O nosso amigo Mário Soares
Alguns leitores e até mesmo amigos podem desconhecer os laços que nos uniam a Mário Soares, o Chefe do Estado Português que acaba de nos deixar. Quando as instalações do Nouvel Observateur ficavam na Rue des Pyramides, a embaixada de Portugal enviava-nos personalidades interessadas nessa muito querida Revolução dos Cravos. Logo o título era ao mesmo tempo um verso de Sully Prudhomme e de Verlaine. Obviamente, estávamos em 1974, na nostalgia e no arrependimento, e acreditámos ver o regresso do Maio de 68. Entretanto, tínhamo-nos habituado a ter Salazar a governar em Portugal como Franco em Espanha sem vermos os sinais de uma impaciência insurrecional. Portugal tinha então com a França uma situação colonial comum. A guerra da Argélia não tinha terminado ainda Portugal reinava em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau. Os cronistas do colonialismo francês eram seguidos atentamente pelos militares dos colonizadores portugueses.
Mas voltemos ao caro Mário, cujo desaparecimento deixa o nosso jornal verdadeiramente de luto. Todos os jornalistas viajantes ou aventureiros têm oportunidade de se cruzar com personalidades fortes, homens fora do comum, mas raramente com chefes de Estado que desafiam a posteridade.
Quando conheci Mário Soares, ele estava no exílio em França, entre duas passagens pela prisão, nomeadamente nas colónias.
Não sabia nada dele. Voltei a vê-lo quando ele regressou para a sua Revolução dos Cravos. Foi amor à primeira vista, o único talvez que senti por um homem de Estado. Como se tivéssemos sido íntimos antes, ele sabia tudo sobre mim. Eu sabia pouco sobre ele. Eu tinha mais uns anos do que ele e ele tratava-me como mais velho, o que me intimidava. E à medida que os acontecimentos se sucederam, ele impressionou-me. Parecia uma personagem de Simenon, como um "francês radical-socialista" antes de se falar em "social-democrata". Tinha um sorriso largo, acolhedor e capaz, de repente, de se crispar, sobretudo quando falávamos dos comunistas ou dos extremistas. Tinha como rival uma personalidade notável, Álvaro Cunhal, de grande porte, de grande beleza, de autoridade implacável. Claude Roy, o grande romancista, nosso colaborador, admirava-o, e Mário ficava irritado.
Tenho mil coisas para contar do nosso amigo Mário. Uma única hoje, porque é pouco conhecida. Era na época em que os comunistas e todos os grupos extremistas de agitadores, de arruaceiros e de revoltados dedicavam à revolução a sua juventude, a sua alegria, o seu ideal. Noutros lugares, na Europa, tinham múltiplas solidariedades, por exemplo na Alemanha, em Itália, mas também em Espanha. Os comunistas portugueses começaram a colaborar de forma organizada com os russos, que não podiam deixar de ver a fraqueza crescente dos revolucionários e que tinham infiltrado várias regiões militares. Depois de uma viagem inesperada, Henri Kissinger fez um relatório: segundo ele, Portugal estava já perdido para o Ocidente, uma vez que os russos, esses, não tinham perdido tempo. As reações americanas não foram imediatas. No entanto, o conflito recomeçava entre portugueses.
No jornal estávamos muito atentos e preparados para nos preocuparmos. Tínhamos amigos em todo o lado que não estavam de acordo entre eles. Acontece que, numa noite de motins, um coronel que íamos visitar muitas vezes, e que acabou muito mais tarde como embaixador na UNESCO, me disse que podia ajudar o meu amigo Mário Soares. Era o coronel Melo Antunes. Encarregou-me de fazer entender ao meu "líder socialista" que não podia arriscar-se a noite em Lisboa, ou mesmo nos arredores. Preparava-se um complô a que os russos não eram alheios, e em que participavam ao mesmo tempo tanto oficiais de extrema-esquerda como comunistas. Cumpri essa missão com a sensação de estar a participar na história, sem me dar conta que estava do seu melhor lado.
Por essa altura, em Paris, havia em torno de François Mitterrand grupos de personalidades hostis a Mário Soares por ele ser socialista, e outros de ferozes apoiantes pela mesma razão. Esta querela, bem na tradição socialista, separou-nos a Jean-Pierre Chevènement e a mim. Hoje já passou, mas os amigos de Chevènement acreditaram sinceramente estar a proteger a democracia em Portugal.
Eis então a palavra "democracia", na qual queria insistir e com a qual queria terminar. Todos discutem as raízes e a filosofia da democracia. Uns dizem-na morta e os outros sempre a procuraram. Pessoalmente, sempre identifiquei a palavra "democracia" com Mário Soares. Porque ele era um apaixonado natural pela liberdade, porque a fraternidade era um dom nele e porque a igualdade não o conduzia à violência. Gostávamos muito de Mário Soares, hoje ainda gostamos um pouco mais dele, porque no estado em que estamos é um milagre continuar a ser um exemplo.
Jornalista, fundador do "Le Nouvel Observateur"
(Publicado originalmente a 11 de janeiro de 2017)