Professores. Dez pontos para entender uma crise que durou 99 horas

Durante quatro dias, o país político viveu em sobressalto com a ameaça do Governo bater com a porta, depois do Parlamento ter aprovado a recuperação integral do tempo dos professores. Agora que tudo parece terminado, o DN resume a matéria dada.
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Minutos antes do PCP esvaziar a crise política, ao comunicar que não acompanhava as propostas do PSD e CDS para a reposição condicionada do tempo integral dos professores, o primeiro-ministro alimentou uma espécie de tabu afirmando que a sua demissão dependeria ainda do resultado da votação global no Parlamento.

Nem o apelo do secretário-geral da Fenprof, Mário Nogueira, para BE e PCP deixarem passar as propostas da direita foi ouvido, sobrando pouca margem para António Costa se demitir. Jerónimo de Sousa sintetizou a recusa da esquerda ao desafio sindical: a Fenprof procurou "salvar qualquer coisa, mas as propostas do CDS e PSD não salvam nada. Pelo contrário, abrem uma nova frente", que é a revisão do estatuto da carreira docente, "e isso não é coisa pequena".

Tudo se esfumou em cerca de 99 horas, desde quinta-feira à noite até perto das 22.00 desta segunda-feira, quando o PCP pôs uma pedra no assunto. Esgotado o tempo da crise, o caminho prevê-se cheio de pedras à direita e à esquerda, por motivos diversos.

Uma inesperada (e diferente) geringonça

O Governo aprovou um decreto-lei, que foi avocado pelos grupos parlamentares, em que estabeleceu a reposição de dois anos, nove meses e 18 dias, contra os nove anos, quatro meses e dois dias exigidos pelos sindicatos dos professores.

Na quinta-feira, dia 2, ao fim da tarde, uma geringonça inesperada, formada por PSD, BE, CDS, PCP e PEV, entendeu-se para fazer aprovar a contagem integral do tempo de serviço dos professores, uma norma que contou apenas com o voto contrário do PS, numa votação discutida artigo a artigo.

Fora do entendimento ficou um prazo concreto para a recuperação do tempo de serviço congelado (cerca de seis anos que o diploma do executivo socialista) não contemplava, com a oposição a entender-se apenas na formulação de que o governo terá de encetar um "processo negocial" para concretizar essa reposição, com "efeitos em 2020 e anos seguintes". Esta formulação teve os votos a favor do PSD e CDS, a abstenção do BE e PCP e o voto contra do PS.

Os sociais-democratas ainda tentaram fazer depender a "devolução" do tempo congelado de fatores como a situação económica do país, proposta chumbada, neste caso pelas bancadas da esquerda, socialistas incluídos.

Governo já tinha avisado

Logo depois de conhecida a notícia do entendimento alargado entre a oposição e os parceiros parlamentares do PS, António Costa chama o "núcleo duro" de conselheiros do Governo para uma reunião de emergência, a decorrer na manhã dessa sexta-feira na residência oficial do primeiro-ministro, em São Bento. Na noite de quinta-feira, o DN antecipa que Costa considera a situação como "muito grave". "Todas as opções estão em aberto", garantiam fontes próximas de Costa.

Não era novidade esta dramatização: já em 16 de abril, uma fonte socialista dizia que a possibilidade de uma demissão do Governo, por causa dos professores, estava sobre a mesa. O gabinete de Costa ensaiou um desmentido e, da esquerda à direita, poucos valorizaram a notícia.

António Costa ameaça demitir-se

Com a sua coordenação política reunida, as manchetes da manhã dessa sexta-feira retomavam a ameaça de demissão. Antes da reunião, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, admite que a governabilidade do país "está em causa".

A confirmação chega à tarde, depois de Costa sair de São Bento direto para Belém, para conversar sobre a situação com o Presidente da República, acabadinho de chegar da China. Marcelo Rebelo de Sousa inicia o seu mais longo período de silêncio no seu mandato e o primeiro-ministro diz que se demite se decreto for aprovado com as alterações dos partidos. "A aprovação em votação final e global forçará o Governo a apresentar a sua demissão."

"Golpe de teatro": todos criticam o primeiro-ministro

O anúncio do primeiro-ministro volta a unir PSD, CDS, BE, PCP e PEV, agora nas críticas ao que apelidam, a tempos diferentes, de "fantochada", "golpe de teatro", "ameaça" e "chantagem". Nada meigos, bloquistas e comunistas acusam Costa de dramatizar em excesso e de provocar instabilidade, apesar de o socialista ter procurado proteger a geringonça no seu discurso.

Na noite de sexta-feira, os ministros Augusto Santos Silva e Mário Centeno explicam-se nas televisões, apontando irresponsabilidade às oposições pelos custos associados à medida. "O que vimos foi a esquerda a desviar-se para ser ultrapassada pela direita", critica Centeno. Na terça-feira anterior, dia 30, o ministro das Finanças tinha dito no Parlamento que contar todo o tempo de serviço dos professores representaria "o maior aumento de despesa desta legislatura" e iria abrir "uma caixa de Pandora" sobre a recuperação do passado nas carreiras.

Um fim de semana em lume pouco brando

Durante o fim de semana, António Costa não tira o pé do acelerador. Aproveitando ações de campanha do PS para as eleições europeias, o líder socialista insiste num discurso em que aponta (mais) baterias à direita. Também no PSD e CDS ouvem-se vozes críticas: Miguel Relvas aponta "desnorte político" a Rui Rio e Pires de Lima diz-se "desiludido" com Assunção Cristas, notando que "ou se está com os contribuintes ou com Mário Nogueira".

