"Português que não tenha emprego e queira trabalhar na construção bem pago tem Andorra"

Entrevista a Jaume Serra, embaixador não residente de Andorra em Portugal. O fim da classificação como paraíso fiscal e o facto de o pequeno país ter as mesmas fronteiras desde a Idade Média são alguns dos temas abordados.
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Há poucos dias Andorra saiu da lista cinzenta de paraísos fiscais da União Europeia. O que é que isso significa?

Significa o culminar de um processo de reformas muito importante, iniciado há bastante tempo, que obrigou a mudar a legislação do ponto de vista das empresas, do ponto de vista da tributação, criando novas tributações, de um lado, e, por outro, a participação nos sistemas de intercâmbio de informação fiscal da OCDE, que resultou neste ano no intercâmbio automático. Numa palavra, trata-se de pôr as normativas andorranas nos standards mundiais de transparência e isto é o culminar de tudo, pois a OCDE e a UE verificaram que todos esses standards se cumprem. É o final de um processo a que Andorra queria chegar.

Do ponto de vista da imagem de Andorra, é positivo deixar de ser uma paraíso fiscal. Do ponto de vista prático, é também o ponto de partida para uma economia mais competitiva?

É o ponto de partida para uma economia mais competitiva que vai jogar com standards de transparência e que vai competir com outros países do mundo e vai tentar passar de um mercado interno a um mercado externo. Para esta mudança é sempre positivo ser aceite como cumpridor das normas, senão os países não nos querem como parceiro. Andorra começou a estabelecer um mecanismo de acordos de dupla tributação com muitos países de maneira a que as empresas estrangeiras se pudessem instalar em Andorra e pudessem ter relações normalizadas com outros países e os impostos que pagassem em Andorra não tivessem de os pagar de novo nos seus países de origem. De certa maneira, atuar como atuam todos os países do mundo nos dias de hoje.

Para os portugueses mais velhos, a ideia que têm de Andorra é uma espécie de duty free gigante. Os mais novos já a veem como um paraíso da neve, um destino turístico. A economia de Andorra vive entre esses dois extremos?

Andorra tem uma economia estritamente de serviços. Andorra não tem uma indústria potente ou um passado industrial potente. Andorra não é um país industrial, é um país de serviços. Os serviços estão vinculados a três grandes setores: o setor do comércio, e o comércio de turismo é o complemento em todo e qualquer destino turístico, as compras são uma parte importante do turismo; evidentemente, o turismo vinculado com a montanha, tanto no verão como no inverno; e depois os serviços financeiros. A economia andorrana é praticamente um terço construção, um terço vinculado a serviços financeiros e um terço vinculado a turismo e comércio. Estas são as três grandes áreas de atuação.

A economia andorrana passou ilesa a crise europeia?

Não, não ninguém passou ileso à crise [risos]. Entrámos em recessão, a primeira recessão desde o início da história moderna de Andorra. Andorra nunca tinha estado em recessão antes, tinha sempre tido crescimentos muito importantes. Entrou em recessão porque é uma economia aberta que depende do turismo, depende de como funcionam os países vizinhos. Andorra vive do turismo que vem de França, de Espanha, de Portugal, da Alemanha, de Inglaterra. Então, se os emissores turísticos não funcionam, o turismo vê-se muito afetado.

Qual é a previsão para 2018?

Estamos já em dois, quase três por cento de crescimento e há equilíbrio orçamental.

A economia andorrana tem atraído ao longo dos anos milhares de portugueses. São neste momento a segunda maior comunidade estrangeira a seguir aos espanhóis. O que é que fazem os portugueses em Andorra?

Fazem de tudo. Estão na economia de serviços. Há uma parte importante na construção, mas na verdade estão em todos os serviços, nos de comércio, na banca, em todas as facetas da economia. Há já uma geração de andorranos que são de origem portuguesa, filhos de portugueses que se estabeleceram em Andorra.

Falamos de uma comunidade bem integrada?

Sim, penso que sim.

Continua a haver portugueses a emigrar para Andorra?

Baixou muitíssimo porque a emigração está sempre muito ligada ao crescimento económico e agora a verdade é que em Portugal as coisas estão a ir muito bem e as pessoas não querem sair de Portugal para ir para Andorra. Neste momento em Andorra todo o setor da construção é o que tem mais oferta de emprego, porque voltou a estar em alta, mas não há gente para trabalhar. Neste momento, para um português que não tenha emprego e queira trabalhar na construção e ser bem pago, Andorra oferece boa qualidade de vida porque a oferta na construção está forte e não há profissionais especializados.

Significa que, apesar de Andorra não fazer parte da UE e portanto não haver livre circulação, no caso dos portugueses é possível emigrar para Andorra?

