Diogo Freitas do Amaral. "Vivi e agi à minha maneira"
Diogo Freitas do Amaral legitimou a existência da direita no pós-25 de Abril, ocupou os principais cargos governativos em Portugal e foi mesmo o primeiro português escolhido para altos cargos internacionais. Mas o seu papel na revisão constitucional de 1982, que desmilitarizou o regime e redefiniu as competências do Presidente da República, é talvez o mais importante legado que deixa ao Portugal democrático.
Discípulo de Marcelo Caetano, sentiu-se genericamente incompreendido ao longo da sua vida política de três décadas marcada por preocupações de natureza social, que voltaram a sobressair durante o governo PSD-CDS de Passos Coelho. "Não precisei de ler Marx [...] para sentir o dever de solidariedade com os mais pobres", lembrou no verão passado, na que foi talvez a sua última aparição pública, para lançar o seu terceiro volume de memórias.
Referência na área do direito administrativo, Freitas do Amaral morreu nesta quinta-feira devido a um cancro nos ossos, após duas semanas e meia de internamento no hospital de Cascais. Nascido na Póvoa de Varzim a 21 de julho de 1941, casado e com quatro filhos, católico, Freitas do Amaral despediu-se da vida pública nesse dia 27 de junho de 2019 a ler versos do tema My Way (À Minha Maneira), de Frank Sinatra.
Freitas do Amaral concluiu em 1959 os estudos secundários no Liceu Pedro Nunes - onde também estiveram figuras como Jorge Sampaio, Marcelo Rebelo de Sousa, Pinto Balsemão e Guilherme d'Oliveira Martins.
Na Universidade de Lisboa, Freitas presidiu à assembleia geral da Associação de Estudantes da Faculdade de Direito - começando aí o seu percurso de "cidadão ativo, movido por um forte impulso interior no sentido da participação, do reformismo e de maior justiça social", como escreveu nas memórias políticas lançadas naquele dia, numa cerimónia presidida por Marcelo Rebelo de Sousa e onde era visível a sua fragilidade física.
Licenciado em 1963, tirou a seguir o curso complementar de Ciências Político-Económicas e em 1967 concluiu o doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas. Sempre ligado a essa área científica, iria participar três décadas depois (1996) na fundação da Faculdade de Direito na Universidade Nova.
Diogo Freitas do Amaral assumiu-se como um democrata convicto e profundo europeísta, ao ponto de em 1992 deixar o CDS - de que fora um dos fundadores em 1974 - devido ao posicionamento antifederalista do então líder, Manuel Monteiro.
Ultrapassado o cerco que marcou a realização do primeiro congresso do CDS, em 1975 e no Palácio de Cristal, no Porto, Freitas votou contra a Constituição de 1976 - ano em que publicou As Forças Armadas no Contexto da Nação - por a considerar demasiado socializante.
Em 1978 colocou o CDS no segundo governo constitucional e no quadro de uma coligação com o PS de Mário Soares. A experiência durou meio ano com Freitas fora do executivo - embora, curiosamente, tenha sido como membro de um governo socialista que terminaria a sua vida política, em 2006.
Freitas do Amaral assumiu pela primeira vez funções governativas em 1980, no âmbito da Aliança Democrática liderada por Francisco Sá Carneiro, como vice-primeiro-ministro e chefe da diplomacia.
Primeiro-ministro interino desse sexto governo constitucional, após a morte de Francisco Sá Carneiro num acidente cujas investigações nunca o convenceram, Freitas integrou no ano seguinte o executivo de Francisco Pinto Balsemão, como vice-primeiro-ministro e ministro da Defesa, sendo figura central no acordo com o PS que viabilizou a revisão constitucional de 1982.
Essa revisão - que Marcelo Rebelo de Sousa considerou outro exemplo, a par do chumbo da Constituição em 1976, da sua luta pelo "equilíbrio no sistema jurídico-político-institucional português" - fez subordinar as Forças Armadas ao poder civil, extinguindo o Conselho da Revolução e limitando os poderes presidenciais que então cabiam ao general Ramalho Eanes, que exercia a chefia do Estado em simultâneo com o cargo de principal chefe militar.
Naquela que foi a década mais consequencial da sua vida académica e política, Freitas do Amaral iniciou-a também como presidente da União Europeia das Democracias Cristãs, entre 1981 e 1982. Neste ano deixou o CDS e o governo, por desentendimentos no seio da AD que levaram ao desintegrar dessa aliança.
Professor catedrático em 1984, Diogo Freitas do Amaral procurou dois anos depois atingir o seu grande objetivo na vida política: ser presidente da República. Apoiado pelo PSD de Cavaco Silva e tendo Daniel Proença de Carvalho como diretor de campanha, Freitas corporizou com Mário Soares a mais renhida e memorável campanha eleitoral para o Palácio de Belém.
Essa dura campanha, sob o slogan Prá Frente Portugal e caracterizada pelos sobretudos verdes dos seus apoiantes, terminou com a sua derrota por cerca de 150 mil votos e duas grandes surpresas - uma positiva vinda de Mário Soares, "homem tolerante" que lhe fez chegar um ramo de flores no dia seguinte ao da eleição; outra negativa dada por Cavaco Silva, que recusou partilhar as dívidas da campanha.
