"Os partidos estão a ver as suas ideologias destroçadas – está a acontecer em toda a parte"
Nesta semana assistimos à polémica do Livre, na semana passada assistimos à polémica do Chega. Até que ponto é que a chegada destes novos partidos ao Parlamento mudou a realidade política?
Eu acho que só pode ser bem entendido, em relação à própria União Europeia (UE), porque penso que cada um de nós - é um ensinamento do Ortega - nasce com um imperativo e a luta é com a circunstância. Não dominamos a circunstância e a circunstância vai renovando os desafios. A UE tinha uma política de metades - havia duas meias Europas, duas meias Alemanhas, com duas meias cidades de Berlim, e depois havia, no antigo Terceiro Mundo que estava a desfazer as suas ligações com os ocidentais, combates em toda a parte. A circunstância europeia era muito dominada pela resposta da democracia cristã e é isso que leva à formação do CDS em Portugal, o que se compreende em relação à época. A circunstância mudou porque, mesmo quando acabou a política de metades, com o fim do comunismo na Rússia, entrou imediatamente a metade que tinha estado subordinada ao sovietismo, com todas as exigências, todos os projetos e o futuro da metade que era dominada pelos partidos da democracia cristã. Houve, a meu ver, um equívoco que ainda hoje está a ter efeitos: tinham passado quase 50 anos e a metade do oceano tinha experiência de regimes democráticos já com 50 anos, os outros lutavam pela soberania que tinham perdido porque estavam submetidos. Ainda hoje, mesmo na Alemanha, eles têm uma linguagem que continua a identificar os que estavam para lá do muro. É evidente que neste aglomerado de Estados, que tem alguns que são os que explicam a identidade de uma coisa que se chama Europa - isso, o Camões já sabia quando disse que Portugal era cabeça da Europa toda. Mas veio acompanhado de uma desordem mundial que é assustadora. Em primeiro lugar, o império que chamo euromundista e que era todo dos países do Atlântico - Holanda, Bélgica, França, Portugal - desapareceu por grande intervenção dos Estados Unidos, país que dominou a redação das Nações Unidas. O que é que temos neste momento? Vou recordar uma carta de um dos fundadores desta Academia [das Ciências], o abade Correia da Serra, para o Jefferson, pois eram muito amigos, o Jefferson deixou mesmo um texto em que dizia: "Este abade é o homem mais culto que conheci na minha vida." Nessa carta, o abade diz ao Jefferson - que tinha redigido a Declaração de Filadélfia, fez um manual constitucional que ainda hoje é lido: "Vocês vão coordenar o norte deste continente, o Brasil vai coordenar o sul." Se eles hoje se pudessem encontrar era com certeza um encontro de tristeza e em silêncio, porque os EUA, com este imprevisível presidente da República que têm, vão cortando os fios da solidariedade atlântica; África vê nascer aquilo a que eu chamo a eucracia, porque não é a democracia, é o "sou eu que mando", e isso está a aparecer com uma mortandade, conflitos internos, violação de direitos humanos, que é uma coisa lastimável. No Cáucaso, a anarquia dos países muçulmanos. As notícias últimas do Irão e do Iraque são assustadoras. E, em vez da paz que era o objetivo da utopia dos Nações Unidas, que veio até com expressões que têm um ar poético - "mundo único", o que quer dizer que não há guerras, ou "a Terra, casa comum dos homens" -, isto está completamente metido entre parêntesis, porque aquilo que temos neste momento, a meu ver, é o que eu chamo uma arena global. Não há ordem internacional respeitável.
Nas suas crónicas mais recentes falava de uma coisa chamada Outono Ocidental. Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Salvini em Itália, Orbán na Hungria...
É por toda a parte, é a eucracia. Já não lhe chamo ditadura, é a eucracia - quem manda sou eu. Isso está-se a ver na América Latina, está a ressurgir nos países que lutaram pela soberania. Foi o que eu há pouco tentei explicar: os que vieram do Leste estiveram 50 anos a lutar pela soberania, nós foi pela democracia. Isso ainda não está resolvido.
