa frase do Dr. Luís Neves deve ser lida com a mesma humildade democrática. Ou seja, há aqui algo que um agente muito relevante, que é o diretor nacional da PJ, considera existir. Há uma coisa com que eu concordo totalmente e que se pode retirar dessa frase.

Que é que há claramente uma justiça para ricos e uma justiça para pobres. Não há igualdade de meios. Aquilo a que o senhor diretor nacional da PJ se referiu é ao excesso garantista processual, sobretudo no processo penal.  É muito garantista e isso é bom. No fundo, sob o pressuposto de não permitir ou de dar todas as possibilidades para que nunca ninguém seja condenado injustamente, dá-se todas as possibilidades de recurso.

Mas a prática leva-nos a concluir que só recorrem a todas essas possibilidades de recurso quem tem mais meios, o que gera uma injustiça. E nós temos o dever de humildade de analisar essa circunstância como sendo uma circunstância real, que existe e que é a principal responsável pelo atraso de anos e de décadas nas decisões dos nossos tribunais.

Portanto, se isso está a acontecer e se é pelo pelo edifício garantista do processual penal, pois faz sentido que estejamos disponíveis para o rever. É esse desafio que lança o diretor nacional da PJ. Deve ser ouvido com humildade e interesse.

Enquanto deputado estava a coordenar o processo de revisão constitucional. O que era para si mais importante que tivesse sido aprovado?                                                          Deixe me dizer lhe uma coisa prévia, uma coisa pessoal.  Aquilo que mais me pessoalmente me entristeceu por não poder ter continuado em funções parlamentares foi, precisamente, não ter podido concluir o processo de revisão constitucional. Isso e prosseguir na função de "Special Representative for the Conflict Cycle" no âmbito da OSCE-PA (Representante Especial para o Ciclo de Conflitos, porque é uma função relevante da área da segurança.

Quanto ao processo de revisão constitucional, valha a verdade, estava concluído. Ou seja, ele já ia para a última fase só de aprovação final. Estava a um mês ou dois da sua conclusão, quando foi interrompido abruptamente. É uma pena, porque era uma revisão importante que se ia fazer ao país.

Agora, deixe me dizer lhe que o propósito de todos os partidos foi de melhorar a Constituição. Não propriamente refundar a Constituição. E nesse sentido, eu, respondendo à questão que me colocou, diria que, do ponto de vista político, há três ou quatro medidas que tenho pena que não tenham avançado.

A limitação de mandatos na Assembleia da República é uma delas. A Assembleia da República determina a limitação de mandatos para todas as outras funções, menos para si própria. Não é a circunstância de ter havido um reforço de poderes no Presidente da República, nomeadamente na nomeação das entidades reguladoras que tiraria das entidades reguladoras uma certa suspeição quanto a afinidades político partidárias. E ficaria no mais alto magistrado da Nação essa responsabilidade.

Depois, a proteção constitucional dos conceitos da equidade intergeracional, onde estava a questão do voto aos 16 anos e da coesão territorial. Também não posso deixar de referir aquelas que foram as medidas mais mediáticas, que também é uma pena não terem passado, que é a definição das condições de confinamento. Aproveitar que tivemos uma pandemia e que tivemos de recorrer a um confinamento sem soluções jurídicas para isso que esta revisão resolveria.

Outra medida que ficou por tratar é o acesso a metadados pelos serviços de informações. Portugal a ser o único país da Europa cujos serviços de informações não têm acesso a metadados. Coisa absolutamente incompreensível. Há um travão constitucional a essa circunstância. Ia ser resolvido e não foi, infelizmente.

Uma questão que o PSD defendia nesse âmbito, e que o separava do PS, era reforma do sistema eleitoral. Não estranhou que não tivesse havido nenhuma referência a essa proposta no programa eleitoral para as eleições de 2024, nem no programa do governo?

Deixe me dizer lhe que esta já não estranho tanto porque, enquanto acho que há uma visão transversal sobre o Sistema de Segurança Interna, aqui há necessidade de alterações no sistema eleitoral.

Já é algo que uma direção política pode ter e outra que possa, eventualmente, não ter.  O que é legítimo. E deixe-me dizer lhe que que a reforma do sistema eleitoral não ia ser feito pela via constitucional, ia ser feita por outra via.  Porque a reforma eleitoral era para ser discutida noutro âmbito e com a alteração de outro tipo de leis. Nem é uma das principais consequências da revisão constitucional.

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