"Património histórico devia ensinar-se na primária"

Embaixador Moraes Cabral acredita que as ameaças à preservação do património não resultam da falta de meios financeiros mas de negligência. Entrevista ao presidente da Comissão Nacional da UNESCO, que esta segunda-feira celebra 40 anos.
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José Filipe Moraes Cabral preside à Comissão Nacional da UNESCO desde fevereiro de 2018. Licenciado em Ciências Políticas e Diplomáticas pela Universidade Livre de Bruxelas, entrou para a carreira diplomática em 1979 e foi assessor diplomático do presidente Jorge Sampaio. Como embaixador, chefiou delegações como as de Israel, Espanha, França e Nações Unidas. Em 2017, à frente da missão permanente junto da UNESCO, contribuiu para a eleição de Portugal como membro do Conselho Executivo dessa organização da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura.

Que balanço faz sobre o papel da Comissão nestes 40 anos?
Muito positivo. Quando o ministro dos Negócios Estrangeiros me designou, julgava que iria ser um cargo algo tranquilo, mas fui confrontado com um conjunto de redes diversificadas nas mais diversas áreas e que se reivindicam dos valores da UNESCO. Há redes mais visíveis, como as do património da humanidade, das bibliotecas e das cidades criativas, ou outras que são menos conhecidas mas têm um papel muito intenso e muito pedagógico, como a das cátedras, dos geoparques e das reservas da natureza, os clubes, as escolas (que são mais de uma centena).

Qual é o foco das atividades da Comissão?
Ter um bem inscrito na UNESCO é lisonjeiro, mas isso não é o final do caminho, é o princípio de uma nova aventura que exige muita responsabilidade e seriedade pelos compromissos assumidos. Fazemos, a partir da Comissão, uma pedagogia constante. Temos muito regularmente reuniões com todos os gestores dos bens portugueses [reconhecidos como património mundial], discutimos as melhores práticas e promovemos iniciativas à volta disso. E em breve vamos realizar um seminário em Foz Coa sobre património mundial e alterações climáticas. Antes vamos estar em Braga, noutra iniciativa sobre património. Em resumo, fazemos a discussão dos problemas em torno do património - como o das alterações climáticas - e fazemos pedagogia, exortamos todos os responsáveis a que procedam em conformidade com os compromissos que assumiram.

A UNESCO tem sido muito importante para Portugal?
Claro. Uma das coisas mais visíveis é o património, não só o construído - temos 17 inscritos, mas também o imaterial, como o Fado, o Cante Alentejano e o Figurado de Estremoz, Isso deve-se ao trabalho que tem sido feito para inscrever estes bens. Outra área importante é a do Registo da Memória do Mundo, onde estão incluídos o diário da primeira visita de Vasco da Gama à Índia, a carta de Pero Vaz de Caminha e o Tratado de Tordesilhas.

Manter esse património envolve grandes investimentos?
É um investimento humano. O Santuário do Bom Jesus, por exemplo, foi inscrito na lista após um trabalho e um investimento de anos na recuperação da mata e da própria arquitetura e escultura do santuário. Custou dinheiro, mas grande parte foi um esforço humano. É preciso preservar os monumentos, que exigem sempre manutenção.

Mas tem de haver dinheiro...
As grandes ameaças à preservação do património não resultam da falta de meios financeiros mas de negligências de caráter administrativo, burocrático, até pessoal.

Já se dá mais atenção ao património em Portugal?
O nosso património não está mal, em termos comparativos com outros países. Mas isso implica um esforço permanente. É preciso acompanhar e fazer face a deteriorações, sobretudo com património tão antigo.

Daí a necessidade da pedagogia feita pela Comissão?
Trabalhamos ao nível das mentalidades, porque é preciso desenvolver uma consciência do património. Assim como se faz pedagogia em relação ao meio ambiente, também temos de passar a ter nas escolas - e logo na primária - disciplinas que refiram o valor do património histórico, cultural e económico e alertar para a importância da sua preservação.

Está otimista?
Sim. Grande parte do nosso trabalho é fazer pedagogia e isso leva o seu tempo. As coisas vão-se fazendo, mas agora há uma consciência muito maior em Portugal relativamente a estas exigências.

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