Adriano Moreira: "Há uma coisa que acho perigosa: estão a renascer os mitos raciais"

Adriano Moreira tem uma longa vida de 97 anos que lhe dá calma para dizer o que lhe apetece. Sentir que "o tempo se tornou um bem escasso" faz que o aproveite. O jurista, político e ex-presidente do CDS - e cronista do DN - continua curioso. <em>(Artigo publicado originariamente a 30 de novembro)</em>
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Entrevistar Adriano Moreira é um exercício complexo. Vamos com uma ideia para uma pergunta, saímos dela com três. E ele, político, historiador, analista do mundo, curioso, no fundo, leva sobre nós a vantagem dos seus 97 anos de observação. Por isso, nunca começa pelo óbvio, nunca conta as histórias de que estamos à espera ou que já lhe lemos e ouvimos - ainda escreve, todos os domingos, no DN. Antes, vai dar a volta à sua longa análise sobre todas as coisas, para ir buscar aquilo de que precisa para responder. Também por isso não tem muita paciência para discutir política nacional, e recusa-se a comentar questões concretas - foi o que aconteceu quando lhe pedimos para debater o que se passa no seu partido, o CDS. Esta foi uma entrevista feita em duas partes, seguidas, na Academia das Ciências, aonde ainda vai todos os dias e trabalha nos projetos estratégicos. Parámos, não porque estivesse cansado, mas porque não conseguíamos meter mais ideias no tempo que havia em antena. A segunda parte será publicada amanhã, na TSF e no DN online.

O mundo está muito polarizado...
E combativo. Com linhas vermelhas a separar as etnias, as culturas, as religiões...

O Parlamento português, por exemplo, tem um novo desenho, com novos partidos. Entrou um partido como o Chega, que é normalmente conotado com um partido populista de extrema-direita. O discurso que durante muitos anos vingou em Portugal de que nós estávamos imunes a este tipo de realidades deixou de fazer sentido?
Ainda neste ano saíram traduções de duas Histórias de Portugal de gente do mundo saxónico e os dois textos, aliás muito brilhantes, dizem que continua a ser um mistério o milagre que levou um dos mais pequenos países da Europa a construir o primeiro grande império colonial. Mas a tal história de que nós, pessoas e países, dependemos da circunstância mostra-nos que Portugal cada vez mais está submetido à circunstância. Foi pela circunstância que chegou à Guerra Colonial e pela diferença de entendimentos que nós tínhamos, mesmo no país, e a circunstância tem levado - vou reproduzir o que tenho escrito, mesmo no Diário de Notícias - a que qualifique o país, neste momento, de duas maneiras: o país é um país exógeno, quer dizer, submetido aos efeitos das decisões em que não toma parte, e, ao mesmo tempo, um país exíguo, longamente submetido ao défice da relação entre objetivos e recursos. E é assim que nós estamos neste momento. Isto resulta, em grande parte, em que temos de acompanhar a mudança da circunstância europeia. Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu (PE), a França teve a concorrer 30 partidos. Haverá um conceito estratégico nacional bem definido com 30 partidos? A circunstância mundial mudou, estamos numa arena global com competições políticas. Mas isto já mete não só os líderes daquelas vozes encantatórias dos países que fizeram a ONU, que fizeram a Europa, pois essas vozes encantatórias desapareceram. E os partidos clássicos têm de se redefinir, porque a resposta à circunstância é outra e, por isso, não é de espantar que mesmo em Portugal tenha o significado encontrado efeito, e modesto, são só quatro partidos. Bom, isto significa que a redefinição tem de ser feita.

Como?
Tem de aparecer quem tenha aquilo que eu chamo - só para esperar que se possam levantar altares e recordações - as vozes encantatórias, e é muito difícil. Voltando sempre à França, que foi um elemento fundamental na organização da Europa, este, quase podemos dizer, rapaz que é Presidente da República, como que destruiu os partidos quando foi eleito. Não chega ter ganho e tornado evidente que isto já não responde à circunstância. Alguém acreditou - aqui vem a voz encantatória! Rapidamente ficou com o quê? Tem movimentos sem liderança conhecida, como é o caso dos coletes amarelos. Aqui já começam a discutir quem é que dirige coisas como aquela da manifestação da Polícia de Segurança Pública [o Movimento Zero], é uma situação geral... Se essas vozes encantatórias não surgirem nos grandes partidos ou tradicionais, podem surgir do outro lado, podem surgir nos movimentos populistas? Há algumas coisas que nem se pode dizer se irão surgir ou se já surgiram. Nós levámos uma época em que tínhamos confiança na utopia das Nações Unidas - eu vivi isso intensamente, porque considero uma das minhas quedas no mundo o ter sido delegado às Nações Unidas...

