Uma manifestação. Muitos tiros. Vários detidos. E duas versões
"Uma manifestação a pedir justiça e fim do racismo devia ser incentivada e acarinhada pelas autoridades, porque são valores centrais da nossa democracia e da nossa Constituição. Não se entende o porquê de uma manifestação assim ser reprimida com esta brutalidade."
Uma manifestação contra a brutalidade policial que acaba dispersa com brutalidade policial. A ironia não passa despercebida a João Salaviza, 34 anos, realizador galardoado em 2009 e 2012 nos festivais de cinema de Cannes e Berlim. Estava a caminho de uma reunião de trabalho, ao fim da tarde desta segunda-feira, quando, na Avenida da Liberdade, se deparou com um ajuntamento de pessoas a protestar contra o racismo e a violência policial. "Não sabia de nada mas fiquei feliz por ver uma reação tão rápida à violência na Jamaica [refere a atuação, domingo, da PSP no bairro com aquele nome no Seixal, que foi divulgada em vídeo]. Era uma manifestação com muita gente muito jovem, uns 95% eram jovens, e muitas mulheres. Até havia uma com um carrinho de bebé."
Seguiu com o grupo de algumas centenas de pessoas até ao Marquês de Pombal, onde ocuparam o centro, fora da faixa de rodagem, e gritaram palavras de ordem "durante 20 ou 30 minutos". Depois, conta, começaram a descer a Avenida. "Havia pessoas que desciam pelo passeio e alguns pela estrada. Havia filas de trânsito e alguns carros a buzinar a apoiar a manif, os manifestantes a agradecer." Tudo parecia calmo. "Mas subitamente começam-se a ouvir balas de borracha e vê-se um cordão de polícia a disparar."
A situação ficou tão descontrolada que, conta, "perto do São Jorge [o cinema] separei-me, fiquei com medo, começou uma violência indiscriminada. Filmei um rapaz a ser detido que gritava "eu não fiz nada", com seis ou sete polícias em cima dele." Respira fundo. "Não assisti a nada que justificasse a carga e o disparar de balas de borracha. Balas de borracha no meio da Avenida da Liberdade, quando há pessoas a manifestar-se, a voltar do trabalho e a ir buscar filhos à escola. Sou uma dessas pessoas que está a ir a um encontro profissional e acaba a correr a fugir da polícia."
Geovani não conhece João. Tem 24 anos, é estudante universitário e morador na linha de Sintra. Ao contrário do realizador, Geovani, negro nascido em Portugal numa família de origem guineense, sabia da manifestação e veio a Lisboa para participar.
Esteve no Terreiro do Paço, para onde tinha sido convocado o encontro, às 15 horas, através das redes sociais e do Whatsapp. "Dormi todo o dia no domingo, porque tinha saído, e quando acordei comecei a ver aqueles vídeos do que aconteceu no bairro do Jamaica, aquela violência. E vi a convocatória, que não sei quem fez, a falar do encontro na segunda. Resolvi ir."
Chegou sozinho e encontrou cerca de uma centena de pessoas que não sabiam o que fazer a seguir. "Estávamos ali levados pela indignação. Começámos a discutir o que íamos fazer. Houve gente que partilhou as experiências, houve gente que dançou. Estivemos em frente ao ministério da Administração Interna e já lá estava polícia. Começou logo aí a provocação." Como assim? "Riam, mexiam no cassetete, punham a mão na arma. Uma miúda foi lá falar com eles e um dos que lá estava, que devia ser um chefe, disse-lhe que a manif era ilegal, que não tínhamos autorização."
Ainda assim, não desmobilizaram. "Estávamos ali e queríamos chamar a atenção. Decidimos ir ao Marquês. Foi o objetivo que estabelecemos."
Quem é que estava na manifestação? Sobretudo negros? "Havia gente de muitos bairros e gente que não é dos bairros. Havia muitos negros mas também pessoas brancas. A maior parte jovens. Conforme íamos andando até havia pessoas paradas na paragem de autocarro que subiam connosco."
É aqui que o relato de Geovani se encontra com o de João. "A confusão começa na segunda parte quando vínhamos a descer a avenida. Quando estávamos no Marquês percebemos que a polícia começou a ficar muito musculada, e o pessoal estava a ficar muito nervoso e decidimos descer. A polícia disse para irmos pelo passeio para não haver problemas, só que as pessoas começaram a descer pela estrada e de repente começam gritos e tiros."
Voltando atrás: isso aconteceu como? "Foram os polícias que começaram. Eles dizem que o pessoal reagiu com pedras - eu sei que no nosso grupo ninguém reagiu com pedras. É mentira o que a polícia diz. Ao descermos o plano era ir para a estacão do Rossio. Toda a gente dizia "nada de violência, ninguém faz nada". Eu vinha num grupo que estava a descer tranquilamente e de repente cortaram o nosso grupo ao meio. Foi aí que percebemos que havia polícias à paisana. Houve um que tentou tirar-me a mochila e eu disse-lhe que só lá tinha dois livros: a Constituição e um livro da Angela Davis [ativista americana negra]. Ainda me deu com o cassetete na perna."
Mas ninguém mandou pedras? "Na descida, depois da carga policial, é que vi pessoas a mandar coisas. As pessoas não ficaram paradas e começaram a mandar pedras e garrafas."
Em declarações aos media, a PSP afirma ter disparado em reação a pedradas e apenas "para o ar", para "dispersar". Mas há pelo menos um relato de um jovem que diz ter sido atingido com uma bala de borracha no rosto. Quanto a detidos, a PSP admitiu até agora a existência de quatro.
Geovani conhece um deles. Foi à esquadra do Martim Moniz perguntar se ele lá está. Disseram-lhe que não sabem nada. "Estou com o melhor amigo dele e não vamos desistir de perceber para onde o levaram."