"A intervenção da Rússia na República Centro-Africana é oportunista"
Hermínio Maio será o único dos militares portugueses a cumprir uma comissão de ano e meio no terreno, à frente de um contingente de 176 soldados de 11 países europeus na República Centro-Africana (RCA). A sua missão é apoiar as autoridades de Bangui na reforma do setor da defesa e das Forças Armadas Centro-Africanas (FACA), num país com o tamanho da Península Ibérica e menos de cinco milhões de habitantes. Na base do conflito que desde 2013 provocou 700 mil deslocados e 570 mil refugiados, colocando 2,5 milhões de pessoas a precisarem de ajuda humanitária, está a luta pelo poder e por recursos naturais como diamantes, ouro e gado.
Acaba de receber a visita do novo ministro da Defesa ao fim de quase um ano à frente da missão militar da UE na RCA (EUTM/RCA, sigla em inglês). Que balanço faz da missão?
É verdade, quase um ano. A visita do ministro da Defesa, do Chefe do Estado-Maior General e do Chefe do Estado-Maior do Exército é sempre um fator de motivação importante, além de lhes permitir constatar a realidade, do ponto de vista da segurança e da missão. O balanço é positivo, apesar das dificuldades, das exigências do ambiente de segurança e ao nível sanitário, do clima. Esse balanço tem várias vertentes. Primeiro, a gestão interna da missão: às vezes a situação é tão complexa e exigente que esquecemos que é uma missão multinacional com 11 nações. Tem sido muito gratificante perceber que sendo todos militares profissionais, com procedimentos e formação de base, nos permite ter uma relação muito fácil e obter resultados no terreno. O segundo aspeto é a relação com as entidades no terreno, a começar pela MINUSCA [força de capacetes azuis da ONU]: tem um mandato específico para coordenar todas as ações no âmbito da reforma do setor de segurança, nas quais nos integramos para a reforma do setor da Defesa. Muito positivo.
O que é que essa reforma tem envolvido?
Uma das tarefas muito importantes foi fazer toda a reorganização dos documentos estruturantes da Defesa e das FACA. O nosso pilar de conselho estratégico estruturou aquilo que é o futuro das FACA, desde o Plano Nacional de Defesa até aos decretos, que começam a ser aprovados para a constituição das unidades, das zonas de defesa e dos seus estados-maiores. O último documento importante que terminámos e vai estar em discussão na próxima semana é a Lei de Programação Militar para os próximos cinco anos. Por último, avançámos também num domínio que não era habitual e tem a ver com a formação destinada ao batalhão de engenharia das FACA. Já desenvolvemos uma ação de desmontagem e montagem de pontes metálicas. Desmontámos uma aqui em Bangui, que já não era necessária, e fomos montá-la em Zinga, no sudoeste do país, que veio permitir o que era impossível desde há anos: a circulação entre a RCA e a República Democrática do Congo [RDC] e, consequentemente, com o Congo Brazzaville. Vamos prosseguir com uma equipa para formar a engenharia militar centro-africana no âmbito das estruturas verticais e das estradas. Exige tempo e financiamento, que estamos a tentar obter. Também no domínio da educação, extremamente importante, o objetivo do primeiro mandato de dois anos era formar 25% dos oficiais e 25% dos sargentos, o que foi atingido e largamente ultrapassado.
Esse mandato da UE foi agora alargado...
Coube-nos a nós apoiar todo o processo de renovação do mandato. Houve um trabalho intenso do quartel-general para apoiar os trabalhos desenvolvidos em Bruxelas, donde saiu um novo plano de missão onde tenho de assinalar dois aspetos: a extensão da área de missão, que era só em Bangui e passa a ser também em Boar; o outro tem a ver com a criação de um quarto pilar da missão, que espero que seja implementado no início do ano que vem, a que foi dado o nome de pilar da interoperabilidade. Vamos apoiar, em termos de aconselhamento, sobretudo o Ministério do Interior e da Segurança Pública, a Gendarmerie e a Polícia Nacional. Esta revisão do mandato e o novo plano de missão é muito positivo e exigiu muito da missão. Depois há os resultados do que era o nosso objetivo em termos de treino: já terminámos o treino do batalhão de infantaria territorial nº 2 e do batalhão anfíbio. Mas não avançámos tanto quanto desejaríamos no que chamamos o transfer da educação e do treino para as FACA. Mas isto é progressivo e vai levar anos.
Esse quarto pilar junta Defesa e Segurança, o que a UE nunca fez. Porquê agora?