Portugal corre o risco de vir a tornar-se uma eucracia?
Não, não é isso. Ouça, não mostre essa inquietação a ninguém [risos]. Não, porque além da reforma das mentalidades portuguesas, que é evidente, as dificuldades económicas estão expressas nas palavras do cardeal... O cais de embarque... Nós temos de ver sempre - a meu ver - que somos um país exógeno. Temos de estar atentos à circunstância de que não somos nós que mudamos. Podemos - disso não estamos proibidos - ter uma visão inteligente e uma voz portuguesa para enfrentar as mudanças, mas não para as impor ou impedir sozinhos, isso não podemos. O país não tem essa dimensão. Fiquei muito feliz no ano passado porque me apareceu um livro - enorme, lindo - de uma universidade sul-americana, cujo título é A Doutrina Ibérica da Paz. É o ensino na Universidade de Coimbra, de Évora e de Salamanca na época das descobertas quinhentistas. A discussão sobre a natureza da dignidade dos povos que se encontravam, sobre se havia o direito de ocupar terrenos que já tinham lá gente, toda esta problemática é do Património Imaterial da Humanidade. Estamos lá.
Acha que uma das coisas que nos salva dessa eucracia poderá ser o facto de termos tido nesta época um Presidente como Marcelo Rebelo de Sousa?
Acho que ele representa isso, mas também o Dr. Mário Soares representou isso. Eu acho que na série da geração que enfrentou a mudança, Mário Soares tem de ter sempre um papel justo e reconhecido. Ao atual Presidente da República podem-lhe fazer pequenos reparos, que de vez em quando fazem, mas ele é igual a si próprio. Fui muito amigo do pai dele, que andou comigo neste liceu aqui, o Passos Manuel, do 1.º ao 7.º ano. Ficámos amigos para toda a vida. E ele foi sempre considerado pelos pais como uma pessoa excecional e, realmente, as intervenções que tem feito mostram a grande capacidade de apagar linhas vermelhas. É o grande serviço que ele está a prestar. Penso que isso pode ser uma grande contribuição para, finalmente, termos um conceito estratégico nacional que mantenha a solidez. Nós só temos um Parlamento, um governo e um Presidente da República. Há de haver qualquer coisa para os três se unirem, e isso é o conceito estratégico nacional. E nisso ele é eficacíssimo - sem o dizer, as intervenções vão nesse sentido.
No último Congresso do CDS, no qual o senhor foi homenageado, afirmou que morria com culpa porque a sua geração tinha deixado uma herança pesada às gerações seguintes. Sente que isso, de alguma forma, está a ser corrigido pelas atuais gerações?
Não sei se não é preciso dizer que a readaptação de Portugal à conjuntura precisava que a conjuntura fosse estável. Portanto, o desafio tem sido constante. Acho que a resposta dada na altura foi séria, sobretudo com o general Eanes, mas do ponto de vista doutrinal, popular, foi Mário Soares, a grande propaganda que ele fez. Ele era muito maleável no entendimento das diferenças e tinha, nesse aspeto, uma boa formação. Fui amigo dele desde ainda muito novo até ele morrer, visitei-o muito nos dias últimos em que estava realmente muito abatido. Ele foi muito atingido pela morte da mulher, que era uma pessoa extraordinária também, de quem eu fui muito amigo. Mas o organismo que neste momento precisa de grande atenção, porque a circunstância externa que nos domina é muito variável, está todos os dias a mudar, é o aparelho diplomático muito competente, como tem sido, com meios, sempre na ideia de que a competição continue a ser de influência e não de imposição. E também o reconhecimento de que não são só as pessoas que têm direitos iguais e igual dignidade, as instituições também. As instituições precisam de ver respeitada a sua dignidade para poderem intervir. Tenho reparado que apesar das debilidades estruturais das Forças Armadas, a intervenção nas coisas internacionais tem apoiado muito o prestígio das intervenções diplomáticas.
