Alexandra Marques e os Retornados: “O que se diz hoje, 50 anos depois, é muito mais suave do que realmente aconteceu”
Gerado Santos

Alexandra Marques e os Retornados: “O que se diz hoje, 50 anos depois, é muito mais suave do que realmente aconteceu”

O DN conversou com a ex-jornalista e historiadora Alexandra Marques sobre o seu mais recente livro - Deixar África (1974-1977) -, que completa os Segredos da Descolonização de Angola. A autora fala de traumas e de perdas e prepara um próximo volume sobre o tema.
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No livro, descreve um episódio em que um editorial no jornal A Tribuna  originou a prisão do diretor, por revelar descontentamento sobre a forma como estava a ser conduzido algum aspeto da descolonização. O que é que isto significa?
Sim, escreveu algo que desagradou profundamente às autoridades militares. O alto comissário de Moçambique era o almirante Vítor Crespo, mas em Angola também muitos diretores de jornais foram saneados. Mas aconteceu também em Portugal. Portanto, no período de José Saramago, no Diário Notícias, e outros. E quando foi fechada A República e a ocupação da Rádio Renascença. O período pós-25 de Abril é pouco estudado ainda, ou então estudado do ponto de vista oficial, do prisma institucional, do prisma que não confronta as instituições, a Igreja, as Forças Armadas, o poder político, as forças de segurança. Portanto, todas essas instituições são vistas durante o período pré-constitucional como tendo feito o que podiam em prol da liberdade, de dar mais direitos. O programa dos três ‘D’ - descolonizar, democratizar e desenvolver -, do MFA [Movimento das Forças Armadas]. Mas a verdade é que não foi tudo, esse período de dois anos foi bastante conturbado e, portanto, houve direitos, liberdades e garantias que foram cerceados, tanto na antiga metrópole, em Portugal, como nas ainda colónias, porque ainda não tinham sido concedidas as independências. Os próprios responsáveis militares, tanto Rosa Coutinho em Angola, como Vítor Crespo em Moçambique, asseguraram-se que tinha que haver um controle informativo e uma censura, não só da imprensa. Quem não estivesse com a revolução e com a descolonização era inimigo. Portanto, no fundo, é a mesma visão existente antes do Estado Novo, só que, ao contrário. Quem não está com o PREC [Processo Revolucionário em Curso] está contra ele e é indesejado e saneado.

Seria uma reação, face ao fantasma do Estado Novo?
A justificação é que a guerra ainda não tinha terminado. Em Angola, Portugal faz um cessar-fogo unilateral. Em maio de 1974, só a UNITA [União Nacional para a Independência Total de Angola] faz logo tréguas, portanto, a seu pedido - Jonas Savimbi pede -, mas o MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola] e a FNLA [Frente Nacional de Libertação de Angola] não param, não declaram tréguas. E havia também o receio de um contragolpe de direita, com o apoio da África do Sul e da Rodésia, o que também foi extremamente empolado para justificar essas medidas de detenção, prisão, perseguição, enfim, a quem não estava a favor.

O Acordo do Alvor não trouxe equilíbrio aos movimentos de libertação?
Isto de fazer uma transferência de soberania para um movimento, como foi com a Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique], é mais simples. Agora, com três movimentos que desconfiam uns dos outros, é extremamente delicado, e a delegação portuguesa no Alvor esteve permanentemente a fazer um jogo de cintura. Mas tudo o que foi discutido no Alvor já tinha sido previamente acordado com Agostinho Neto, o MPLA, porque, no fundo, os decisores portugueses que estiveram no Alvor - Melo Antunes, Almeida Santos, Mário Soares, mas, sobretudo, Melo Antunes, que é o grande homem da descolonização, é o ministro sem pasta - queriam favorecer o MPLA, porque consideravam ser o mais preparado, que tinha os melhores quadros, e, portanto, tanto a UNITA como a FNLA estavam sempre desconfiados que houvesse um favoritismo. Agora, nesta questão toda, os interesses dos portugueses que viviam em Angola não foram propriamente defendidos nem protegidos. Mas isso, o livro Os Segredos da Descolonização de Angola conta.

