A manif da CGTP vista pelos olhos de um reformado gráfico

Milhares de trabalhadores percorreram esta quinta-feira a Avenida da Liberdade, em Lisboa, numa manifestação convocada pela CGTP. O DN fez o trajeto até aos Restauradores na companhia de Fernando Soares, que leva décadas na luta sindical
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Fernando Soares, 71 anos, reformado, começou a trabalhar aos 12 anos numa gráfica - e foi essa a sua profissão até se reformar, com 58 anos, sendo então operário na Gráfica São Miguel, no Porto.

Veio do Porto para Lisboa com os camaradas do SITE Norte (Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Transformadoras, Energia e Atividades do Ambiente). Mais uma vez, pela enésima vez, participar em mais uma manifestação promovida pela sua central sindical de sempre, a CGTP. Fernando não faz a mínima ideia em quantas ações de luta participou na vida: "Oh, sei lá, apareço sempre, basta convocarem..." Mas nunca foi dirigente sindical - no máximo delegado sindical.

Das primeiras manifestações da sua vida laboral para agora, muita coisa mudou: "As manifestações agora são mais bem organizadas". Acabou-se a brutalidade física que as caracterizava logo após o 25 de Abril - o que acontecia porque "havia muito analfabetismo". "Hoje a juventude tem mais conhecimentos, isso é bom, muito bom." O sindicalismo, reconhece, é que já não mobiliza tanto, "por causa da precariedade". Mas devia: "Muitos não se apercebem de que só pela sindicalização se consegue unidade na luta". E que essa unidade é crítica para conquistar direitos - ou travar perdas.

Ao nosso gráfico reformado não se lhe deteta uma única nota dissonante entre o que diz e o que se ouve depois, no final da manifestação, a partir de um palco montando nos Restauradores, ao líder da central, Arménio Carlos. Este também pediu mais empenho aos sindicatos para "sindicalizarem mais assalariados", "elegerem mais delegados sindicais" e, em suma, "reforçarem a capacidade de resposta" às lutas que os esperam.

Fernando também diz, por exemplo, que na sua profissão e nas empresas por onde passou nunca nenhum direito foi conquistado só por via de um patrão simpático. "Foi sempre necessário lutar, sempre." Com avanços e recuos, mas sempre, "sem nunca baixar os braços": "Nem sempre ganhámos, nem sempre perdemos." Hoje, reconhece, os trabalhadores do setor têm muito mais direitos do que tinham quando começou a trabalhar, há 50 anos. São, no entanto, muito menos, por causa da revolução tecnológica que atingiu este setor, como muitos outros.

E compare-se então com o que disse Arménio Carlos no final do seu discurso - uma intervenção feita de frente para uma Avenida da Liberdade cheia de manifestantes, forrada dos Restauradores ao Marquês de Pombal (mas com muitos "brancas" pelo meio, intervalando os vários grupos sindicais participantes e assim enchendo o espaço artificialmente). "A única coisa que cai do céu é a chuva; o resto é luta!", disse, citando Vinicius de Morais.

E depois, Arménio, como Fernando e os outros milhares de participantes fizeram, em uníssono, o que fazem sempre quando acaba uma manifestação da CGTP: Cantaram, por esta ordem, o hino da central ("Unidade, unidade, unidade / do trabalho contra o capital"), a Internacional ("De pé, ó vítimas da fome / de pé, famélicos da terra") e por último o hino nacional.

Contra a ação da central sindical ao longo dos anos, Fernando nada tem a dizer, muito pelo contrário: "Esteve sempre bem, reivindicativa, sempre a lutar, sem cedências..." E nem lhe passa pela cabeça que seja de outra maneira: "No dia em que ficar mole, salto fora do comboio..." A conversa com o DN vai sendo interrompida pelo nosso reformado a repetir as rimas das palavras de ordem ditadas pelo "maestro" oficial da manifestação. Algumas recentes ("mais salário / menos horário", "é preciso investir / para o país progredir", "taxar o capital / é urgência nacional") ou outras do velho cancioneiro sindical: "o povo unido / jamais será vencido" ou "cê-gê-tê-pê / unidade sindical".

Fernando, como Arménio Carlos, é também militante do PCP, e como Arménio reconhece alguns "progressos" na governação do PS nesta legislatura - mas torcendo o nariz ao resultado geral ("ficou muito por fazer"). E nem lhe passa pela cabeça que os comunistas no futuro alinhem num governo com socialistas - "isso seria uma traição aos trabalhadores".

Ambos estão sintonizados na atual prioridade política máxima da CGTP e do PCP: evitar que o PS vença as próximas legislativas com maioria absoluta. "Nunca - mas nunca! - uma maioria absoluta foi um instrumento a favor dos trabalhadores", sintetizou Arménio.

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