João Ferreira. Um dia com o ás de trunfo do PCP pelo Alentejo profundo

João Ferreira não é o tipo de pessoa que pare de propósito no Café Milénio, em Stª Margarida do Sado, só para provar os seus maravilhosos torresmos. A não ser que esteja previsto. O DN percorreu Beja com o cabeça de lista da CDU.
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Dizem os especialistas que há duas campanhas no PCP: uma com Jerónimo de Sousa; outra sem. Quando o líder aparece, há afetividade no ar, Jerónimo põe as emoções a funcionar, os militantes aparecem, mesmos muitos dos não militantes não resistem a deixar-se envolver na autenticidade do antigo operário, que conta piadas, domina como ninguém a arte dos ditados populares, afaga as crianças, abraça as mulheres, dança, se for preciso. Empatia - eis a palavra-chave.

Com João Ferreira é tudo muito diferente. O cabeça de lista da CDU ao Parlamento Europeu é um político profissional que tem uma mensagem para passar e o faz sempre, com voz clara e discurso escorreito, sem demonstrar emoções. Não evita as aproximações pessoais nos contactos de rua mas a empatia não é propriamente o seu forte - e nem se finge de outra maneira. Sorri ligeiramente, pede aos eleitores "confiança" na CDU, distribui o folheto de propaganda, segue caminho. A gestão do tempo é provavelmente a preocupação do seu quotidiano pessoal que mais o mobiliza. Desde 2014 que acumula duas funções que, na aparência, são inconciliáveis: eurodeputado e vereador na câmara de Lisboa. Numa semana normal, está em Bruxelas de segunda a quinta, dedicando-se sexta à CML. Segue à risca a ortodoxia linguística do PCP quando afirma que esta acumulação lhe é possível por causa do "trabalho coletivo" que o apoia em ambas as funções. O DN acompanhou um dia de campanha de João Ferreira no distrito de Beja. Sem Jerónimo de Sousa.

A história pessoal do candidato é conhecida. Cresceu nos arredores de Lisboa (Lumiar), filho de pais de classe média, e um dia, aos 16 anos, pegou numa lista telefónica para saber onde era a sede da JCP e foi lá inscrever-se. Chegou à organização de juventude do PCP já com a cartilha ideológica debaixo da língua. O contexto familiar era de esquerda mas não militante. Foi em casa que começou a ler clássicos do marxismo-leninismo publicados pelas Edições "Avante!".

Depois, na faculdade, envolveu-se no associativismo estudantil. Não passou porém os muros da faculdade para empenhamentos nacionais, nessa altura. Cruzou-se com o presidente da câmara onde é vereador da oposição, Fernando Medina, então presidente da FAP (Federação Académica do Porto). Licenciou-se em Biologia. Tem iniciado - mas não está terminado - um doutoramento em espécies vegetais exóticas invasoras (as acácias, por exemplo). Não gosta de falar de aspetos da vida pessoal. Na página pessoal no Facebook diz que é casado. Sabe-se que tem dois filhos. Tem 40 anos (nasceu em 20 de novembro de 1978, em Lisboa). Austero e reservado - é o mínimo que se pode dizer. É do Sporting mas já não é sócio. De vez em quando vai à bola.

Jerónimo de Sousa e João Ferreira têm estilos que são água e vinho mas, no que toca a eficácia eleitoral, não produzem resultados diferentes - pelo contrário. Ambos fizeram estancar perdas e até fazer crescer o PCP nas eleições em que se envolveram diretamente. Jerónimo chegou à liderança do PCP em 2004, sucedendo a Carlos Carvalhas, e nessa altura o partido tinha dez deputados (em 230). Hoje tem 15 (a que se somam dois do PEV). O PCP já não tinha 15 deputados na AR desde 1999.

É certo que o partido está hoje, no Parlamento e com os seus 8,25% de votos nas legislativas, bem longe dos 18,8% obtidos em 1979 sob a liderança de Álvaro Cunhal. Mas a partir daí veio sempre a descer, com um sobressalto positivo aqui e ali - e Jerónimo inverteu o processo. Tem subido à média de um deputado por eleição.

João Ferreira fez o mesmo no Parlamento Europeu. Em 2014 foi pela primeira vez cabeça de lista. Fez aumentar o número de eleitos de dois para três (em 21). A CDU passou de quarta maior força nacional em Bruxelas para terceira, só atrás do PS e do PSD e ultrapassando o Bloco de Esquerda (que é a maior alegria que um comunista pode ter). O PCP já não tinha três eurodeputados desde 1994.

Eleitoralmente, aliás, o jovem biólogo parece funcionar como uma espécie de ás de trunfo: onde se mete, ganha - e por isso o seu nome aparece sempre quando se fala num sucessor para Jerónimo de Sousa (o congresso para tratar disso poderá já ser o próximo, em 2020). Em 2013 foi pela primeira vez candidato à câmara de Lisboa, substituindo na função um histórico do partido, Rúben Carvalho. E fez subir o número de vereadores do PCP de um para dois, resultado que manteve quando se recandidatou, em 2017.