O quarto pilar nasce a pedido das autoridades locais. A reforma da Defesa avançou mas no domínio das Forças de Segurança ficou mais atrasada. Havia necessidade de equilibrar isso e daí nasceu o quarto pilar. Mas provavelmente será uma medida transitória, porque há a possibilidade da UE criar uma missão civil para apoiar no domínio das forças de segurança, justiça e assuntos internos. Como era necessário reagir rapidamente, propus uma fase transitória - porque temos a estrutura implantada e conhecemos o terreno - para que pudéssemos fazer esse trabalho inserido na EUTM. Não é comum na UE e criou mesmo alguma discussão interna, porque há aspetos que têm a ver com a cadeia de comando, o financiamento, com uma forma de reportar. Este é o primeiro caso de uma missão militar com um pilar dedicado às forças de segurança interna. Vamos ver como evolui e como é que os poderes centro-africanos respondem. Este pilar vai ter 15 especialistas, vamos avaliar e depois a UE decidirá.
Esse modelo insere-se na evolução que há em matéria de Segurança e Defesa europeias?
Esta missão é um contributo importantíssimo para o que tem vindo a desenvolver-se nesse âmbito na UE. Temos provado, entre membros da UE e parceiros como a Bósnia, a Sérvia e a Geórgia, que somos capazes de trabalhar em conjunto. É certo que é uma missão de conselho, educação e treino, mas temos provado que conseguimos trabalhar em conjunto e fazer avançar a construção europeia no domínio da Segurança e Defesa. Isso é algo que deve ser reconhecido no nosso país e também na UE.
Vão mudar de quartel-general. Isso deve-se ao agravamento das condições de segurança?
Não é apenas a questão da segurança. Nós ocupamos uma pequena parte da UCATEX [ou Campo Moana], que é uma antiga fábrica têxtil onde, numa situação de urgência, foi instalado o campo militar da MINUSCA. Há muitas restrições de espaço e a missão vai ter de crescer, com as responsabilidades do quarto pilar. Também não temos as condições de vida necessárias e, do ponto de vista sanitário, há uma série de limitações. As questões de segurança sempre estiveram presentes e agora temos a oportunidade de construir um novo compound em Campo M'Poko, onde está a nossa força de reação rápida [ao serviço da ONU], forças francesas e normalmente um contingente em trânsito da MINUSCA. Vai ser construído com padrões europeus, do ponto de vista do espaço, com menores limitações de utilização porque tem água própria e um sistema de esgotos em que não ficamos dependentes de terceiros para evacuar os esgotos. Depois é um espaço aberto, que permite a qualquer tropa fazer desporto ou manter a prontidão operacional, a que se junta a questão da segurança, obviamente.
O general vai continuar mais seis meses à frente dessa missão da UE. Porquê essa prorrogação?
É o reconhecimento de que a liderança da missão por parte de Portugal é positiva. Substituímos um contingente do Eurocorpo [força composta por militares de França, Alemanha, Bélgica, Espanha e Luxemburgo] ... é necessário haver uma capacidade de trabalho em comum [com as autoridades da RCA e atores internacionais], procedimentos, conhecimento, confiança mútua para gerir uma missão deste tipo e a EUTM/RCA, nos primeiros três semestres, teve um comandante francês, um belga e um espanhol. Portugal assumiu a missão por um ano e há vantagens nisso, porque o relacionamento com outras entidades vai-se desenvolvendo, é preciso tempo e estar um ano é sempre melhor do que seis meses. Depois há outros fatores, pois a França solicitou a Portugal só iniciar o seu mandato no segundo semestre de 2019. É prestigiante... somos 45 militares, formamos o contingente mais significativo e vamos continuar assim no próximo semestre. A minha continuidade como comandante é prestigiante, muito me honra e vou continuar a fazer o meu melhor.
Quantos portugueses vão prolongar a missão até julho?
Do núcleo que veio comigo para cumprir um ano só eu continuo. Mas há um oficial já com cerca de seis meses que continuará até julho. Ano e meio só eu.
Esta missão de formação militar da UE existe há dois anos e meio. Que resultados concretos podem apresentar?
A missão tem três pilares: um primeiro de aconselhamento estratégico, um segundo no âmbito da educação e um terceiro no do treino. O mais importante tem a ver com o facto de as FACA terem mais de 1000 militares projetados no terreno. No total, já formámos mais de 3400 militares e, destes, mais de 100 instrutores porque o objetivo a prazo é transferir o treino e a formação para os centro-africanos. Praticamente todas as forças projetadas no terreno foram formadas pela EUTM/RCA, com padrões europeus, que procuramos transferir para o treino local. Outro objetivo é que as FACA e o Ministério da Defesa levantem a Escola de Oficiais e a Escola de Sargentos.
