João Vasconcelos fazia, motivava e descomplicava. Só a morte o deixou KO
"Mais vale feito que perfeito." Na hora da morte de João Vasconcelos houve quem resgatasse esta frase à memória para a deixar como epitáfio do antigo secretário de Estado da Indústria, que morreu, na segunda-feira à noite, aos 43 anos, de ataque cardíaco. Tinha a palavra empreendedor inscrita nos genes e nos atos e uma boa disposição contagiante disponível para todas as situações.
Depois de se demitir do Governo de António Costa, em 9 de julho de 2017 - juntamente com Fernando Rocha Andrade e Jorge Costa Oliveira, por causa do inquérito às viagens pagas pela Galp ao Europeu de futebol - Vasconcelos regressou ao universo das startups, o mesmo de onde tinha saído a convite do primeiro-ministro para integrar o executivo socialista.
Rocha Andrade recorda ao DN o "tipo muito surpreendente" que era o seu antigo colega de governo. O agora deputado do PS sublinha o que outros disseram dele nas horas que se seguiram à notícia da morte. Era um homem com capacidade "de descomplicar, de motivar e de fazer". E com uma "boa disposição, mesmo em situações muito chatas".
Horas antes da sua morte, João Vasconcelos esteve em Coimbra na apresentação de trotinetes para a cidade. A micromobilidade, como o próprio lhe chamava, era uma das suas apostas, ele que era o presidente do conselho consultivo da Flash, uma startup europeia de trotinetes elétricas. De capacete posto, como se constata numa foto do jornal A Cabra , o antigo secretário de Estado experimentou o veículo, defendendo o seu projeto. "Existe uma direção de futuro em que se está a caminhar para um conceito de cidade mais verde e para reduzir o número de carros a circular" nos centros urbanos. "O nosso objetivo é que a micromobilidade seja partilhada", disse, citado pelo Diário de Coimbra.
Já não teve tempo para mais. O currículo deste homem nascido em Leiria, em 1975, é tão preenchido como eram preenchidas as horas do seu dia. Com 18 anos dirigiu um negócio de família, o parque aquático de Vieira de Leiria. Cedo se meteu também nas chamadas incubadoras de empresas, na região de que era natural. Também por isso chegou a vice-presidente da Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE).
Militante socialista, cheirou os corredores do poder como assessor para assuntos regionais e de economia nos executivos de José Sócrates. Em 2011, o então presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, chamou-o para lançar a Startup Lisboa, outra incubadora de empresas. Era este o seu mundo, o mundo que o motivava, como ainda recordava em fevereiro, ao escrever que acompanhou "centenas de empresas nos seus primeiros dias, umas com mais sucesso, mais inovadoras e com melhores lideranças que outras".
Depois de Costa em Lisboa, Vasconcelos voltou a acompanhar Costa no Governo . Miguel Fontes, que lhe sucedeu na Startup Lisboa, destacou ao DN esse trabalho, notando que Vasconcelos foi continuar no Governo o trabalho iniciado na capital. "Deu-lhe escala nacional, imprimindo uma agenda de inovação e empreendedorismo" no executivo socialista. No meio das startups, Miguel Fontes descreve Vasconcelos como "figura carismática e querida", de "créditos firmados" e que "marcou muito uma primeira geração" de empreendedores.
É a ele que se deve a vinda da Web Summit para Portugal e foi Vasconcelos quem se empenhou no prolongamento da organização deste certame em Lisboa. Numa entrevista em junho de 2016 para o Expresso, almoçou uma bifana com mostarda e ketchup. A legenda à fotografia de Tiago Miranda explicava tudo: "Durante a entrevista ao Expresso João Vasconcelos teve de arranjar tempo para almoçar uma bifana rápida."
Quando se espreita a sua página do Facebook, percebe-se que não teve tempo para parar muito depois de deixar o Governo: no próximo dia 3 de abril, em Leiria, ia apresentar um livro sobre tecnologia e sustentabilidade; tanto falava de um almoço na Associação 25 de Abril como dos projetos que fervilhavam, fosse a sua startup de trotinetes, o lançamento da Women in Tech ou mesmo a sua entrada "no século XXI", quando em janeiro anunciou a compra de um carro elétrico. "Alguém tem extensões que não esteja a usar?", perguntava.