Fala da dignidade das instituições, mas o que se tem visto recentemente em Portugal é uma certa quebra dessa dignidade em algumas classes profissionais. Falamos dos polícias, a classe dos professores também está sempre a dar de si, os médicos igual. Como é que vê esta degradação, de certa forma, das instituições?
O que eu disse é a advertência a isso. Ainda há gente em Portugal que sabe isso, repara nisso, espero que intervenha nisso. Esse discurso que referiu foi o que eu fiz uma vez na Assembleia da República. Eu disse que em Portugal diz-se que a culpa morreu solteira. Comigo não vai resultar, porque temos de pensar que a situação difícil do país é porque não fizemos a tempo aquilo que provavelmente poderíamos ter feito e deveríamos ter feito. Deve ter havido omissões. Quando fizerem o inventário dessas omissões, eu também hei de lá estar com culpa. É o que temos de fazer, porque penso que o que estamos a deixar à geração futura é muito pesado. Tenho estado a reparar, mas não quero fazer grandes comentários sobre isso. Lembram-se da época da movimentação da juventude europeia, que foi uma época turbulenta. Nesta data, em que, por exemplo, o problema da ecologia é fundamental - aquela miúda que anda a fazer discursos, tenho uma admiração por ela enorme, porque ela anda a ver se lhe melhoram a herança [risos] e tem razão.
Nesta semana saíram dados de 2018 sobre a pobreza e, apesar dos pequenos avanços, continuamos a ser um país onde um em cada três portugueses está em situação de pobreza, sobretudo portugueses que estão a trabalhar. O que é que isto diz sobre o que ainda falta fazer, sobretudo sobre a capacidade da classe política para resolver os problemas do país?
Bom, não quero desfazer na capacidade do pessoal político - nós é que os escolhemos. Há um fenómeno que se vê na Europa toda, sobretudo na parte que foi a metade democrática, e que é uma espécie de tédio. É por isso que há abstencionismo, as populações estão cansadas de andar a votar e a situação continua caracterizada dessa maneira. Portanto, há esse tédio que tem de ser vencido. Tédio é a palavra benevolente que eu encontro para explicar este abstencionismo. Isto pode ser poético: o Torga, que era transmontano, disse que tinha uma importância extraordinária o espírito santo do povo. Eu nasci numa aldeia muito pobre de gente com carências. O meu pai e a minha mãe eram fantásticos. Essa gente, neste ano quando eu fiz anos, conseguiu fazer uma reunião transmitida para Lisboa, para a minha televisão, em que estava a população da aldeia a cantar os Parabéns a Você, e uma rapariga do meu tempo, que agora já tem oitenta e tal anos, fez um poema. Acho que é este espírito do povo que tem de ser animado. Não podemos esquecer isso. Tem que ver com a identidade, mas o espírito santo do povo ainda cá está.
E vê a atual classe política com essa capacidade para animar o povo?
Em relação a isso, vou ler o Diário de Notícias para ver a que conclusões vocês chegam [risos].
Mas governar, sobretudo neste contexto que já descreveu tão bem, em que tudo muda tão rapidamente, torna-se uma tarefa ainda mais difícil independentemente de quem está no poder. A verdade é que temos um governo que acabou de tomar posse e que vai governar em circunstâncias políticas, apesar de tudo, diferentes daquelas em que governou nos últimos quatro anos. A estabilidade política é, para si, mais difícil no atual contexto ou António Costa já deu provas de que é habilidoso o suficiente?