André Ventura é uma dessas vozes?
Normalmente, não faço comentários sobre pessoas, então se forem mortos aplico-lhes o princípio cristão de mortuis nihil nisi bonum [só se diz bem dos mortos]; dos vivos, só quando conheço muito bem e não o conheço. Acho que é cedo ainda para, do ponto de vista abstrato, estar a fazer julgamentos. O que me interessa é que o fenómeno do aparecimento destes partidos é uma resposta consciente ou não à mudança da circunstância internacional em que faliram os princípios que não estão na Carta, mas eram aquela justiça natural que assenta em imperativos que não é preciso estarem escritos. Portanto, isto são respostas de incómodos com o que se está a passar, demonstrações de que tem de ser executada uma reforma.

Diria que é porque as pessoas buscam essas vozes encantatórias algures, não é?
É. Há uma coisa que é muito curiosa que já todos sabem, não vale a pena insistir nisto: na evolução da ordem mundial houve uma grande questão que ainda não está resolvida, nem estará tão cedo, entre a importância da religião e do Estado. Isso não foi acolhido nos textos que organizaram a tal ordem, mesmo depois da guerra 39-45 e até do Tratado de Lisboa. Recusaram-se a pôr a referência aos valores cristãos e eu acho que, se o Camões aparecesse cá, ficava muito aborrecido com isso. Há nas Nações Unidas uma pequena sala que foi organizada por um grande secretário-geral, aquele que morreu no Congo, Dag Hammarsköld, quando lhe atiraram o avião abaixo. É uma sala muito modesta, tem uns bancos de madeira, depois tem uma espécie de altar que é uma pedra de mármore, uma pequena luz que vem do alto... e chama-se sala de meditação para todas as religiões. Isto é da fundação das Nações Unidas. Há aquele movimento daquilo a que se chamou a Mensagem de Assis de João Paulo II, para que se encontrem as diferentes religiões e se entendam. De tal maneira que foi aqui, em Lisboa - realizou-se a sessão há duas semanas na Gulbenkian -, o anúncio de um instituto de muçulmanos para a harmonia e paz. Pela primeira vez. Mas, se repararem, nas Nações Unidas quem é que foi chamado? Foi chamado Paulo VI, o bispo de Roma. O Papa que deixou um princípio: o desenvolvimento é o novo nome da paz. Depois, João Paulo II, por duas vezes, contra os países que dominavam os outros. No fundo, a libertação da Polónia, que a meu ver é a nação mais mal estacionada na Europa - está sempre a acontecer-lhe uma coisa desagradável. Devo dizer que assisti a uma das reuniões da Nova Mensagem de Assis e realmente foi notável, porque estavam representantes de várias religiões. O Mário Soares fez um discurso largamente aplaudido, imaginem [risos]. Essa gente assistiu com uma devoção tal - líderes religiosos, os muçulmanos que vinham do Cairo - que foi extraordinário e teve grandes efeitos na pacificação de Moçambique. Depois perdeu-se, mas deve-se agradecer-lhe isso. Finalmente, este Papa que foram buscar ao fim do mundo também já lá foi. Quer dizer que há uma certa aceitação de que falta um conceito global, e há uma coisa que eu acho perigosa: estão a renascer os mitos raciais. A impressão que tenho é que os mitos raciais nasceram de um parente e discípulo de Darwin que resolveu identificar os grupos pela cor - os brancos eram os europeus, naturalmente, depois os amarelos, depois os pretos, etc. Houve uma grande luta contra esses mitos raciais e quem herdou esse combate estatutariamente foi a UNESCO e houve um apaziguamento.