Formaram também o batalhão anfíbio, além dos "dois a três" de âmbito territorial que tinham anunciado...
Não é uma surpresa. Demoramos cerca de seis meses para formar integralmente um batalhão de infantaria territorial com cerca de 650 militares. Fazemos a reciclagem dos militares, desde o treino físico à instrução individual do combatente e em equipa, à secção, ao pelotão, companhia e, ao nível de batalhão, fazemos um exercício final em que validamos o funcionamento do estado-maior do batalhão. Pelo meio, fazemos ações de formação importantes: no âmbito da liderança para comandantes de companhia, da gestão de recursos humanos e dos materiais... tudo leva o seu tempo e, sobretudo, formámos militares que já eram das FACA. As FACA não fizeram qualquer recrutamento nos últimos seis anos e estamos a reciclá-los. É preciso dar tempo para que se assimilem novos referenciais sobre o que é ser militar, por exemplo no âmbito do direito internacional humanitário ou do seu comportamento ético. No caso do batalhão anfíbio, esta é uma unidade que já vinha recebendo alguma formação no âmbito bilateral com a França. Fizemos um processo de avaliação do estado de preparação daquele batalhão e completámos a sua formação em três meses. Tem um efetivo de 330 militares e essa é a explicação para ter sido mais rápido.
Há muitos rios na RCA?
Não. A fronteira da RCA com a RDC é o rio Ubangui. O batalhão anfíbio é uma unidade com características muito específicas, cuja missão é sobretudo controlar a fronteira sul. Claro que está preparada para outro tipo de ações.
A Rússia tem vindo a ter um papel crescente de apoio ao presidente da República e às FACA. Há alguma articulação da EUTM/RCA com os russos, cuja ação parece enquadrar-se no que a ministra da Defesa francesa diz serem "iniciativas oportunistas e muitas vezes interessadas" que prejudicam a situação de segurança do país?
Compreendo a observação e reconheço que há aqui uma iniciativa oportunista, que nasce com a doação de armamento à RCA. Atrás vem uma ação oportunista que hoje se estende da vertente política até ao apoio no terreno, com contratados de empresas de segurança a acompanhar as FACA no terreno. Isto tem criado alguma polémica e alguma discussão. Diria que a RCA passou de um estado de ignorância geopolítica para alguma competição. A intervenção dos russos vem agitar este processo a vários níveis na RCA e há de facto algum oportunismo, até porque há alguma exploração do trabalho feito no terreno pela EUTM. Os militares são treinados por nós para receberem armamento, a seguir são treinados por estes contratados russos e só a seguir recebem o armamento doado pela Rússia. Quanto à articulação, é um assunto delicado. Existe, mas ao nível dos representantes legítimos das instituições. A EUTM é uma missão militar de treino, constituída por 11 países, militares profissionais sob um mandato da ONU e do Conselho [da União]. Está no terreno a pedido dos centro-africanos. Mas não há articulação quando tratamos de empresas com contratados, com as quais não me posso relacionar porque não sei quem está do lado de lá. Não sabemos qual é a formação deles, quais são os seus objetivos, os seus referenciais éticos e deontológicos. Tudo o que faço é com orientação de Bruxelas.
Especificamente sobre as FACA, o objetivo é torná-las "modernas, eficazes, inclusivas e democraticamente responsáveis". Em que ponto estão nesses indicadores?
Isto é um trabalho de longo prazo. Passámos dois anos, temos mandato para mais dois anos. Estamos a formá-los com padrões modernos, europeus. Obviamente temos de ajustar a formação à realidade local. São bons militares, passaram períodos muito complicados. Há questões de comando e de confiança que é necessário restabelecer. Do ponto de vista da eficácia, depende também de outros fatores: equipamento, as viaturas, capacidade logística, armamento. E nesse âmbito há muitas lacunas. Há dificuldades também no âmbito do comando e controlo, o país é vasto.... em termos territoriais, é idêntico à Península Ibérica, Portugal e Espanha. O objetivo dos centro-africanos é terem 9800 militares e, por aqui, podemos ver o desafio quando olhamos para um modo de operação através de forças projetadas. Do ponto de vista da inclusividade, temos trabalhado as FACA naquilo que já eram. O único desenvolvimento que tivemos tem a ver com um projeto-piloto de desarmamento, desmobilização e reintegração [DDR]. Formámos 232 ex-combatentes dos grupos armados, que estão integrados nas FACA. Isto é algo para prosseguir e vai evoluir com o processo de recrutamento em curso, de 1023 novos militares. Há um critério, que estabelece um conjunto de quotas para todas as prefeituras da RCA, de modo a que essa inclusividade aconteça e tenhamos umas Forças Armadas representativas de toda a população, republicanas. É um trabalho de longo prazo. Basta pensar no que se faz no Afeganistão ou no Iraque para termos uma ideia do tempo que será necessário para atingir os objetivos... é preciso muita ajuda internacional para restabelecer umas Forças Armadas capazes, modernas, eficazes, inclusivas, representativas, responsáveis.