Não, nunca se sabe se é habilidoso o suficiente. Agora, que tem uma competência para coordenar as diferenças, isso tem. O que é que vai acontecer no futuro, é muito impossível diagnosticar, porque não depende só da evolução dentro do estado de espírito e das circunstâncias do país. A circunstância externa é muito importante e, portanto, nós estamos, com a nossa situação exógena, à espera de que o espírito santo do povo ilumine os governantes para encontrarem as respostas apropriadas, mas tendo sempre presente que eles lutam com uma circunstância em que a nossa interferência é muito débil, à nossa medida.
No atual estado político há um partido que lhe diz muito e que está numa crise forte, que é o CDS. Este é o seu CDS?
Não, o núcleo continua a ser. Nunca tive grande intervenção em partidos, só tive no CDS, e fui convidado para isso pelo Freitas do Amaral, pelo meu amigo Narana Coissoró e pelo Amaro da Costa - o pai dele tinha sido meu subsecretário -, e eles foram-me visitar e explicaram-me que tinham sido convidados, e isso é sabido, para organizar um partido desses. Em relação ao CDS, queria dizer o seguinte: a doutrina social da igreja continua a ser o núcleo do CDS.
Há muito quem ache que o CDS está a abandonar a democracia cristã e a encostar-se cada vez mais à extrema-direita. Não vê as coisas assim?
Para mim, o CDS é o da democracia cristã. Sempre que posso chamo a atenção para o Papa Francisco, que está numa luta tremenda, não apenas pelos ataques - alguns com fundamento -, mas pela capacidade que ele tem de dizer o que acha que está mal, e não hesita em fazer isso. Esta viagem que está a fazer pelo Oriente é espantosa. Foi duas vezes chamado às Nações Unidas e eu acho que quando ele disse "esta economia mata", estava ali o centro da intervenção da democracia cristã. Eu que já não tenho uma vida ativa nisso, e que nunca tinha pertencido a qualquer organização política, mantenho-me fiel.
Acha que o CDS devia ouvir mais o Papa Francisco e dedicar-se menos à querela política?
O Papa Francisco é uma referência fundamental da doutrina social da igreja e eu mantenho-me fiel.
Porque é que acha que foi tão mau o resultado do CDS nestas eleições?
Não sei, não estou no ativo. Espero que as palavras do Papa Francisco estejam a contribuir para transformar a arena global em que o mundo se encontra. Ele tem consciência disso, porque senão não fazia as viagens que faz, com a saúde débil que tem. É extraordinário.
Nesse sentido, acha que essa doutrina social da igreja e a democracia cristã estão a fugir do espectro político português?
Não. Aquilo que aconteceu, penso eu, foi que justamente a evolução científica, técnica, etc., e uma doutrina, que já vinha do século XVIII, de que tudo aquilo que os Estados davam à Igreja se devia transferir para a ciência, levantou por toda a parte a separação a Igreja e do Estado. A impressão que eu tenho, além dos erros que também não podemos negar, dos movimentos que há neste momento também contra a Igreja Católica - nos EUA é extraordinário até o financiamento que está a ser feito -, é que o movimento da ocidentalização foi acompanhado pela doutrinação católica. Portanto, quando o Terceiro Mundo se movimenta contra as potências que tiveram os impérios coloniais, a Igreja também sofre com isso. Em todo o caso, sendo certo que o combate é muito intenso, entendo que há uma coisa que para a democracia cristã tem de ser posta: o eixo da roda. Eu uso muito esta expressão, o eixo da roda acompanha a roda, não anda. Portanto, o núcleo de valores é o eixo da roda, mas acompanhamos a roda.
A propósito do eixo da roda, Basílio Horta, que é um dos fundadores do partido, dizia na semana passada, na entrevista DN/TSF, que o CDS já tinha morrido politicamente, que não se morre apenas formalmente, também se morre politicamente.