Mas agora esses mitos raciais regressam do outro lado. Como é que vê essa espécie de revisionismo histórico ao contrário?
É uma pergunta que já me fizeram em público. Nós estamos sempre a ser surpreendidos, neste momento, pelo passado. Porquê? Porque chegam as pessoas e fazem uma interpretação que nunca nos tinha ocorrido, e aí está o passado a surpreender-nos. Naturalmente, daí nasce um movimento para redefinir o futuro, só que o futuro acontece antes de chegarem ao fim e vem o futuro a surpreender-nos. É o que está a acontecer. Ninguém adivinhava ou desejava que seríamos incapazes de impedir que a ordem mundial se transformasse na arena mundial em que está neste momento. Desta vez, nasceu o mito contra os muçulmanos. E porquê? Porque o avanço da técnica e da ciência permitiu que o fraco vencesse o forte, foi o caso das torres americanas. Isso está a levantar outra vez os mitos, incluindo a importância que se dá ao mito dos muçulmanos, e isso é uma situação que eu considero grave, porque vai ser uma espécie de revogação dos tais dois pressupostos da utopia das Nações Unidas que eram um mundo só, que não vai ter guerras, e a Terra casa comum dos homens. Neste momento, muitas vezes me ocorre um comentário do Bismarck, que disse o seguinte: uma leviandade pode conduzir a um desastre. Aconteceu com o arquiduque. Mataram um arquiduque e pagámos isso em milhões de vítimas. E aquilo de que nós estamos, a meu ver, neste momento dependentes nesta arena é que uma leviandade pode levar à destruição da Terra, com o número de países que têm a bomba atómica. O Papa Francisco, ainda nesta semana, considerou uma imoralidade ter bombas atómicas. Ele não tem limitações na intervenção, mas, quando nós assistimos àquilo que o presidente dos Estados Unidos ainda chama relações diplomáticas - ele é muito inovador, até na linguagem - com um líder perigosíssimo que é o da Coreia do Norte, faz-me lembrar o Bismarck. Esta luta, neste momento, onde, no fundo, quem tem mais relevância é a China e os EUA... São os que têm efetivamente mais relevância. Tem a China a exercer a tal diplomacia de influência, ameaçada pelas ambições que ela mantém da sua unidade antiga. Porque, se repararem, a China em geral não diz nação, diz civilização chinesa. Porquê? Porque tem minorias enormes. A primeira vez que se deu por isso foi quando apresentou um porta-aviões ao pé de Taiwan, ofendida com o facto de entre os cinco grandes não estar a China, estar Taiwan, durante anos. E porquê? Porque Chiang Kai-shek, quando foi para lá, foi acompanhado de uma escolta, que era o maior exército que ele tinha, declarou-se presidente de toda a China. Eles lá sempre disseram "toda a China", eles querem absorver isso. Eles tinham uma navegação importante que puseram de lado, quando começou a nossa já não tinham. Neste momento, estão a recuperar e querem o seu mar territorial. Passou um pouco despercebido que a França mandou a sua esquadra para aquele mar. Porquê? Porque ainda tem umas proteções que, se bem recordo, ainda abrangem um milhão e tal de pessoas.

Mas a China não quer mais do que isso? A chamada Nova Rota da Seda não é uma ambição maior ainda?
É que ela faz isso com a tal diplomacia de influência. Ela não vai fazer isso com os exércitos à frente, mas não põe de lado a ambição de recuperar toda a fronteira da China. Tem, por exemplo, uma minoria muçulmana na fronteira da Rússia e está a fazer uma intervenção. Quando ficou com um país e dois regimes, que lhe permitiu ficar com Hong Kong - a que podia perfeitamente a Inglaterra ter dado a independência e ficado com aquela maneira de viver que foi construída pela Inglaterra -, teve a imaginação de ter um país e dois sistemas, com um prazo, e esse prazo está a acabar.

E o que se está a passar em Hong Kong é exatamente por o prazo estar a acabar?
Eu penso que é em relação a uma sociedade que tinha sido construída com os modelos ocidentais. Porque a ilha era uma coisa abandonada, não vivia lá gente, foram os ingleses que fizeram isso. Eu acho que foi um grande erro da Inglaterra, mas não esqueceu a China. E vai conseguir. Eu penso que aquilo que devemos desejar - até escrevi num artigo para o Diário de Notícias - e que é do interesse da diplomacia de influência chinesa - repare que saiu de Hong Kong a multidão de estudantes ocidentais que estavam a estudar lá -, é que eles percebam a importância económica que isto tem para a China, e talvez esse interessezinho possa acalmar as coisas. É isso que devemos desejar.

