1. Esta crise e a crise anterior. Desta vez, dizem, ela representa para a Europa um choque exógeno e desta vez ele é simétrico. Desta vez. A crise de 2007 teve origem na criatividade financeira dos mercados financeiros americanos e nos conhecidos títulos financeiros sub prime. Ela atingiu também todos os países europeus. Uns mais, outros menos, mas todos foram atingidos. Nesta medida, a narrativa não é verdadeira - quer a primeira quer a segunda crise vieram de fora e atingiram todos. Ambas foram exógenas e simétricas.
Na verdade, quando se pretende diferenciar as duas crises, afirmando que desta vez é que veio de fora e que desta vez é que é simétrica, o que estão a fazer é tentar justificar o que foi feito na primeira. No fundo, ainda que de mansinho, o que estão a fazer é, implicitamente, justificar a austeridade anterior e admitir o miserável argumento da culpa puritana - viver acima das possibilidades. Desta vez talvez não, mas na outra, na crise anterior, algum pecado, algum moral hazard, existiria de modo a justificar a punição. Para ser claro, este embuste é otributo que a esquerda europeia aceita pagar para que, desta vez, não se repita a austeridade. Desta forma, ela concede implicitamente que no passado foi diferente e talvez nessa altura se justificasse a austeridade.
2. Na verdade, a austeridade foi um gravíssimo erro político e a história económica torna hoje tudo mais claro. Se compararmos a política económica americana com a europeia, o erro destaca-se facilmente: a política monetária expansionista americana recuperou o emprego e o crescimento muito rapidamente, enquanto a austeridade europeia prolongou a crise, agravou a situação social e gerou sérios problemas para o projeto europeu ao promover a desconfiança entre os países do norte e os do sul, entre os países do centro e os países da periferia. O quantitative easing, instrumento base da opção monetária expansionista, foi adoptado pelos Estados Unidos em 2008. Na Europa foi só foi adoptado em 2015, e sempre com o voto contra da Alemanha.
Eis, portanto, a dimensão do erro - sete anos de atraso, sete anos de equívoco, sete anos de austeridade. Os resultados dessas duas politicas - a expansionista, nos Estados Unidos, e a austeritária, na Europa - estão à vista de todos os que querem aprender com os factos. O primeiro teve sucesso; o segundo foi um fracasso. A cumplicidade da esquerda europeia com este desastre económico deixou as suas marcas - em particular na própria esquerda. Não me parece ser o momento de insistir.
3. Depois da cumplicidade com a austeridade, vem a cumplicidade com o seu branqueamento. A ideia agora é exigir a todos - à esquerda e à direita - o reconhecimento, enfim, de que a austeridade de alguma forma ajudou a resolver a crise. Não, não ajudou. Não foi a austeridade que resolveu a anterior crise - foi o fim da austeridade que acabou com ela. A austeridade não teve nenhum sentido económico naquela crise, como não tem sentido nesta. Para ir um pouco mais longe, a política de austeridade nunca teve fundamento económico, mas ideológico. A crise foi usada, num primeiro momento, para virar de cabeça para baixo a sua própria história. A origem da crise deixou de ser atribuída aos mercados financeiros e aos criativos sub prime, para ser da responsabilidade dos Estados "gastadores". Num segundo momento, ela foi aproveitada para promover as chamadas "reformas estruturais" , isto é, menos proteção no trabalho e menos proteção social. Na verdade, e no conjunto, tratou-se de um ajuste de contas histórico da direita com os avanços sociais - eis a oportunidade de acabar de vez com a conversa do modelo social europeu. O alvo sempre foram as políticas estatais de redistribuição ou de promoção de igualdade de oportunidades. E o que é espantoso é que tudo isso tenha sido feito sem o devido combate por parte da social democracia europeia. Pelo contrario, o que se viu foi um total alinhamento ou pelo menos um envergonhado consentimento. O partido socialista holandês, por exemplo, pouco antes de se estatelar nas eleições legislativas, não hesitou em anunciar no seu programa o fim do estado social e de propor o nascimento da chamada "sociedade participativa". O mesmo fenómeno podemos ver em Portugal nas palavras elogiosas de dirigentes socialistas aos dirigentes governamentais de então que provocaram a crise política que nos obrigou a pedir ajuda externa - o País ficou a dever-lhes alguma coisa. A história é antiga. Sempre houve uma esquerda que nunca resistiu á lisonja da direita.
4. Dez anos depois (estou a contar a partir de 2010, altura da chamada crise das dividas soberanas), descobrimos a Europa enfraquecida com a saída do Reino Unido, os países europeus desconfiados uns dos outros e o papel do projeto europeu no mundo comprometido pelo descrédito em que progressivamente caiu a liderança global americana. Dez anos depois, descobrimos que o centro de gravidade económico mundial se deslocou do ocidente para o oriente e que a China foi o pais vencedor da globalização. Venceu com as regras ocidentais, com as instituições ocidentais, com a liderança ocidental ou, mais propriamente, com a liderança americana, que agora acha que se perdeu, foi porque certamente houve batota. O "excecionalismo americano" precisa de ser melhor que isto. Dez anos depois, descobrimos também um mundo mais desigual e os Estados mais fracos, agora que precisamos deles. Neste quadro, o que aconteceu na Europa - retirando as burlescas encenações de suspense político com cimeiras intermináveis - foi uma decisão da maior importância histórica. A decisão de se endividar em conjunto tem um profundo significado político no projeto europeu e não me parece que tenham exagerado aqueles que o classificaram como "momento Hamilton" - neste momento, a dívida pública é uma bênção pública. Na verdade, tudo poderia ter sido bem pior.
5. Eis, portanto, o meu ponto. As duas crises não são diferentes porque, desta vez, ela é exógena e, desta vez, ela é simétrica. Na verdade, a anterior crise também veio de fora e também atingiu todos ( uns mais do que outros , tal como agora). A grande diferença entre as duas é que esta ultima sucedeu em dez anos à primeira e a resposta agora é diametralmente oposta. Com a primeira aprendemos - eis toda a diferença. Agora, ao contrário da primeira crise, sabemos o que significa a austeridade orçamental no momento em que as empresas e as famílias mais precisam do Estado. Aprendemos. Aprendeu a Europa, aprendeu a Alemanha; aprendeu a direita europeia e aprendeu a esquerda europeia. Mas qual é, afinal, o problema em dizer que aprendemos se nisto nada há que não seja humano e nobre? Bom, o problema é que reconhecer que aprendemos obriga também a reconhecer erros passados. Então fazemos assim : desta vez fazemos diferente não porque aprendemos com a crise anterior, mas porque desta vez ela é exógena e desta vez ela é simétrica. As vezes, sem sequer fazer grande esforço, a política europeia fica profundamente ridícula.