Ele não falou no eixo da roda. O que acontece é que o ambiente, a circunstância, movimentou-se num sentido de que o credo dos valores, em toda a parte, foi superado pelo critério dos interesses. É isto. Por toda a parte é o que há. Ainda aqui há tempos li um ensaio a que achei graça, porque há uma observação do Tolstói que dizia: "As ciências exatas dizem-nos a causa das coisas, nunca o que devemos fazer." Li um comentário de um cético, já cansado desta coisa, deve-se estar a despedir da vida ou assim, que disse isto: "As ciências exatas, incluindo a economia, que pretende ser uma ciência exata, quando não conseguem resolver um problema, mudam de problema." [risos]
Não lhe vou perguntar pelo processo de liderança interna que o partido está a atravessar, mas pelo debate ideológico que o partido está a ter. Uma das partes desse debate ideológico passa por alguns protagonistas do CDS atual dizerem que o CDS não tem de ter medo de se assumir como um partido de direita. Concorda com isto?
Com o que eu não concordo é com a importância que continua a ter a direita-esquerda, direita-esquerda. Como sabem, é uma coisa que nasceu de um acaso na Revolução Francesa - os deputados que ficaram de uma lado eram a direita e os deputados que ficaram do outro eram a esquerda. Essa separação nasceu numa circunstância que levou tempo a formar, porque se lerem a literatura política ainda do século XVIII, a oposição a que se adotasse a palavra partido era enorme na doutrina. Porque partido, sobretudo no pensamento saxónico, significava fação e, portanto, era fação que eles lhe chamavam, o que era uma coisa pejorativa. Levou tempo até que a palavra "partido" ganhasse estado e dignidade. Simplesmente, as circunstâncias desafiam o partido e nós estamos numa época em que os partidos veem as suas ideologias destroçadas - porque é o que está a acontecer em toda a parte. O que nós temos hoje que ver é que respostas novas vão aparecer. Entre nós já apareceram quatro, com mais perguntas, por enquanto, do que respostas. Aquilo que eu desejo, mas isso é por adesão a valores, é que o eixo da roda não se parta.
Falava há pouco dessa economia que mata. Muitas vezes o debate partidário em Portugal parece um debate meramente económico, não acha?
Não é só em Portugal. Mesmo os países emergentes, aquilo que os acompanha, a visão, a crítica, a defesa, é tudo no domínio económico. A Rota da Seda o que é senão uma reformulação das condições económicas dos mercados que estão articulados? Portanto, não é só em Portugal que também tem esse contágio. Eu resumo isso dizendo: o credo dos valores está subordinado ao credo dos interesses. E isso está a atingir a utopia da ONU e o secretário-geral já anda a lamentar-se até dos recursos financeiros, ele já lançou um alarme. Estão a faltar-lhe os recursos financeiros. É o mesmo fenómeno, e nós também temos de fazer frente a isso. Se formos capazes fazemos, se não formos, espero que alguém faça o discurso a dizer "eu também tive culpa".
O senhor tem seis filhos, alguns deles na política, nem todos da sua família política. Alguma vez se sentiu mais à esquerda por influência familiar?
Não. Espero que a família tenha sido toda influenciada por mim, e há uma coisa que eu espero ter feito bem: nunca coagi a liberdade de pensar nem de filhos nem de estudantes. Por isso, tendo respeitado todos e nem todos ficaram com decisões iguais, a única memória que espero deixar é a de que eu fui bom pai, que tiveram boa mãe e que fomos bons avós; e espero que os alunos que eu influenciei me vão esquecendo, mas devagar. Não tenho mais ambições.
Qual o conselho que nunca deixou de lhes dar e de dar também aos seus alunos?
Tive um avô, que não conheci, que era empregado de um moinho, vejam bem, e que teve oito filhos. Naquela época, numa aldeia, todos fizeram a instrução primária. Conheci o meu avô materno. Esse já teve outra vida porque esteve no Brasil ainda muito jovem exilado, tinha tomado parte lá numas coisas políticas, e esse teve muita influência em mim. Ele costumava estar sentado numa pedra, que eu agora tenho, porque a Junta das Estradas tirou a pedra para abrir a rua e eu disse que comprava a pedra [risos]. Tenho a pedra em Lisboa. Era o assento do meu avô e eu também lá vou ler o jornal às vezes. Ficou-me este conselho que ele repetia constantemente: "Vocês digam o que pensam e depois sejam fiéis ao que tiverem dito." Nunca me esqueci disso.