E Portugal, no meio dessa luta mais ou menos subterrânea, mais ou menos pouco subterrânea, entre a China e os EUA, onde é que se coloca? Ainda por cima, tendo em conta, como disse, a quebra da influência atlântica que neste momento se sente na Europa?
Portugal teve um grande triunfo nesta alteração do império euromundista, etc. A Inglaterra já tinha a comunidade e, portanto, já tinha um quadro em que se podia movimentar. E, a meu ver, fez duas coisas que foram imprudentes: uma foi atirar com a toalha na história da Palestina, e na História britânica não é costume atirar com a toalha. A outra foi na China. Houve uma primeira grande tentativa do De Gaulle para manter a França unida às suas antigas colónias, não o conseguiu. Lembram-se que ele era uma pessoa muito cheia de orgulho... Uma vez perguntaram ao Churchill: qual foi o seu maior incómodo durante a guerra? A cruz de Lorena, foi o que ele respondeu [risos]. Ainda houve outra tentativa de cooperação - eu também assisti a reuniões disso e ainda me lembro do sítio, London Street, 29 - que morreu sem certidão de óbito. Bom, o único país que conseguiu foi Portugal - a CPLP e o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, que nasceu no Recife no Centro de Estudos do Gilberto Freyre e que foi atacado ao longo dos anos, comprometido com o governo autoritário português, esta maneira sempre dos discursos. Mas é curioso que o primeiro Presidente da República, que era professor universitário e que durante toda a sua vida criticou Gilberto, quando chegou a presidente, declarou que o ano 2000 era o ano Gilberto. O reitor da Universidade de Brasília, que era um comunista ativo, um grande cientista, teve de fugir do Brasil porque era muito contrário ao regime e também sofreu muito fisicamente, coitado, de doenças, deixou dois ensaios onde diz: assim como a Itália seria outra sem Dante, a Espanha sem Cervantes, Portugal sem Camões e o Brasil sem Gilberto. Isso inspirou o Instituto internacional da Língua Portuguesa. Foi o único tal pequeno país com um milagre que ninguém explica, que fez o primeiro grande império, que conseguiu fazer isso. Insiste-se muito na língua e eu digo que não é só isso. Como não é só isso eu uso mais uma outra fórmula, que não faz mal a ninguém, e que é a maneira portuguesa de estar no mundo. Isso, aliás, foi ainda há muito pouco tempo posto muito em evidência pelo antigo reitor da Católica [Universidade], num livro que publicou agora, O Retrato de Portugal. É a maneira portuguesa de estar no mundo. Isso não quer dizer que foi tudo muito bom. Pelos critérios de hoje foi péssimo - a escravatura, a meu ver, principalmente o transporte dos escravos. É muito diferente ser escravo no sítio onde se nasceu - as árvores, os pássaros, as pessoas e ir para outro sítio.

A propósito de estarmos sempre a ser surpreendidos pelo passado: esta discussão que renasceu sobre o 25 de Novembro é um desses exemplos?
Não. Aí o que há é a recusa. É demasiado próximo para se estar a fazer uma novidade. Pode acontecer, mas o que há aí é a recusa da importância que foi. É essa recusa, porque, efetivamente, foi um movimento fundamental para a vida portuguesa.

Mas equiparável ao 25 de Abril, ou seja, também acha que deviam ser celebrados da mesma forma?
Eu acho que a gente tem problemas mais importantes para discutir em relação ao país. Eu não preciso de nenhuma celebração para saber que foi um travão para o que seria uma degenerescência perigosa da nova maneira portuguesa de viver. Considero inteiramente justo que, por exemplo, o general Eanes tenha recebido uma reverência do atual Presidente da República, isso considero. O resto é uma discussão. Tira-se daí alguma conclusão útil para os problemas do país exógeno que hoje é Portugal? Não se tira. O que é preciso ver é que a nossa própria estrutura de relações com essas antigas colónias, hoje Estados independentes, também enfrenta riscos neste momento.