Já à esquerda, os bloquistas multiplicam-se a avisar os socialistas que um fim prematuro da legislatura ameaça pôr em causa outras discussões no Parlamento, como a nova Lei de Bases da Saúde ou a legislação laboral - mesmo que o entendimento nestas matérias esteja longe de ser líquido.

Domingo, o dia de todos os recuos

No domingo, logo pela manhã, a partir de Bruxelas, Assunção Cristas anuncia o recuo (apesar de negar a expressão) do voto centrista ao afirmar que para o CDS sempre foi claro que esse pagamento só poderia ser feito com a "existência de crescimento económico e garantia de sustentabilidade financeira, negociação do estatuto da carreira dos professores, incluindo a avaliação dos professores, negociação do regime de aposentações dos professores".

À tarde, é a vez de Rui Rio afirmar que também o PSD não aprovará o diploma sem salvaguardas financeiras, desafiando a esquerda: "Se votarem a favor da proposta do PSD de salvaguarda do equilíbrio financeiro, estaremos todos de acordo. Se não votarem, escusam de fugir do governo porque é o próprio PSD que entende que o diploma final não oferece as garantias de rigor financeiro que sempre defendeu. Fica nas mãos do PS."

A esquerda recusa ceder e voltar atrás, como por exemplo garante Jerónimo de Sousa. Costa atira à direita e pede a PSD e CDS para "emendarem o erro".

Fenprof quer esquerda a estender a mão à direita

Quem não desiste é Mário Nogueira que pede ao BE e PCP que estendam a mão à direita e se abstenham na hora de votar, mesmo que sublinhem as críticas. O BE responde prontamente: "Confirmaremos o voto favorável à recuperação de 2 anos 9 meses e 18 dias a partir de 2019 e à negociação do restante tempo de serviço a partir de 2020 sem direito a retroativos", esclareceu o partido. Com um "mas" que fecha a porta ao pedido do sindicalista: "Em coerência, rejeitamos as propostas que obrigam futuros governos a critérios impostos por Bruxelas para impedir a recuperação integral do tempo de serviço dos professores no futuro."

À noite, já depois de Costa manter na mesa a possibilidade de demissão, o PCP também fecha, em "coerência", a porta a Nogueira - e ao voto nas propostas sociais-democratas e centristas. "As propostas apresentadas por PSD e CDS significariam fixar um prazo de, no mínimo, 50 anos para a concretização da contagem integral do tempo de serviço, fazendo-a ainda depender das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento - que a impediriam - e, mais grave do que isso, abririam a porta à destruição da carreira estabelecendo na lei a revisão do Estatuto da Carreira Docente, objetivo há muito prosseguido por anteriores governos, nomeadamente pelo governo de maioria absoluta do PS com os resultados que são conhecidos."

Jerónimo puxa as orelhas a Nogueira, este não desiste

Esta terça-feira começou com o secretário-geral do PCP a puxar as orelhas a Mário Nogueira. Dizendo "compreender" a posição de Fenprof, de quem quer "salvar qualquer coisa", Jerónimo avisa que as "propostas de CDS e PSD não salvam nada". "Pelo contrário", explica, "abrem uma nova frente", que é a revisão do estatuto da carreira docente, "e isso não é coisa pequena".

Divergindo publicamente do líder do seu partido, Mário Nogueira insiste, dirigindo-se a PSD, BE, CDS, PCP e PEV: "Deixem-se de politiquices", "pensem nos professores" e "no que é essencial", "façam justiça aos professores", "não aprovem nada que em definitivo mate a luta dos professores" e "não cometam a injustiça de apagar seis anos e meio de carreira aos professores".

Os dias que se seguem

A crise política, tudo o aponta, acabará no dia 10, com o novo decreto da contagem de tempo dos professores a ser chumbado na Assembleia da República, em votação final e global, pela conjugação dos votos do PS+PSD+CDS. Sendo chumbado o novo decreto, fica em vigor o decreto original - feito pelo governo e por este reafirmado, mesmo depois de um veto presidencial. Aos professores vão ser pagos dois anos, nove meses e 18 dias do tempo que lhes foi congelado.

Mário Nogueira avisou o que vão ser as próximas semanas, da parte dos sindicatos: "Os professores não vão baixar os braços." A esquerda, essa, tem alguns dossiês duros para partir pedra e tentar recuperar alguma da argamassa que fez da geringonça um projeto político de longevidade que muito poucos antecipavam. Resta saber para onde se virará o pisca-pisca do PS. À direita, a votação de quinta-feira deixou mossa na credibilidade de partidos ditos de contas certas. Resta saber como avaliará o eleitorado o recuo de PSD e CDS.

Onde andou o Presidente?

A crise ficará marcada por ter surgido e ter sido extinta sem que se tenha ouvido uma palavra pública do Presidente da República mais falador desde que há presidentes eleitos. Marcelo Rebelo de Sousa, que regressou na quinta-feira a Portugal vindo da China e desde então se manteve sem agenda pública, partiu na segunda-feira à noite para Itália (uma reunião da Cotec), regressando esta terça à noite.

Na visão de Marcelo, este sempre foi um problema entre o governo e o Parlamento - daí o seu silêncio. A Rádio Renascença revelou esta terça-feira que, apesar de calado, o Presidente foi acompanhando a crise política, telefonando aos líderes partidários e dando a entender que estava ao lado do primeiro-ministro na necessidade de garantir a sustentabilidade das contas públicas.

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