Sofre ou alguma vez sofreu com os ataques políticos aos seus filhos, por exemplo?
Não, que eu me recorde, não. Primeiro, há só uma política nos filhos.
Tem um filho que foi candidato pelo CDS recentemente...
Sim, mas esse acordou agora para isso. E porquê? É curioso que esse meu filho é o que mantém mais relações com a aldeia. É muito curioso isso. Ele é formado em História e adora a aldeia e, portanto, resolveu. Ele falou comigo sobre isso, e sabem uma coisa que ele fez? Nunca disse que era filho do Adriano Moreira, nunca disse. Lá fez o seu papel e está feliz de ter feito. Os outros são neutrais, não tomam parte na política, mas são todos muito solidários, todos. Eu de vez em quando reúno-os e agora já começam a ficar na cozinha, porque não cabem [risos].
Debatem política lá em casa?
Raras vezes, só quando são assuntos que dizem propriamente respeito ao país ou uma coisa internacional, isso às vezes sim, mas a política corrente nunca.
Além dos seus filhos e dos seus netos, com quem é que fala, a quem é que dá conselhos no mundo político português?
Falem com a minha secretária que ela dá a lista [risos]. Há imensas coisas onde vou. Agora tenho algumas marcadas, mas como é Natal começo a diminuir os compromissos. Já fiz 97 anos... ainda noutro dia me convidaram para uma coisa em abril do ano que vem e eu dei a resposta: o tempo é um produto raro e nunca se sabe quando o relógio para. De maneira que falem comigo, mas lá mais para o pé, se eu ainda andar por cá. Mas ainda vou a muitos sítios e, sobretudo, tenho uma relação com a Marinha muito profunda porque fui muitos anos professor do Instituto Superior Naval de Guerra, além da Universidade de Lisboa. É uma instituição que eu aprecio muito, pois tem uma ética, valores, etc. O eixo da roda ali está bem colocado. Também pertenço ao Conselho da Escola Naval, e vou lá às reuniões ainda. Mas já cheguei ao momento de acalmar. Publiquei agora um livro, A Nossa Época, que, enfim, é uma espécie de testamento.
E ainda está aqui [Academia das Ciências] e escreve todas as semanas no Diário de Notícias... E move-o exatamente o quê, agora?
É o eixo da roda. Tive a sorte de conhecer gente de muita qualidade. Além dos meus avós, o espírito santo da aldeia que ainda acompanho; o Sarmento Rodrigues, que para mim foi sempre uma referência fundamental, e sofreu por isso no fim da vida. Não foi muito bem tratado, mas hoje ele só recebe homenagens por aquilo que foi; o Luís Monteiro, também sempre perseguido; o reitor da Universidade de Coimbra, pai do que foi reitor agora da Católica, por quem eu tenho um apreço enorme. Enfim, tive a sorte de conhecer gente assim. No Brasil então... lá, além de ter ficado a dar aulas na Católica, assim que cheguei foram-me procurar, ainda lá deixei um Instituto de Relações Internacionais e Direito Comparado; fui às universidades desde Manaus até ao Rio Grande do Sul e fui colecionando títulos de cada uma delas. Conheci um grupo de gente de grande qualidade, incluindo o Kubitscheck de Oliveira, que, coitado, morreu num desastre, ainda hoje se discute se teria sido desastre, quando vinha a caminho do Rio para falar comigo. Conheci o bispo da Beira, D. Sebastião - a influência que teve em mim para o entendimento daquela África e as reformas... sobretudo assisti aos últimos momentos dele. Ainda o vi no Concílio do Vaticano e já me parecia uma vela do altar que dá luz e vai morrendo (escrevi-o com estas palavras). Teve um cancro. Na Suécia diagnosticaram-lhe isso e parou aqui no Hospital do Ultramar. Fui logo lá vê-lo. Ele já vinha muito mal, mas aproveitou as últimas horas para me fazer um discurso sobre o que é que eu devia fazer. Ele teve uma vida de luta. Lembro-me sempre da última frase: "Não desista." É o que eu estou a tentar fazer.
