Da sombra à exposição das redes sociais: o desconcertante Arnaldo Matos

Faria 80 anos no domingo, morreu esta sexta-feira o homem que fundou o MRPP. Deixou o partido em 1982 e voltou nos últimos anos. Tinha um humor irascível, bigode farto, voz cheia, uma retórica desabrida e implacável. Também no Twitter, que descobriu aos 78 anos.
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Arnaldo Matos era um político desconcertante. Com quase 80 anos, descobriu o Twitter, para melhor passar a sua mensagem política, em posts que disparavam em todas as direções, numa retórica desabrida e implacável que parecia transplantado dos comícios do Verão Quente de 1975, quando se gritava "Morte aos Traidores!" - e quando ele se identificava como "grande educador da classe operária".

Na hora da sua morte, ocorrida na madrugada desta sexta-feira, em Lisboa, dois dias antes de fazer anos (nasceu em Santa Cruz, na Madeira, em 24 de fevereiro de 1939), o partido de que foi fundador e no qual mandava sem ser dirigente deixou-lhe um elogio no mesmo registo que usava nos breves textos da rede social ou nos longos editoriais do Luta Popular , o órgão oficial onde escrevia com regularidade.

Para o PCTP/MRPP, a "sua obra" e o "seu exemplo" serão "um guia na luta do proletariado revolucionário e dos comunistas pelo derrube do capitalismo e do imperialismo e pela instauração do modo de produção comunista e de uma sociedade de iguais".

A sua ligação ao partido era informal: afastou-se em 1982, deixou de ser militante e o partido escreveu, três anos depois, para o Tribunal Constitucional a informar que Arnaldo Matos não era mais o seu secretário-geral. Já neste século XXI, o fundador do movimento regressou sem sair da sombra e começa a mexer os cordelinhos do partido, aconselhando, propondo, sugerindo - e começando a mandar, cada vez mais.

É com as eleições de 2015 que o advogado de formação e político de convicção ensaia um golpe para depurar alegados desvios "social-fascistas" e toma conta do PCTP, afastando de vez o rosto das últimas décadas do partido, o seu afilhado António Garcia Pereira, invocando o estatuto de fundador.

Era assim Arnaldo Matos: com um humor irascível, de bigode farto, voz cheia, uma linguagem sempre colorida e argumentos que convenciam sempre quem o rodeava. Esteve na crise académica de 1969/70, onde germinaria também um movimento novo e eclético que viria a ser o MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), fundado em 18 de setembro de 1970, pelo próprio Matos, juntamente com Fernando Rosas, Vidaul Ferreira e João Machado.

O 25 de Abril apanha desprevenidos Arnaldo Matos e os militantes do MRPP. Num comunicado publicado já com a Revolução em marcha, o Comité Lenine, comité central do MRPP, descreve o movimento dos militares como um confronto entre a "camarilha spinolista" e a "camarilha marcelista". O texto será do dia 26 de abril, denunciou José Luís Saldanha Sanches, antigo militante, quando bateu com estrondo a porta da saída, ainda em 1975. A desconfiança sobre os acontecimentos do dia 25 explica o tempo em que Arnaldo - e outros do partido - viveu ainda na clandestinidade, na sombra.

O homem que atacava todos os outros como social-fascistas, nomeadamente o PCP ou o PS, acabou por se aliar aos socialistas do lado dos vencedores do 25 de Novembro e apoiou as candidaturas de Ramalho Eanes para Belém, em 1976 e 1980. Matos tinha sido um militar que serviu às ordens de Eanes em Macau, na década de 1960, e ficou a camaradagem desses tempos.

Em maio de 1975, o assalto às sedes do PCTP/MRPP, legalizado meses antes, em 18 de fevereiro, acabou por fazer cerca de 400 presos, incluindo Arnaldo Matos, e agrava as consequências políticas para o partido, que tinha sido proibido de ir a votos, em abril, por um motivo burocrático: o símbolo era muito semelhante ao do PCP e o Conselho de Revolução condicionou a participação nas eleições para a Assembleia Constituinte em 1975 à alteração desse símbolo.

O PCTP perdeu na secretaria e perdeu o comboio das urnas. Nunca chegou a ter força eleitoral e esboroou-se a sua força de agitação social e propaganda. E Arnaldo foi ficando na sombra, longe do fulgor da verve revolucionária dos anos quentes.

Em 1982, deixou o partido e a política. Tinha de alimentar a família, explicou-se. Anos mais tarde, numa rara entrevista, dada ao DN em 2004, admite que deixara de valer a pena. A contrarrevolução tinha ganho: "A esquerda deste país é uma merda", sentenciava, ele que mantinha uma leitura muito crítica do 25 de Abril, fechando a Revolução a "uma autêntica quartelada reacionária".

Nos últimos anos foi de novo reaproximando-se ao partido que fundou. Primeiro, como conselheiro de sempre de Garcia Pereira, seu afilhado, que olhava para ele como um pai. Garcia Pereira tinha ficado ao leme de um barco que sobrevivia apenas à tona e que acabou por lhe dar um outro fulgor, sobretudo desde as eleições legislativas de 2009, quando o PCTP/MRPP ultrapassou o limiar mínimo para obter uma subvenção pública.

Depois, mantendo-se de novo na sombra, dando ordens para dentro do partido, apenas com o estatuto de fundador. Nunca no Tribunal Constitucional, o seu nome voltou a surgir como dirigente do PCTP. No verão de 2015, a rutura foi acontecendo em surdina, entre Arnaldo Matos e Garcia Pereira, e terminou com estrondo e acusações violentas: o pai matava o filho e voltou a replicar as velhas palavras de ordem dos comícios de 1975. Para Arnaldo, António é um traidor.

Durante estes pouco mais de três anos foi mimoseando os ex-camaradas dos piores insultos, publicou umas Teses da Urgeiriça , em que pretendia aprofundar o marxismo, e atirou-se aos 140 caracteres do Twitter para cantar novos amanhãs e velhos ódios: contra o "putedo" da esquerda, contra o "monhé" António Costa, contra os social-fascistas do PCP, justificando ataques terroristas como os do Bataclan em Paris, atacando a polícia ou aplaudindo os estivadores em greve, contra tudo e contra todos. Ou quase sempre.

É esta sua conta do Twitter que guarda o último escrito de Arnaldo Matos, no dia 20, partilhando a foto de George Mendonsa, "o marinheiro do beijo do dia da vitória". "Aquele marinheiro ousado que aparece numa fotografia de 1945 a beijar uma enfermeira em Times Square, Nova Iorque, no dia da vitória sobre o Japão, morreu no domingo passado, com 95 anos de idade, na sequência de um ataque cardíaco."

Esta sexta-feira, Arnaldo Matos morreu sem ver a sua estratégia para o PCTP eventualmente dar frutos e sem ver a sua revolução triunfar - e com os "traidores" que trucidava com palavras a andarem por aí.

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