Evocação de militar ligado a Jaime Neves irritou chefe do Exército
Victor Ribeiro fundou a Associação de Comandos e foi um dos homens mais próximos de Jaime Neves no 25 de Novembro. Horas antes de morrer, em março, recebeu a visita do Presidente da República no hospital. Semanas depois, a evocação pública do seu nome pelo comandante do Regimento de Comandos (RC) irritou o comandante do Exército.
Diferentes fontes militares ouvidas pelo DN confirmaram o clima de forte crispação no final da cerimónia do passado dia 13 de abril, com um oficial a garantir que o Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), general Rovisco Duarte, qualificou o coronel Pipa Amorim como "político populista".
O Exército não respondeu às questões do DN sobre o caso. O mesmo fez o gabinete do ministro da Defesa, Azeredo Lopes.
A cerimónia em causa marcou a receção do estandarte nacional do 2º contingente chegado da República Centro-Africana, a 13 de abril. Uma semana antes, o Parlamento aprovara - com os votos contra do BE, do PCP, dos Verdes e a abstenção da socialista Wanda Guimarães - o voto de pesar apresentado pelo CDS pela morte de Victor Ribeiro.
Esse tenente miliciano morreu a 24 de março de 2018. Internado na Fundação Champalimaud, Victor Ribeiro recebeu na noite anterior a visita do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que "não estava acompanhado" pelo CEME, confirmou fonte oficial ao DN.
O discurso do coronel Pipa Amorim, na parada do RC, foi dado a conhecer antes ao CEME, que, pela cadeia hierárquica, fez saber que o coronel deveria eliminar as referências a Victor Ribeiro. Mas o comandante, segundo oficiais próximos dele, retirou algumas frases e manteve - algo comum em cerimónias militares - a evocação da memória do militar.
Segundo um dos presentes na cerimónia, Pipa Amorim afirmou: "Permitam-me homenagear e prestar o meu público reconhecimento a este grande português, um dos últimos guerreiros do império, que como militar, adicionalmente à sua promoção por distinção, foi condecorado com as medalhas de Valor Militar e da Cruz de Guerra e como civil foi agraciado, na véspera do seu falecimento, ainda consciente, no leito onde agonizava, com a Ordem do Infante D.Henrique, pelo Presidente da República".
"A ele muito devemos, como elemento chave na mobilização de Comandos na situação de disponibilidade, que permitiram a constituição das companhias de convocados, fundamentais para o sucesso das operações militares do 25 de Novembro de 1975, tendo a sua atuação sido fundamental para as liberdades, direitos, regras e instituições que formam e enformam o Estado de Direito que hoje nos orgulhamos de ser".
O 25 de Novembro, que suscita interpretações diferentes à esquerda e à direita, pôs fim ao Processo Revolucionário em Curso (PREC) e culminou meses de crescente tensão entre grupos daquelas áreas ideológicas.
Nas Forças Armadas, o choque entre revolucionários e moderados deu-se naquela madrugada, quando militares paraquedistas ocuparam várias unidades. Mas os moderados, sob a chefia de Ramalho Eanes e com os comandos liderados por Jaime Neves (muitos deles contactados por Victor Ribeiro nos meses anteriores), acabaram com a revolta e deram início ao processo constitucional.
Victor Ribeiro, "bem ou mal, é uma personagem histórica conotada com o 25 de Novembro e que não agrada a certo lado político", assinalou uma alta patente, associando politicamente este caso ao da presença de alunos homossexuais no Colégio Militar (2016), em que o ministro Azeredo Lopes foi acusado de agir sob pressão do BE.
Aquele militar, que foi o primeiro presidente da Associação de Comandos "independentemente da sua conotação política", voltaria a ser evocado na tradicional Homenagem aos Combatentes, a 10 de junho deste ano. O presidente da comissão organizadora, tenente-general Carvalho dos Reis, "evocou [Victor Ribeiro] de forma mais política e não veio mal ao mundo", lembrou um dos antigos militares participantes.
No final do discurso do coronel Pipa Amorim, o CEME também lhe disse - "de forma quase descontrolada", segundo um dos presentes - que se ia embora de imediato do quartel da Carregueira.
O DN não conseguiu falar com Pipa Amorim, tendo o seu gabinete remetido quaisquer comentários para o ramo. Segundo um dos seus amigos, sem traço de humor, o comandante do RC tem-se mantido "quieto, calado e voltado para a frente".
De acordo com vários oficiais do Exército, a insistência do coronel Pipa Amorim em invocar a figura de Victor Ribeiro naquela cerimónia - apesar de o CEME lhe ter feito saber antes que não o deveria fazer - traçou o seu destino ao fim de um ano à frente dos Comandos.