O tempo. João Ferreira parece não saber como se perde tempo. Não o consegue fazer. O dia começou em frente à câmara da Vidigueira. Pontualmente, pelas 11h30, o candidato aparece, transportado numa carrinha Ford Focus de gama média-alta, com um motorista do PCP. O sol brilha. Estamos na praça da República, onde fica a câmara municipal (que é do PCP) e só se veem meia dúzia de jornalistas e meia dúzia de militantes do partido. O povo estará algures - mas ali não.

Ferreira dirige-se imediatamente aos jornalistas, para a primeira conferência de imprensa do dia, e explica quais serão os temas do dia na sua campanha: ambiente, alterações climáticas ("que devem ser uma preocupação do quotidiano mais do que um tema de campanha") e agricultura (estamos na zona de influência do Alqueva,"que serviu para criar ricos mas não serviu para criar riqueza"). Debita as propostas do partido: limitar as emissões industriais poluentes e retirá-las do mercado do carbono; um Observatório Europeu da Seca a localizar no interior de Portugal; controlo público do setor energético (EDP e Galp) mas sem soluções concretas de como o fazer ("podem ser várias as soluções"); dinamização pela próxima PAC da "pequena e média agricultura" em detrimento da agricultura intensiva.

No caminho até à Vidigueira também já se tinha preparado para perguntas fora do programa, relacionadas com temas da atualidade extra-campanha europeia. A dessa manhã relacionava-se com manuais escolares gratuitos (o Tribunal de Contas alertou para a possibilidade de não haver cabimento orçamental para generalizar a medida até ao 12º ano, como está previsto). A resposta estava preparada: "Essa medida tem de ser assegurada", "não há no Orçamento do Estado nenhum impedimento" para que isso aconteça. Recado ao Governo: nem pensem! Se há medida que o PCP reclama como sua, é esta, a da gratuitidade dos manuais escolares. Ela constituiu, com a da redução dos preços dos passes sociais, uma das principais fontes de recuperação de rendimento das famílias.

Depois, pequeno passeio pela vila, contacto com meia dúzia de trabalhadores administrativos da câmara, depois com outra meia dúzia, nos estaleiros da autarquia. A comitiva segue de seguida para um almoço em Cuba - com não mais de cem militantes -, estando ao fim da tarde em Beja, numa arruada. Aqui Ferreira diz que há cinco anos, na anterior campanha europeia, não apareceu "nem metade" das pessoas que agora estão (umas poucas dezenas). Percorre-se o centro histórico da capital do Baixo Alentejo sem nenhum entusiasmo especial. Como bastião comunista, Beja já teve melhores dias: a câmara é PS.

As sondagens falam em aumento da abstenção e em perda de influência da CDU, possivelmente grave (de três eurodeputados para um). O candidato desvaloriza: "O reconhecimento do nosso trabalho leva-nos a ter muita confiança nesta batalha e no resultado que vamos ter." Além do mais, o Parlamento Europeu "não precisa de mais deputados do PS, do PSD ou do CDS". Sempre que pode, João Ferreira mete os socialistas no mesmo saco dos do PSD e do CDS: "No essencial estiveram sempre de acordo." E isso acontece porque, em Bruxelas, não há nenhuma 'geringonça' (palavra que aliás nunca se lhe ouve): "Na Assembleia da República, o PS está condicionado. Quando o PS está livre, como no Parlamento Europeu, alinha à direita em tudo o que é determinante."

Ao mesmo tempo, porém, salvaguarda a solução política das esquerdas, sublinhando que foi o PCP quem, na noite das últimas legislativas, disse que o PS devia governar mesmo tendo perdido das eleições. "O PCP foi o único que disse 'eles [PSD+CDS] não ganharam, eles perderam'." Sempre a medir o tempo, a direção de campanha já tinha arranjado, antes da arruada em Beja, num parque de estacionamento deserto na orla da cidade, cinco minutos "e não mais" para uma conversa a sós entre o candidato e o DN.

Ferreira reconhece que hoje, em 2019, os tempos são "muito diferentes" do que eram em 2014, quando o país ainda estava na ressaca imediata da troika, "com muita revolta e desesperança" - algo decisivo no resultado que a CDU então obteve para o Parlamento Europeu. Mas recusa afirmar se, para a mobilização do PCP, os tempos agora são "diferentes" para melhor ou para pior. Reconhece, quanto muito, uma certa "incompreensão" do eleitorado em geral para com o papel que o PCP teve em 2015 a lançar a solução de esquerda que possibilitou ao PS governar uma legislatura sem maioria. Quanto a futuras 'geringonças', todas as opções em aberto e só há uma certeza: "Iniciou-se um caminho de recuperação de rendimentos. Aqui chegados, o tempo não é para parar nem para andar para trás. É para andar para a frente. E para isso é decisiva uma alteração da relação de forças e um reforço da votação da CDU."

O dia - rotineiro, afinal de contas - terminou em Serpa, com mais um jantar com apoiantes.

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