"Tínhamos de mergulhar na fossa onde eram colocados os dejetos dos cavalos"

Nuno Pereira da Silva, coronel do Exército na reserva, relembra o "clima de terror" inerente às praxes na Academia Militar, formalmente proibidas, mas toleradas pelos responsáveis. Especialista em assuntos de defesa e segurança europeus, escreve há anos na Revista Militar e está envolvido na criação de um cluster nacional de cibersegurança.
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"Resolvi escrever este artigo após ter lido um artigo no Diário de Notícias sobre a praxe na Escola Naval. Calculo que a praxe seja formalmente proibida pelo comando em todas as escolas superiores militares, como já o era no meu tempo na Academia Militar.

Apesar de proibida, o comando na altura tolerava-a e sempre fez vista grossa a este rito iniciático violento, humilhante e prepotente que não passa de uma forma de bullying efetuado pelos mais antigos sobre os mais novos, os alunos do primeiro ano - designados por infras - que, por definição, são um monte de merda que por aberração da natureza se transformou em homo erectus, que fica 40 pontos abaixo de cão e 20 acima de polícia, que a partir do momento que entra na porta de armas perde a sua identidade e é-lhe atribuído uma alcunha, designada por nome informático, e um grito de guerra pelo qual passará obrigatoriamente a responder.

Os primeiros dias são infernais, pois para além de termos que nos habituar à disciplina militar, ordem unida e educação física, durante o dia, nos intervalos das instruções e durante toda a noite, se assim apetecer aos mais antigos, e apetece sempre, temos que lhes obedecer cegamente a todos os seus caprichos e frustrações, mesmo que estes sejam repetentes e contigo partilhem e chefiem as camaratas onde dormes.

As noites do primeiro ano são passadas em desgastantes formaturas, em que um dos praxados é obrigado a transmitir todas as ordens que os praxantes lhes ordenam, iniciando as vozes de comando invariavelmente com uma cantilena para nos recordar a todos a nossa condição de montes de esterco.

Nessas formatura em xadrez executávamos normalmente centenas de completas e não raras vezes éramos retirados da formatura, para servirmos de exemplo aos outros, para que nunca ousássemos sublevar-nos e acatássemos todas as ordens sem pensar. Recordo-me de uma vez me terem enfiado a cabeça na sanita e puxado o autoclismo várias vezes, como sinal de humilhação máxima.

Para além destas formaturas especiais noturnas diárias, à sexta-feira à noite e durante todo o primeiro ano, tínhamos sempre uma Foda Geral, em que passávamos a maior parte da noite a executar uma espécie de ginástica de aplicação militar que terminava quase sempre com mergulhos na fossa onde eram colocados os dejetos dos cavalos.

Se mesmo com este clima de terror alguém ousasse baldar-se à praxe, tinha tratamento especial durante vários dias ou meses, que poderia ser, como pessoalmente me aconteceu, dormir cerca de dois meses no chão aos pés da cama dum camarada mais antigo.

Ainda hoje me lembro da tremenda carga de pancada que levei no primeiro dia em que vesti a farda número um, com o pretexto de ma ajustarem ao corpo numa praxe designada por assentamento das costuras, bem como duma bebedeira que apanhei e que me ressacou dois dias, depois de me terem obrigado a beber uma garrafa de aguardente inteira em cinco minutos para celebrar o São Martinho. Quando hoje vejo alguma forma de prepotência e de humilhação revolto-me e obrigo-me a relembrar esses tempos, para tentar fazer a catarse de algo que me deixou feridas psicológicas graves e profundas ao longo da vida, e que ainda hoje me revolta.

Quando olho para a instrução de bastão extensível da GNR, que tem passado ultimamente na televisão, relembro a praxe e as nefastas consequências que ela provoca, que essa violência excessiva é uma consequência dessa mesma praxe a que esses oficiais subalternos foram recentemente submetidos e que posteriormente fizeram também aos seus pares mais modernos, esquecendo-se que a instrução não é nem pode ser confundida com praxe. Os seus recalcamentos têm que ser dirimidos sem prejudicar terceiros.

Tenho a certeza que este artigo não será bem quisto na Instituição que sempre proibiu formalmente esta atividade mas sempre a tolerou, fazendo de conta que esta violência humilhante não existe nem nunca existiu. Mas penso que é importante colocar o dedo na ferida e romper este pacto de silêncio por todos auto-assumido, para que esta humilhante situação tenha realmente o tratamento que deve ter em termos disciplinares e quiçá criminais."

Coronel de infantaria na reserva

Diário de Notícias
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