O DN não conseguiu confirmar se o ministro da Defesa também teve conhecimento prévio do discurso e que posição tomou. O que se sabe é que, em julho e questionado sobre a polémica em torno da exoneração de Pipa Amorim, Azeredo Lopes reagiu com alguma crispação: "As questões de soalheiro deixo-as para quem as faz. Não tenho que contar razão nenhuma."
Sendo aquele um caso do foro interno do ramo, Azeredo Duarte, citado pela Lusa, manteve o tom: "O responsável político não tem por hábito intervir em questões de soalheiro e portanto deixa as questões de soalheiro para o nível de onde elas vêm."
Em pano de fundo estava um artigo do jornal digital Observador (e perguntas posteriores do PSD) a falar no alegado desagrado causado por Pipa Amorim na cerimónia do Dia dos Comandos. A razão apontada era ter lembrado as mortes dos recrutas em setembro de 2016, pelas quais vão ser julgados 19 instrutores comandos - que os seus irmãos de armas consideram inocentes até à sentença em contrário.
Azeredo Lopes remeteu ainda os jornalistas para Pipa Amorim (sabendo que este não estava autorizado a falar): "Vá perguntar ao senhor comandante ou a quem quiser, eu ainda não ouvi falar o senhor comandante e portanto questões de soalheiro, que nascem como todos sabemos, com os mesmos intervenientes de sempre."
Certo é que as fontes do DN garantiram que a verdadeira razão para o desagrado da hierarquia - pelo menos a militar - com Pipa Amorim foi a referência a Victor Ribeiro em abril e não apenas a relativa à defesa dos instrutores no caso das mortes dos recrutas, 10 semanas depois.
Pipa Amorim "esteve para ser exonerado antes [em abril] e depois conseguiu-se que o chefe [do Exército] adiasse isso", lembrou uma das fontes.
Rovisco Duarte "ficou muito desagradado com algumas coisas que ele disse na altura e ficou praticamente assente que seria agora" substituído, que "pelo menos o deixavam ficar até ao dia da unidade", acrescentou o mesmo oficial, já fora das fileiras.
Recorde-se que a exoneração de Pipa Amorim, com data de 8 de maio, só foi conhecida a 6 de julho - uma semana após as comemorações do Dia dos Comandos, a 29 de junho. O seu substituto é o coronel Eduardo Pombo, que ainda não assumiu funções.
Ora esta questão das datas parece confirmar que a decisão do CEME teve a ver com o discurso de abril - o "dia em que de facto houve a exoneração", como sintetizou uma alta patente - e não o de junho.
O coronel soube da nomeação do seu sucessor a 3 de julho, por um telefonema do quartel. O seu superior hierárquico direto e comandante da Brigada de Reação Rápida também soube por telefone - e pelo próprio Pipa Amorim, asseguraram algumas das fontes.
O Exército limitou-se a dizer ao DN que a saída de Pipa Amorim após cerca de um ano à frente do RC - ao contrário dos antecessores - resultou do "cumprimento de aspetos estatutários como, por exemplo, o tempo de comando prescrito na lei" (leia-se mínimo de um ano para poder ir ao curso de promoção ao generalato).
A "gestão de carreiras dos oficiais dos Quadros Permanentes, dos diferentes quadros especiais" das Armas foi outra razão avançada pelo Exército.
Fontes do ramo observaram ao DN que os oficiais do curso de Pipa Amorim já tinham sido apreciados duas vezes para ida ao curso de promoção a oficial general - e que aquele coronel não foi escolhido em nenhuma das vezes. Daí que a sua substituição pelo coronel Eduardo Pombo vise dar a este tempo de comando para ser avaliado, adiantou um dos oficiais.
Uma fonte que trabalhou com Pipa Amorim garantiu ao DN que o coronel "é um excelente militar" - avaliação repetida por outros oficiais da arma de Infantaria.
Lembre-se que o ainda comandante do RC entrou para o Exército como soldado. Já como cabo, fez o curso de Comandos e depois a entrada na Academia Militar - onde foi "o primeiro" do seu curso, enfatizaram várias das fontes.
Nos quadros permanentes, entre outras funções, Pipa Amorim foi oficial de operações, segundo comandante em São Jacinto e comandante do RC. Aqui substituiu o coronel Dores Moreira, que também foi preterido no curso para oficial general, num período muito agitado do regimento que se mantém.
"Em termos de comando de tropa, [o coronel] conhece a tropa", elogiou uma alta patente, explicando assim a defesa que o coronel fez dos seus homens nos lugares e termos em que o fez - até "porque do outro lado estão muitos", frisou um dos oficiais críticos do silêncio do CEME relativamente aos instrutores comandos.
. Talvez isso explique as atitudes de solidariedade e homenagem - cartas ao Presidente da República, almoços - adotadas por oficiais na reserva em relação a Pipa Amorim.