A principal queixa  de quem veio para Portugal na sequência da descolonização é a perda dos seus bens. Vivia-se bem nas antigas colónias?
Quando nós hoje falamos do viver bem, achamos que é viver com luxos, faustosamente. Não é verdade. É exatamente como era a sociedade portuguesa de então. Havia uma elite, uma minoria, como ainda hoje existe, mas que na altura do Estado Novo eram as grandes famílias, que tinham poder económico. Também havia em Angola e em Moçambique, essas famílias muito abastadas. Mas que eram, o quê, 5%? Nem tanto, porque a esmagadora maioria da população vivia do seu trabalho, ou tinha pequenos negócios. Tinha uma oficina, um café, uma cantina. Ou eram empregados do Estado, professoras, funcionários das finanças. Portanto, no fundo, faziam parte do quadro administrativo. Não tinham uma vida faustosa. O que é que eles tinham que em Portugal não havia? Em Portugal, por muito que se trabalhasse e se ganhasse, e se trabalhasse para o Estado, não se conseguia adquirir uma casa. Portanto, quase todos os portugueses viviam em casas arrendadas. E lá era possível comprar um terreno, exatamente pela posição de colono, e construir a casa. Muitos deles tinham a sua casinha, térrea, ou quem já tinha mais rendimentos, construía um prédio de três andares, vivia num ou dois apartamentos e vendia aos outros, ou arrendava, e viviam disso. Mas não era aquela vida que se imagina: comiam todos lagosta, tinham criados, e faziam safaris. Não. Isso era uma elite. Em Portugal também.

No livro, refere que havia uma exploração do medo por parte do MPLA e FNLA. Tentavam que as populações negras tivessem medo das populações brancas e exploravam esta tensão racial. Funcionou em prol do movimento de libertação da Angola?
Obviamente. Quando se espalham boatos, e era de parte a parte, porque também havia um setor mais radical branco que lançava boatos de que os africanos, os negros, estavam a atacar ou que iam atacar, mas aí com intuitos de revolta, de escorraçar os portugueses, isso é uma tática revolucionária que não foi usada só em Angola ou em Moçambique. Em Portugal, durante o PREC, também se instigavam os trabalhadores a agredirem atacarem os patrões, a ocuparem invadirem e portanto acicatando. ‘Vocês foram explorados, vocês têm razões para...’ Portanto isto trata-se de um empoderamento revolucionário em que as pessoas dizem pois temos, é verdade fomos explorados. Tudo isso é o acender do rastilho que depois não se controla. Quando temos os ataques aos moceques ou populações a revoltarem-se é exatamente porque estão a ser manobradas pelos comités da ação popular, mas isso também havia cá em Portugal durante o PREC.

A descolonização podia ter sido feita de outra forma?
Quando estive a escolher o tema para a tese de doutoramento, um dos professores, de uma das universidades, disse: “Você não vai querer fazer uma tese sobre se seria possível outro tipo de descolonização, pois não?” E eu aí percebi que não poderia fazer uma tese sobre isso, mas que poderia escrever um livro, ou vários. E, assim, retrospectivamente, ou 50 anos depois, não podemos olhar para o passado e dizer, sim, era possível fazer de outra maneira. Mas também não podemos ser tão submissos à versão oficial e dizer que foi a única maneira possível. Talvez não tenha sido exemplar, mas foi a possível. Este é o discurso do Partido Socialista, Mário Soares, Almeida Santos. Melo Antunes discorda e diz: “Não, foi a descolonização que quisemos”. Foi a descolonização que o MFA quis. Portanto, os documentos mostram que houve muitas outras decisões que poderiam ter sido tomadas. Uma delas foi a disponibilidade das Nações Unidas em oferecer meios logísticos para, já na primavera-verão de 1975, verão quente em Portugal, período mais complicado em Angola, porque a Guerra Civil já está em todo o território, as populações poderem ser evaquadas. Só há dois locais de embarque: Luanda e Nova Lisboa. Muitos estão a fugir para a África do Sul, para os tais campos de refugiados. Portanto, através da Namíbia, que era o sudeste africano. Outros vêm nas traineiras. O Presidente da República, a Comissão Nacional de Descolonização, os governos gonçalvistas, os dirigentes, sobretudo do Partido Socialista e do Partido Comunista, dizem: “Não, Nações Unidas não, porque há uma ligação aos Estados Unidos e não queremos ajuda... Isto vai dar má imagem. Isto vai mostrar que o novo regime não soube lidar com a questão e vamos ficar mal na fotografia perante a comunidade internacional”. E, portanto, esse foi o motivo pelo qual não quisemos. Ou seja, deixámos chegar ao extremo de depois o Presidente Costa Gomes ter de escrever uma carta ao Gerald Ford, ao seu homólogo americano, a dizer: “Por favor, ajudem-nos, mandem aviões”. É claro que a Euroflot também voou. Portanto, os países de leste e os países não alinhados ajudaram. É claro que grande parte veio dos países já da União Europeia - Comunidade Económica Europeia [CEE], na altura - e dos Estados Unidos. Mas houve uma contrapartida, que, aliás, está mencionada no Segredos: Henry Kissinger, na altura, tem uma frase muito curiosa que é: “Os Estados Unidos não são uma instituição de caridade. Portanto, nós damos essa ajuda, mas o primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, tem que deixar o governo”. E deixou.