Que reações tem tido a EUTM dos operacionais da ONU que trabalham no terreno com os militares da RCA formados pela UE?
Esta situação é muito importante. Todos ganham. A MINUSCA beneficia com a presença das FACA e estas, por terem operações conjuntas com a MINUSCA, beneficiam de um acompanhamento operacional (tudo o que é o planeamento para as operações, as patrulhas conjuntas, procedimentos), têm referenciais acompanhando as tropas da MINUSCA e beneficiam também de algum apoio logístico. Por outro lado, as tropas da MINUSCA - e algumas delas nem falam francês quanto mais a língua nacional, que é o Sango - beneficiam, com as FACA, de um contacto mais próximo com as populações e também das informações. Ambos ganham e, no final, os maiores beneficiários são as populações. E há dois exemplos com excelentes resultados: Paoua, no norte do país, onde houve problemas sérios no início do ano e agora está estabilizada e as FACA muito contribuíram para isso; a outra é no sul, em Bangassou, onde aconteceu o mesmo. Com a presença das FACA houve estabilização da situação. O grande problema tem a ver com as questões logísticas, muito rudimentares. Há distâncias enormes, com vias de comunicação muito difíceis. A RCA tem 400 quilómetros de estradas rudimentarmente alcatroadas e precisam de melhoria... com as chuvas, não há estradas que resistam. Mas o modelo de guarnição [regiões militares] vai permitir projeções de menor distância. Isto é muito exigente, pois as tropas são projetadas no terreno durante quatro, cinco meses. Mas as respostas são muito positivas e a MINUSCA pretende mais missões deste tipo.
As divisões e a violência entre as milícias Selekas (muçulmanos) e Anti-Balakas (cristãos) têm alguma expressão no seio das FACA?
Há 14 grupos armados reconhecidos e 12 integraram o projeto-piloto DDR. Até hoje não há qualquer referência de problemas internos decorrentes da integração desses 232 rebeldes. De futuro, com o processo de recrutamento e o consolidar das FACA, haverá ainda melhores condições para que conflitos dessa natureza não aconteçam. Aguardamos com expectativa o Grande DDR, que inclui o repatriamento [DDRR]. Dirige-se a todos os grupos armados e faz parte do processo de paz e reconciliação. O presidente vai avançar com a iniciativa e optou por lançar uma cerimónia nesta segunda-feira, em Paoua, com os que estavam prontos. O Grande DDR destina-se à integração de ex-combatentes nas FACA e nos outros corpos em uniforme, a polícia, a genmdarmerie, os guardas de fronteira, os guardas florestais e a integração no tecido social. O repatriamento tem a ver com os muitos rebeldes que não são centro-africanos. As fronteiras são permeáveis, há mercenários de países vizinhos e esses serão repatriados. Isso é complexo, os países limítrofes também têm problemas e não há aqui uma abordagem consensual. As influências externas são muito grandes e isto não tem solução militar.
Última pergunta, general: a comitiva do ministro deixou aí bacalhau para o Natal?
Já tínhamos tratado disso, não foi necessário. Temos um excelente apoio da retaguarda, Estamos todos bem de saúde, não tivemos nenhum problema no nosso contingente. Somos militares bem preparados e, sendo o núcleo essencial da missão, temos de ser exemplares. Somos o referencial para os outros contingentes. Este é o segundo contingente e vem aí um terceiro. Tenho tido grande facilidade em lidar com os oficiais, sargentos e praças de diferentes especialidades, de diferentes unidades e dos três ramos... de tal maneira que não os distingo: vestimos todos o mesmo uniforme e não há aqui qualquer diferença, há um profissionalismo e dedicação enormes.
Passa aí esta época natalícia ou virá a Portugal?
Estava previsto regressar dia 11 de janeiro, mas como isso se alterou irei a Portugal, estar com a família e recarregar baterias. Tenho toda a confiança na estrutura de comando, tudo gente muito capaz de tomar conta da missão e vou estar tranquilo. Gostava muito de estar aqui, era o que estava previsto, mas eles compreendem [risos].