Sim. Cumpre-se, normalmente, uma das leis da emigração, que é "emigração chama emigração". A emigração portuguesa está concentrada numa zona geográfica de Portugal porque a migração funciona através de um mecanismo em que um emigrante chama outro e no final acaba por ser gente das mesmas aldeias, dos mesmos bairros. É toda a zona do norte, do Minho, sobretudo de Viana de Castelo, Ponte de Lima. As pessoas vão para Andorra porque têm lá familiares, primos, uma rede de proteção.

Os portugueses que emigrem para Andorra têm os mesmos direitos económicos que um andorrano. Quem emigrar e levar os filhos pequenos, como é que se processa?

O sistema educativo andorrano é muito especial. É universal e gratuito para todos e os pais podem escolher entre três sistemas educativos que convivem entre si: o francês, o espanhol e o andorrano. Dentro do espanhol, o sistema tem uma parte católica. Qualquer um deles é de livre escolha, cabe aos pais escolherem para onde querem enviar os seus filhos. Vale o mesmo estudar no liceu francês que no colégio católico.

Uma criança que tenha estudos em Portugal automaticamente vê reconhecido o mesmo nível?

Sim. Há um acordo educativo assinado entre Andorra e Portugal, de maneira a que os estudos portugueses sejam reconhecidos em Andorra e vice-versa, tanto a nível do ensino básico como em formação mais avançada. A formação profissional tem um sistema um bocado mais complexo mas mesmo nesses casos estabelecem-se mecanismos de equivalência.

Para uma criança filha de portugueses que nasce em Andorra, o processo para adquirir nacionalidade andorrana é difícil?

Andorra tem um sistema de mecanismo de nacionalidade em que qualquer pessoa que nasça e viva em Andorra tem direito a ser andorrano. Não tem de ter pais andorranos para ser andorrano.

E já há muitos andorranos de origem portuguesa?

Sim. Uma pessoa que nasce em Andorra e trabalha em Andorra para ter nacionalidade tem de demonstrar que conhece a nossa terra através de uma prova em que se testa se fala catalão, por exemplo. Ou então que prova que fez o ensino em Andorra e nesse caso não é preciso. Andorra é um país muito pequeno e com poucos andorranos e por isso tem alguns mecanismos para tentar manter as suas pessoas. Evidentemente, há andorranos de origem portuguesa.

Crianças ou adultos?

Adultos muitos já. A emigração portuguesa para Andorra começou nos anos 60.

Esses andorranos de origem portuguesa já adquiriram alguma posição de destaque? Na política, por exemplo.

No meu partido há duas ou três pessoas de origem portuguesa. Não me estranharia que nas próximas eleições haja membros do Parlamento de origem portuguesa.

Há políticos portugueses?

Sim, especialmente nas autarquias. Em Andorra já temos políticos portugueses, percebe-se pelo nome [risos].

Fala-se agora também de Portugal voltar a ter serviços consulares em Andorra, depois de ter fechado a embaixada durante a crise. O Estado andorrano não se envolve nessa questão?

Claro, não se pode envolver. Neste caso, é o governo português que tem de tomar a decisão.

Do ponto de vista de Andorra seria importante Portugal voltar a ter uma embaixada?

Portugal já teve embaixada em Andorra, mas Andorra não vai dizer a Portugal que abra de novo a embaixada, é uma decisão de Portugal. Andorra também deixou de ter embaixador residente em Lisboa. Acredito que Portugal e Andorra estão a criar laços políticos cada vez mais fortes. Por exemplo, Andorra foi aceite como membro da CPLP. Andorra tem vontade de que Portugal seja um parceiro importante porque estamos a partilhar a Península Ibérica e Andorra faz parte do grupo de países ibero-americanos, tal como Portugal. Portanto, Portugal é um aliado estratégico de Andorra, seja por tradição cultural, pelas pessoas, pela proximidade geográfica. Não sei se uma embaixada seria necessária mas seguramente algo que assegurasse serviços consulares que permitam que os portugueses tenham acesso oficial mais fácil. Isso sim, penso que o governo português poderia fazê-lo, mas é uma decisão que cabe a Portugal.

Há três países ibéricos e Andorra é um deles. Muitas vezes temos aquela referência de que há dois copríncipes: um é um bispo espanhol, de Urgel, o outro é o presidente da República francesa. Nenhum deles é um verdadeiro príncipe mas são os chefes do Estado de Andorra. Ao mesmo tempo, Andorra tem um chefe de governo. Como é que um país entre a França e a Espanha consegue sobreviver da Idade Média até aos nossos tempos?