Foi uma chantagem?
Uma chantagem. Ou seja: “Queremos garantir que Portugal continua a pertencer à NATO. Portanto, sim senhor, somos vossos aliados, mas não podem continuar a ter um governo liderado por Vasco Gonçalves e a caminharem para um golpe revolucionário”, que, tudo fazia prever, foi travado pelo 25 de Novembro, embora agora se diga que não, que não havia nenhum golpe preparado.

Houve vários golpes, nomeadamente o 11 de Março.
O 11 de Março. Diz-se que foi a reação à tentativa do Spínola... Pronto, a verdade é que, com as nacionalizações, a distribuição de armas, acho que é óbvio que não... O que se diz hoje, 50 anos depois, é muito mais suave do que realmente o que aconteceu. E, por isso, quando, 50 anos depois, vamos falar com pessoas que vieram da África, é natural que elas próprias recordem de uma maneira diferente. Enquanto que os documentos que eu consulto são documentos que mostram feridas abertas. As pessoas estão a sofrer naquele momento. Estão a sentir raiva, revolta contra os políticos do passado, do Estado Novo e da democracia, ou pelo menos do período pré-constitucional. E ali, sim, as emoções estão sem filtro.

A Comissão Executiva de Repatriamento falhou a sua missão?
A missão foi cumprida, as pessoas vieram. Os movimentos armados angolanos diziam: “As pessoas podem ir, mas os bens ficam”.É claro que algumas pessoas tentaram trazer a sua ferramenta de trabalho, até máquinas de escrever, para depois poderem cá começar uma profissão ou trabalhar. Mas, realmente, vieram, sim, vieram. As condições em que vieram e, depois, as condições em que foram recebidos em Portugal, isso será um tema a tratar futuramente.

Num próximo livro? Vai ser uma trilogia?
Exatamente. Esta saga só termina analisando agora o que passaram, como foi, como foram recebidos, o estigma que sofreram por ter vindo de África, os choques culturais, a reação das próprias famílias. A própria Dulce Maria Cardoso já disse: “Nós teríamos sido muito bem recebidos se viéssemos ricos, mas viemos pobres. E a pobreza afasta mais que a cor da pele”. As minorias que são discriminadas pela cor da pele, quando têm dinheiro são muito bem recebidos nos nossos hotéis e nas nossas lojas, sejam angolanos, guineenses, moçambicanos. Mas se forem pobres e brancos, já não são bem recebidos. E Portugal estava a enfrentar uma crise. Temos que lembrar que o FMI esteve em Portugal em 1978. A primeira vez que é chamado é no governo de Mário Soares, em 1978. Portugal estava numa crise económica profunda e recebe estes quase um milhão de pessoas, que não são 500 mil, são seguramente mais de meio milhão, embora alguns tenham emigrado para o Brasil, Venezuela e África do Sul. Alguns não retornaram depois quando entramos para a CEE, mas esta gente não era bem-vinda, esta gente não era considerada portuguesa. E há realmente histórias de cartas - mas isso será apenas um cheirinho para o próximo livro - de casos profundos de depressão, de perda de vontade de viver, de dizer: “Eu já não estou cá a fazer nada, tiraram-me tudo, queria morrer na minha terra, ou queria deixar os ossos em África”. É esse lado humano que me interessa explorar.

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