A nossa relação com eles enfrenta riscos?
Sim, sim. Vou dizer porquê. Não é que venha deles, mas a simples saída da Inglaterra da Europa, que anda muito preocupada, e com razão, com a segurança europeia, mas não repararam que a Inglaterra levava o maior exército europeu e a maior esquadra... Era melhor ter sido mais flexível nas relações. A Inglaterra separa-se, mas Moçambique já pertence à união da Commonwealth; Angola pediu a entrada. Isso pode ter consequências porque nós não temos os mesmos meios, apesar de tudo, que a união tem. É preciso tomar isso em conta. Tem-me parecido que nós continuamos a beneficiar de uma boa diplomacia, uma diplomacia muito competente, mas que tem de ser de influência. Também há outra coisa importante: com as questões que há aqui já a crescer comas Forças Armadas, os custos, etc., não há nenhuma missão militar internacional de Portugal que não tenha terminado em grandes elogios. Isso traduz-se em projetar o pequeno país europeu em coisas internacionais, como foi a presidência do Conselho de Segurança, a presidência da Assembleia Geral, o secretário-geral, as migrações, tudo em mãos portuguesas.

Então isso quer dizer que acha que o Brexit vai mesmo acontecer?
Bom, eu não tenho a varinha do condão para saber isso. Mas, logo que o Brexit foi anunciado, a minha meditação, que vale o que vale, foi esta: a Inglaterra não é um Estado nacional, e isto é importantíssimo. Porque não sendo um Estado nacional, imediatamente este aspeto novo que há na Europa que são os micronacionalismos - que a Espanha está a ter e mais outros sítios estão a ter - pode atingir o Reino, há evidências disso. Isso foi a primeira coisa, a segunda coisa que me ocorreu logo foram os efeitos na CPLP. Porque a Inglaterra, com as dificuldades que tenha, ao pé de nós tem uma dimensão enorme, e o movimento da inscrição de Angola logo e de Moçambique que já foi, tem de ser tomado em conta. A nossa diplomacia tem de continuar a ser muito efetiva, competente como tem sido, para manter os nossos interesses ali e as relações históricas, atuais e futuras que são fundamentais para o país. Sobretudo, os reflexos que isto vai ter na segurança do Atlântico Sul. Nós não podemos perder de vista que a simples posição geográfica não é apenas a tese bastante poética de "O mar fez Portugal", não é o lamento que fez o cardeal-patriarca de Lisboa: "Estamos na terra que nos calhou ou onde encalhámos." Foi o discurso que ele fez. Nós, Açores, Madeira, Cabo Verde, Brasil, fazíamos parte da segurança do Atlântico. A relação com o Atlântico vai mudar e, portanto, é preciso fazer uma coisa - isto é talvez simples demais -, que é o seguinte: não temos conceito estratégico global, pois é uma arena, não há conceito estratégico renovado da Europa, os tais partidos que se multiplicam e cada um quer sua coisa, etc., e não há conceito estratégico português renovado. Hoje toda a gente anda a pedir a reforma do Estado, ora a reforma do estado tem duas vertentes. Aquilo de que as pessoas mais se queixam é da execução, da administração, é a saúde, é o ensino, é tudo. Mas a administração é para executar um conceito estratégico, e nós temos de ter um conceito estratégico português, que não temos, articulado com o conceito estratégico europeu, que se deteriorou, e com o conceito estratégico global de que andamos à procura, estamos na arena global.

Pensava que a preocupação com o Brexit seria mais do interesse comum dos europeus do que propriamente desse conceito estratégico de Portugal para fora da Europa. Não teme os efeitos mais concretos na União Europeia, se é que se pode considerar união?
Dentro da UE há gente inteligente, de facto - eu tenho alguma esperança nesta Comissão nova -, mas a relação entre a Europa e a Inglaterra foi rígida. A UE disse, "isto é assim", mas lá dentro andou a pedir alterações enormes. Não teria sido melhor uma negociação que acompanhasse uma articulação nova - os países não têm todos o mesmo estatuto dentro da Europa? Essa prudência não existiu e isso é mau, porque vêm as tais questões que está a pôr. Portugal aí não tem, do ponto de vista da dimensão, da força, etc., uma voz que seja ouvida e, nisso, a diplomacia tem de ser muito forte. Mas os factos são factos. A saída do Reino Unido da Europa é um facto cujas consequências nós não podemos enumerar, mas não podemos ignorar que o mar vai ficar um bocado revolto.

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