"Precisamos de sentir que contamos para alguma coisa. Além de pagar impostos"

João Miguel Tavares defendeu que todos contam para um Portugal melhor e mais justo: o velho que perdeu tudo nos incêndios de Pedrógão, o miúdo que habita na pobreza do Bairro da Jamaica ou ao cabo-verdiano que veio em busca de um futuro melhor para os seus filhos.

O presidente das comemorações do 10 de Junho, João Miguel Tavares, defendeu esta segunda-feira que os portugueses precisam de sentir que contam. "Nós precisamos de sentir que contamos para alguma coisa", disse. Acrescentando num aparte nada inocente: "Além de pagar impostos."

Num discurso que o próprio prometeu ser ao seu estilo, o comentador convidado pelo Presidente da República para presidir à Comissão Organizadora do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em Portalegre, afirmou que "a política não falha apenas quando conduz o país à bancarrota", "falha" também "quando deixa o país sem rumo e permite que se quebre a aliança entre o indivíduo e o cidadão".

Antecipando então a sua afirmação de que todos contam, João Miguel Tavares reiterou que "aquilo que melhor distingue as pessoas não é serem de esquerda ou de direita, mas a firmeza do seu carácter e a força dos seus princípios". Logo: "Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos deem alguma coisa em que acreditar. Que alimentem um sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objetivo claro à comunidade que lideram."

"Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos deem alguma coisa em que acreditar."

Falando depois de ter sido tocado o hino nacional, de o Presidente da República passar revista às tropas presentes e de uma cerimónia militar, João Miguel Tavares sublinhou que "cada português precisa de sentir que conta, precisa de sentir que os seus gestos não contribuem apenas para a sua felicidade individual, ou para a felicidade da sua família, mas que têm um efeito real na sociedade, e podem, à sua medida, servir o país".

Tavares exemplificou: "É preciso dizer ao velho que perdeu tudo nos incêndios de Pedrógão - tu contas. É preciso dizer ao miúdo que habita na pobreza do Bairro da Jamaica - tu contas. É preciso dizer ao cabo-verdiano que trocou a sua terra por Portugal, em busca de um futuro melhor para os seus filhos - tu contas, e os teus filhos não estão condenados a passarem o resto das suas vidas a limpar as casas da classe alta de Lisboa ou do Porto."

Centrando também o seu discurso na educação, o presidente das comemorações acrescentou que "é preciso dizer à mãe ou ao pai que se sacrifica diariamente para que o seu filho possa estudar numa boa escola - tu contas, o teu esforço não será desperdiçado, e enquanto cidadão português tens os mesmos direitos e a mesma dignidade que um primeiro-ministro ou um Presidente".

Para João Miguel Tavares, "aos políticos que dirigem Portugal, e representam os seus cidadãos, compete-lhes contribuir para esse esforço, propondo-nos um caminho inteligível e justo".

"Aos políticos que dirigem Portugal, e representam os seus cidadãos, compete-lhes contribuir para esse esforço, propondo-nos um caminho inteligível e justo"

O presidente das comemorações do 10 de Junho invocou, no arranque do seu discurso, a sua condição de portalegrense para notar que tem "a honra de ser o primeiro filho da democracia a presidir" aos festejos do Dia de Portugal. "Não sei o que é viver sem liberdade. Devo ao Portugal democrático e ao Estado português boa parte daquilo que sou. Sou filho de dois funcionários públicos. Fiz o ensino básico e secundário numa escola pública. Licenciei-me numa universidade pública. Portugal não falhou comigo. Permitiu que um simples estudante de uma cidade do interior, sem qualquer ligação à capital e às suas elites, fosse subindo aos poucos na vida e chegasse até aqui."

Hoje, sublinhou Tavares, depois de os portugueses terem lutado "pela liberdade em 1974", "pela democracia em 1975", "pela integração na Comunidade Europeia nos anos 80" e "pela entrada na moeda única durante a década de 90", "não é fácil saber porque é que estamos a lutar hoje em dia".

Partindo "dos nossos próprios fracassos" e de um "desinteresse pela política", o presidente das comemorações defendeu que "a integração na Europa do euro não correu como queríamos", que se construíram "autoestradas onde não passam carros" e se traçaram "planos grandiosos que nunca se cumpriram". "Afundámo-nos em dívida. Ficámos a um passo da bancarrota. Três vezes - três vezes já - tivemos de pedir auxílio externo em 45 anos de democracia. É demasiado."

Alinhando argumentos bebidos na atualidade, como a criação de comissões parlamentares em que se descobriu "um país amnésico, cheio de gente que não sabe de nada, que não viu nada, que não ouviu nada", João Miguel Tavares apontou o facto de "a corrupção" ser "um problema real, grave, disseminado, que a Justiça é lenta a responder-lhe e que a classe política não se tem empenhado o suficiente a enfrentá-la". "A corrupção não é apenas um assalto ao dinheiro que é de todos nós - é colocar cada jovem de Portalegre, de Viseu, de Bragança, mais longe do seu sonho."

"Um jovem talentoso que queira singrar na carreira exclusivamente através do seu mérito, a melhor solução que tem ao seu alcance é emigrar. Isto é uma tragédia portuguesa."

Segundo João Miguel Tavares, está instalada no país uma "convicção perigosa": "Um jovem talentoso que queira singrar na carreira exclusivamente através do seu mérito, a melhor solução que tem ao seu alcance é emigrar. Isto é uma tragédia portuguesa. Não podemos condenar os nossos filhos ao discurso fatalista de um Portugal que é assim, porque nunca foi de outra maneira."

O presidente da comissão organizadora notou que hoje "há o 'eles' - os políticos, as instituições, as várias autoridades, muitas das quais (receio bem) se encontram hoje aqui presentes" e "há o 'nós' - eu, a minha família, os meus colegas, os meus amigos". "Entre o 'nós' e o 'eles' há uma distância atlântica, com raríssimas pontes pelo meio. 'Eles' não têm nada a ver connosco. 'Nós' não temos nada a ver com eles." É por isso que Tavares defendeu que "Portugal precisa cada vez mais de um 10 de Junho feito de pessoas comuns e para pessoas comuns", que seja "um 10 de Junho que aproxime as linhas entre o 'nós' e o 'eles'."

Contrariando Marcelo Rebelo de Sousa, o antigo jornalista notou que "o senhor Presidente da República costuma dizer com frequência que os portugueses, quando querem, são os melhores do mundo", no entanto "não há qualquer razão para os portugueses serem melhores do que os finlandeses, os nepaleses ou os quenianos. Mas tenho uma boa notícia para dar: também não precisamos de ser melhores. Para quem ainda acredita numa ideia de comunidade, os portugueses são aqueles que estão ao nosso lado. E isso conta. E conta muito."

Para Tavares, "se alguma pessoa emproada vos perguntar pelo vosso currículo, digam-lhe que currículo tem tanto o académico que decide dedicar a sua vida ao estudo como o pai que decide dedicar a sua vida aos filhos. Currículo tem tanto o cientista que dedica o seu tempo à investigação como o reformado ou o jovem que dedicam o seu tempo a ajudar os outros. São diferentes tipos de currículo, mas são currículo."

João Miguel Tavares concluiu o seu discurso com essa nota de que todos contam. Respondendo à pergunta de "quem és tu", o presidente das comemorações tem uma resposta pronta: "Sou um cidadão que todos os dias faz a sua parte para que possamos viver num Portugal melhor e mais justo." E rematou: "Isso chega - aliás, não só chega, como é aquilo que mais falta nos faz."

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