Sou da opinião, e acho que muita gente partilha dela, de que Andorra como Estado, como unidade que se projeta no futuro, não se poderia explicar senão pelo facto de ser um coprincipado. Este nasceu na Idade Média numa altura em que não existiam nações mas só senhores feudais. Os senhores feudais em Andorra eram dois: um bispo e um conde que dividiam o território de Andorra e de um acordo entre estes dois senhores nascem as fronteiras e mecanismos através do quais ambos vão governar Andorra de forma partilhada. Os direitos feudais do conde acabam por ir parar ao reino de Navarra, depois ao reino de França e, com a Revolução Francesa, passam a Napoleão e a partir daí à presidência da República. Por seu lado, o bispo mantém, ao longo do tempo, estes direitos feudais. Andorra, na sua Constituição de 1993, aceita que figuras, que eram senhores feudais, acabam por ser o equivalente a príncipes que, digamos, reinam mas não governam.

Há tradição de os copríncipes visitarem Andorra?

Normalmente sim. O bispo mais, porque está mais perto. O presidente da República francês vem sempre, pelo menos, uma vez. De Gaulle, Mitterrand...

Emmanuel Macron?

Ainda não, mas Hollande veio.

Ao mesmo tempo, Andorra reivindica as fronteiras mais antigas da Europa...

Sim, a verdade é que Andorra tem as mesmas fronteiras que tinha no século XIII.

Isso significa que os andorranos, apesar de serem poucos e de terem uma grande comunidade imigrante a viver no seu país, têm um forte sentimento de identidade nacional?

Acho que sim, porque no fim das coisas os andorranos têm orgulho de terem sido capazes de superar a história sem terem sido devorados por ela. Preocupamo-nos com a globalização, com a internet, com a perda de identidade, mas quando olhamos para a história: Revolução Francesa, I Guerra Mundial, Guerra Civil em Espanha, II Guerra Mundial... Bom, agora até parece pouca coisa, mas conseguiu-se manter os vales protegidos e manter a instituição de Andorra, e os andorranos têm muito orgulho nesses feitos. Ainda mais, ser um país "adotado " pelo ONU, ser um ator no direito internacional, agora ser capaz de ser reconhecido como ator cumpridor, que cumpre as normas, e ser aceite na comunidade internacional é um orgulho.

O facto de Andorra não ser parte da UE, tal como não é o Mónaco, tem muito que ver com a dimensão do país e a dificuldade de se integrar um país com tão pouca população?

Sim. Por um lado, é a própria vontade de Andorra de se manter afastada para não ser comida [risos] por uma dimensão europeia tão grande. Temos consciência de que a nossa dimensão nos fragiliza perante os nossos vizinhos. É uma integração complexa. Por outro lado, os parceiros europeus também não sabem como integrar um país tão pequeno dentro do organograma europeu. A UE tem mecanismos de funcionamento rotativos, com presidências rotativas em que cada um dos países tem de suportar esta estrutura. Ora, encaixar nesta estrutura um país de 75 mil pessoas é complicado.

Andorra é seis a sete vezes menos populosa do que Luxemburgo ou Malta.

E por isso neste momento Andorra está num processo de acordo de associação, com Mónaco e San Marino para estabelecer mecanismos de associação com a UE que permitam que a relação seja mais honesta. Andorra tem um acordo comercial com a UE mas não há acordos noutros sentidos. Não estão ainda resolvidos alguns dos princípios básicos da UE: circulação de pessoas, circulação de capital e livre estabelecimento comercial.

Mas em relação aos portugueses estão resolvidos?

Sim, porque temos acordo com França, Espanha e Portugal.

Para um cidadão português, Andorra funciona como um outro país da UE em traços gerais?

Tanto, tanto não, mas não há dificuldades para um português se fixar em Andorra. A única dificuldade é que Portugal vê ainda Andorra como um paraíso fiscal e acontece que há uma série de inconvenientes em Portugal de ser proveniente de um paraíso fiscal.

Esta decisão agora recente vai mudar isso?

Esta decisão vai resolver este problema daqui em diante. Para que as relações entre Portugal e Andorra sejam mais intensas é preciso que este mecanismo de não dupla tributação funcione, senão os portugueses deixam de investir em Andorra e os andorranos não vão investir em Portugal.

Neste momento ainda existe...

Hoje Andorra ainda está na lista de paraísos fiscais mas vai mudar no próximo ano porque Portugal tem uma lista enorme de paraísos fiscais e Andorra objetivamente já não é um paraíso fiscal.

Andorra é um país de língua catalã e neste momento Catalunha e Espanha enfrentam-se por causa das tendências separatistas de quem governa em Barcelona. Qual é a posição de Andorra nesta situação?

A posição de Andorra é que Andorra tem excelentes relações com os seus vizinhos próximos, como é o caso da Catalunha. Mas Andorra contempla este problema como um problema de um país terceiro que é Espanha, e portanto é assunto no qual não se pode meter, não pode fazer parte da nossa agenda política. Andorra mantém relações com Espanha, e não pode ser de outra maneira, e são relações intensas e de amizade desde sempre e a prova é que Andorra vai receber a próxima cimeira de chefes de Estado ibero-americanos em 2020, portanto Andorra está perfeitamente integrada nessa comunidade.

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