E o que é que não gostava de deixar por fazer?
A consolidação - mas eu tive tão pouco tempo - daquilo que o Mandela veio a encontrar a forma verbal, de que a população toda fosse um arco-íris. Isto é linguagem do Mandela: "Eu quero um país arco-íris." Nem brancos, nem amarelos, nem pretos, nem mestiços, um país. A secretária dele foi uma senhora branca, criada no apartheid, mas foi trabalhar para ele ainda com vinte e poucos anos. Quando ele morreu tinha já 40. Foi ao enterro e escreveu umas memórias admiráveis, mas as últimas páginas são da viagem da sepultura de regresso a Joanesburgo. Ela diz isto: "Desde os 20 anos dediquei-me a ele, não tive tempo para uma paixão, mas é a primeira vez que eu posso ir sem medo à noite para casa. E quando olho para o céu vejo uma luzinha que é a luz de uma vela." Fantástico. Se lerem esse livro vão ficar impressionados com as coisas dela. Essa expressão que ele fez é a expressão que este renascimento dos mitos raciais devia ter em vista - o arco-íris. Acabar com a condenação da Torre de Babel, que é o que nós estamos ainda a sofrer. Acabar com isso. A meu ver, não houve mais ninguém que tivesse palavras tão simples que definissem realmente o grande perigo. Para acabar com a Torre de Babel é apagar essas linhas separatórias que estão a crescer outra vez, que são os mitos raciais. Há um autor que diz esta coisa extraordinária: "O principal fator dos mitos raciais é esquecerem-se da mestiçagem, porque nós todos somos portugueses. Somos só lusitanos? E os alanos, os vândalos, os suevos, os visigodos, onde é que estão?
Há pouco estava a falar do relógio. Tem medo de que ele pare?
Não. Medo não tenho, mas julgo que se vai aproximando rapidamente. Tenho esperança.
Tem esperança?
Tenho esperança. Espero não levar uma descompostura muito grande [risos].
Professor Adriano Moreira, muito obrigado por esta entrevista.
De nada. Tive um prazer enorme. Tenho muitos afetos pelo Diário de Notícias, desde o tempo do Augusto de Castro. Eu morava num bairro ainda pobre, que era Campolide - depois tive uma vida mais feliz -, mas nunca adormeço sem ver o retrato do meu pai e da minha mãe. O do meu pai trago sempre, até no bolso. Com o Augusto de Castro criei esta relação: ele, na véspera de Natal, ia sempre a minha casa porque era perto, para cumprimentar a minha mãe - ele era muito mais velho do que eu -, e eu, no Ano Novo, ia a casa dele para cumprimentar a mulher dele. De vez em quando ia ao fecho do jornal e era sempre interessantíssimo assistir àquela discussão final, aprendia-se imenso. Depois ainda tinha uma coisa, ele já era muito idoso e tinham muito cuidado com ele. Quando fechavam, era sempre por volta da meia-noite, e ele ficava sempre com apetite, havia ali uma espécie de pastelaria, e então dizia: "Vou ali comer qualquer coisa." Todos lhe diziam: "Ó senhor doutor, tenha cuidado! A esta hora?" Ele respondia: "Não, é uma coisa ligeira", mas depois chegava lá e pedia uma feijoada [risos]. Era inteligentíssimo, não assinava os textos e todas as pessoas sabiam que eram dele. Ele teve uma importância enorme nesta Academia.