"A história das minhas relações com Soares é feita de convergências e divergências, encontros e desencontros, grandes confrontos eleitorais, designadamente o das eleições presidenciais, mas também de uma aliança de governo, de várias alianças parlamentares, da revisão constitucional de 1982, da adesão de Portugal à CEE, uma convergência de rua nos combates de 1975 contra o gonçalvismo", recordou Freitas em 2013, durante a apresentação da biografia daquele líder socialista.
Freitas do Amaral voltou em 1988 à liderança do CDS, então conhecido como o partido do táxi por ter elegido apenas quatro deputados - cargo que deixou em 1992, quando colocou ponto final na vida partidária. Mas Cavaco Silva, reeleito nesse ano e novamente com maioria absoluta, decidiu propô-lo para presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas na sua 50.ª sessão anual (1995) - levando Durão Barroso a procurar-lhe apoios até em antigos países de Leste como a Roménia e a Bulgária.
O exercício do cargo na ONU deixou-o desencantado com os EUA, algo que viria a acentuar-se com o processo político desencadeado pela administração de George W. Bush que culminou na invasão do Iraque em 2003 - a que se opôs frontalmente, mas que o governo integrado pelo CDS de Paulo Portas apoiou abertamente.
Freitas destacou-se nesses anos por aparecer ao lado de Mário Soares e em comícios do Bloco de Esquerda, culminando em 2005 com a sua entrada no governo socialista de José Sócrates, como independente e na pasta dos Negócios Estrangeiros - que deixou no ano seguinte, invocando razões de saúde que não impediram o então primeiro-ministro José Sócrates de lhe dar fortes palmadas nas costas durante a cerimónia de posse do seu sucessor em Belém.
Estar nesse governo valeu-lhe a ostracização da direita, exemplificada pela decisão do CDS em retirar o seu retrato da galeria dos presidentes do partido e enviá-la por correio para a sede do PS.
Nas memórias lançadas em junho passado, com o título Mais 35 Anos de Democracia, Um Percurso Singular, Freitas do Amaral exprimiu alguma amargura: "Apesar de múltiplos serviços prestados ao país durante mais de três décadas, fiquei sozinho. Nunca mais fui convidado, seriamente, para qualquer cargo público ou privado, de 2006 até hoje. Puro 'ostracismo'."
"A direita portuguesa não aceitou. Ela achava que eu passara a ser propriedade sua e só podia fazer o que fosse do seu agrado. A minha liberdade política, que incluía aliar-me com quem quisesse devia ter ficado limitada pela propriedade política que a direita se arrogava sobre mim. Aliás, a direita costuma dar mais importância à propriedade do que à liberdade", escreveu ainda Freitas, que nesse ano de 2005 também se demitira do Partido Popular Europeu (antecipando-se à expulsão por integrar um governo socialista).
Mas o seu próprio distanciamento face ao espaço político onde se integra o partido que fundou e inseriu no regime democrático acentuou-se com as alterações dos últimos anos no sistema político internacional. Acusado de ser fascista nos alvores do regime fundado em 1974, Diogo Freitas do Amaral repudiou abertamente o recrudescimento do que qualificava como fascismo em vários países.
Mesmo a Áustria, que visitava regularmente como melómano e que via como "um país supermoderado e superdemocrático", acabou por o surpreender quando "por menos de 1%" quase elegeu um presidente de extrema-direita, confessou numa entrevista ao DN em 2018. Estudioso dos fascismos europeus entre as duas grandes guerras, Freitas não tinha dúvidas: "É altura, sem excessivo alarmismo, sem excessiva precipitação, de começar a chamar os bois pelos nomes: isto é fascismo. Não lhe chamem populismo, que até pode parecer uma coisa simpática. É extremismo, sim. Extremismo de direita, sim. Logo, é fascismo."
Defensor do voto obrigatório para as eleições legislativas como forma de motivar os jovens para a vida política e combater a abstenção, Freitas do Amaral defendeu a solução governativa da geringonça também contra a opinião generalizada dos partidos da direita e colocando-se outra vez no lado oposto ao de Cavaco Silva.
"A minha elasticidade política vai do CDS ao PS, incluindo todo o PS, mas não vai até ao PCP", explicou na referida entrevista ao DN, na qual frisou que a geringonça era constitucional e acabou por ser "importante para a maturidade" do regime democrático.
A faceta de escritor também foi uma constante na vida de Freitas do Amaral, dominada por obras ligadas ao direito e também ao universo da política.
Contudo, foram os textos escritos como divulgador da história de Portugal que o aproximaram do grande público, desde o grande sucesso da biografia de D. Afonso Henriques à do rei D. Afonso III, passando por uma peça de teatro sobre a figura de Viriato e pelo contributo de D. Manuel I para a construção do estado moderno em Portugal.
Da Lusitânia a Portugal: Dois Mil Anos de História e Em que Momento Se Tornou Portugal Um País Independente são outras duas obras de cariz histórico escritas em tom pedagógico e acessível.
Mas Freitas do Amaral fez também questão de deixar registo público da sua vivência como cidadão, contando "pequenas histórias" da sua vida pessoal em Quinze Meses no Ministério dos Negócios Estrangeiros, durante o governo de maioria absoluta do PS e com que encerrou o seu percurso político no ativo.