Pescadores celebram regresso ao mar. "Esta é a melhor sardinha do mundo!"
"Quer ver como é que se vê se ela é fresca? E que é boa?" António Lé pega numa sardinha e faz dela um abanico, levando-a a contorcer-se. Se dúvidas houvesse, atirava-a ao chão, e aí poderia ver-se o peixe quase a saltar, ainda que morto. Foi nesse clima quase festivo e de muito entusiasmo que os pescadores da Figueira da Foz voltaram ao mar, esta manhã, e de lá regressaram com os barcos cheios de sardinha. "Finalmente!", ao fim de oito meses parados - em função das restrições impostas pelas autoridades - os pescadores regressaram à faina, embora com restrições muito claras: 141 cabazes por dia, num total de 10.799 toneladas até final do verão, repartidas entre Portugal e Espanha.
"Face aos dados do recurso que temos, vamos começar a pesca com 10.799 toneladas entre Portugal e Espanha, o que corresponde a 7.181 toneladas (66,5%) para a frota portuguesa, das quais 5.000 até ao final de julho" e as restantes 2.181 toneladas a partir de agosto, tal como disse o secretário de Estado das Pescas, José Apolinário, em declarações à Agência Lusa.
Para os pescadores, continua a ser pouco. É esse o sentimento na Centro Litoral OP, uma cooperativa com cerca de 50 associados, que congrega "tudo quanto é arma dores e embarcações de pesca entre Aveiro e Matosinhos", a que se juntam alguns associados em Sesimbra e na Afurada. O presidente, António Lé, 47 anos, seguiu as pisadas do pai. "Ele toda a vida foi pescador. Entretanto, ainda eu era miúdo comprámos a primeira embarcação - O Atleta". Foi assim que enveredou pela carreira de armador, nos últimos anos completada com a de dirigente associativo.
António Lé não espera pela pergunta, e atira logo ali a resposta: "se me pergunta qual é o sentimento que me assiste hoje, posso dizer que é dos dias de maior alegria nos últimos anos. Basta olhar para ali e ver isso". Ali - quer dizer no cais do Porto de Pesca da Figueira da Foz, junto à praia do Cabedelo, onde nesta manhã de segunda-feira, 3 de junho, vão chegando um a um os sete barcos que largaram para o mar ainda de madrugada. "Andamos a dizer isto há tanto tempo e hoje basta olhar para aqui e comprovar: temos cada vez mais sardinha no mar".
Os últimos quatro anos não têm sido fáceis para os homens do mar. "Andamos a fazer esforços do tamanho do mundo, foram sacrifícios incalculáveis, e hoje temos muita, muita sardinha", diz ao DN António Lé. "O tempo que nos obrigam a estar parados é uma eternidade. Nós não queremos ser um peso para a sociedade, queremos é contribuir para o desenvolvimento deste país. Mas para isso têm que nos deixar trabalhar, porque é por aí que nos podemos afirmar: pela qualidade, pela tradição, pela sardinha que é o melhor peixe do mundo", conclui.
Enquanto vai acompanhando a chegada dos barcos, o presidente da Centro Litoral discorre sobre os estudos que têm levado à proibição da pesca da sardinha por um período tão prolongado. Lembra que são os pescadores que têm "a força do trabalho e apresentamos as provas", por comparação à ciência - "que tem a sua teoria. Não é descabida, nós queremos colaborar com a ciência, mas é preciso perceber que a natureza é um fenómeno inexplicável. E nós sabemos o que estamos a dizer sobre a sardinha", enfatiza Lé, que desafia - tal como outras organizações do país, nos últimos dois anos - as entidades responsáveis "a virem connosco para o mar". O líder dos armadores da região centro e litoral sublinha que os estudos andam a ser feitos "por um barco completamente obsoleto, em condições deploráveis".
A sardinha é uma espécie de curta duração de vida. Os pescadores consideram que "não faz sentido nenhum as autoridades fazerem recomendações para 2019/20 baseados em dados de 2017". Pois se ela dura pouco tempo, "os estudos têm que ser feitos o mais rapidamente possível, de modo a serem fiáveis e para recomendações no próprio ano. Ou então estamos a fazer recomendações sobre uma situação que já não existe, e isso é adulterar a verdade e manipular alguns interesses", entende esta organização do setor das pescas.
Desde o norte de Mira ao sul da Figueira da Foz há uma zona de pesca interdita. Está consagrado um berçário de sardinha, uma espécie de "maternidade" que funciona como o sustento da reposição do stock. "Fomos nós que pedimos para que o fizessem", sublinha António Lé, à laia de quem recorda que "os pescadores são os primeiros a não querer matar a galinha dos ovos de ouro".
Pelo Porto de Pesca da Figueira da Foz andam os habituais compradores, que vão espreitando os barcos antes de entrarem no leilão. Porque além da sardinha, o mar continua berço da tão apreciada petinga, que não interessa a todos. Mas também do safio, entre outras espécies. Ainda assim, hoje é a sardinha quem reina. Na venda, boa parte dos 200 funcionários que habitam aquelas instalações da Docapesca arregaçou hoje as mangas com outro entusiasmo. É o caso de Graciosa Liques, 69 anos, os últimos 20 dedicados a lavar e encestar muita sardinha, e uma vida inteira dedicada ao pescado. Vem das praia da Leirosa, a poucos km de distância, noutro tempo um bastião da arte xávega. "Como é que não havíamos de estar contentes? Esta é a melhor sardinha do mundo!", assegura, coadjuvada pela colega Natália Pata. Na azáfama desta manhã há sobretudo homens, alguns muito novos e outros já velhos, pele curtida pelo sol, botas de borracha à prova da água, dos restos de peixe (que as gaivotas ser encarregam de surripiar) e das horas de trabalho.
À medida que a manhã avança chegam os últimos barcos: o Mónica Luís, o Beira-Azul, o Salvador, ou ainda a Princesa de Peniche, adotada pelo armador Tiago Cardoso, nascido e criado na Figueira. É ele o último a atracar, satisfeito com "tanta sardinha que se vê no mar". Trabalham ali 16 pescadores, todos homens vingados. Tiago, o jovem patrão, assiste já em terra a uma espécie de encerramento deste primeiro dia do resto da vida da pesca da sardinha. Mais tarde, alguns dos armadores hão de juntar-se no Pé na Areia, um restaurante na Praia de Buarcos, e aferir se as aparências não iludem. Convidaram o diretor do Turismo do Centro, o presidente da Câmara da Figueira da Foz e muitos outros representantes de entidades regionais. Em clima de festa, concluem que, mais uma vez, o mar não engana: "é a melhor sardinha do mundo!"