Também se metia em projetos de voluntariado, como a limpeza de praias. Em novembro passado, descrevia no Facebook: "Mais de 40 voluntários limparam a praia do Pedrógão até ao rio Lis. Amanhã até Osso da Baleia. Várias toneladas de plástico que já não regressam ao mar." Empenhava-se tanto nesta "desplastificação" como na Web Summit ou nas vindimas.
Numa nota publicada no site da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa deixou um "lamento" pela "perda súbita" de Vasconcelos. E fez-lhe uma homenagem: "A melhor forma de o homenagearmos é darmos visibilidade aos exemplos de êxito empresarial. É o que estou a fazer hoje, em Guimarães, visitando uma das Startups portuguesas de maior sucesso e com significativa criação de emprego, a Farfetch."
Nas redes sociais, onde também "vivia", os que com ele se cruzaram foram deixando palavras de saudade e incredulidade. A ex-ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, que no sábado passado tinha estado com ele num debate da Juventude Socialista, dirigiu-se ao "querido João", para dizer que tinham estado a discutir "o futuro com o entusiasmo e otimismo" que os dois "sempre" colocaram "nessas discussões". "Falámos do impacto do digital nas nossas vidas, no próprio prolongamento da esperança de vida. Não quero acreditar que foi o nosso último debate juntos! Saudades."
Um dos seus colaboradores na Startup Lisboa, Ricardo Nunes, que recordou a frase com que iniciámos este texto, defendeu que "a sua obra fala por si e a sua vida também", deixando um agradecimento "por tudo" o que Vasconcelos deu "ao nosso país, cidade e à comunidade de empreendedores".
O novo secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, escreveu que ainda estava "em choque" com a sua "morte súbita". "Neste momento triste, quero lembrar-me da sua energia positiva, da contagiante boa disposição e do seu enorme espírito criativo. Ficará para sempre a sua marca na afirmação de Lisboa como uma Startup City, o seu trabalho na Startup Lisboa e o seu inegável papel na vinda da Websummit para Portugal. O João fará muita falta."
Paddy Cosgrave, o mentor da Websummit, recordou o entusiasmo do então governante. Dizendo-se "muito triste" com a notícia, Paddy recordou o muito que Vasconcelos fez para "promover as startups portuguesas no palco mundial".
Sem palavras, como admitiu, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, partilhou muitas fotos "que [a] levam ao João Vasconcelos": "Às "nossas" pessoas, aos "nossos projetos", aos "nossos" momentos", aos "nossos" desafios". A tudo. Obrigada João..."
Também o ex-secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, agradeceu a Vasconcelos. "Até sempre João. Obrigado por tudo o que nos deste com a tua visão, o teu entusiasmo e a tua seriedade. A vida é muito injusta."
No domingo passado, deixou um retrato sobre as redes sociais em 2019, onde descrevia o Facebook como um sítio onde o que mais fazia era likes "e cada vez menos"; o LinkedIn, como a rede onde mais respondia a mensagens; o Twitter como o local que mais o fazia "rir" e o Instagram "contemplar". No final do post deixava uma nota otimista: "Quanto mais tempo passamos online mais valorizamos tudo o que é offline, a natureza, as emoções, a arte, a cultura, a manufatura, tudo o que nos transmite sentimento. Bom domingo, aproveitem o digital e usem-no como ferramenta para valorizar o analógico. Agora vou passear que está um dia fabuloso."
Deixa mulher, Isabel, e dois filhos pequenos. O mais novo, João, nasceu em 1 de julho do ano passado. No Facebook, partilhou uma foto de bata no hospital e a notícia: "O mundo estava a precisar de mais um João Vasconcelos. Aí está ele com 3,6 Kg. Tudo correu muito bem. A Mãe está ótima. Preparem-se para dois [João]."
Na já citada entrevista ao Expresso, Vasconcelos foi fotografado com umas luvas vermelhas de boxe, que o acompanhavam sempre nas suas funções, para enfrentar todos os desafios. Só a morte o deixou KO.