Todos os natais, Luísa oferece um almoço ao bairro que lhe salvou a vida

Foi prostituta no Intendente até um cancro lhe roubar um mama - e a possibilidade de ganhar a vida. Quando o seu mundo entrou em queda livre, os vizinhos seguraram-na. Há sete anos que Luísa agradece ao bairro cozinhando uma feijoada pelo Natal.
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Pouco passa da uma da tarde e uma multidão de gente começa a organizar-se em fila no Largo do Intendente, em Lisboa. Encaminham-se todos para uma mesa comprida sobre a qual repousam quatro panelões fumegantes - três de feijoada, um de arroz branco. E atrás deles está uma mulher baixinha, de pele negra, segurando uma concha em cada mão. "Estamos prontos? Vamos lá."

Este ano vieram mais de 400 pessoas ao almoço da Luísa. É o sétimo natal consecutivo que a mulher cozinha uma feijoada para os vizinhos do bairro - e este domingo parece ter vindo mais gente do que nunca. Algumas pessoas trouxeram bebidas, outras sobremesas. "É como se os convidasse para irem lá a casa. Só que, como não cabem todos, faz-se a festa aqui na rua."

O almoço que Luísa prepara não é só uma refeição, é também a sua carta de gratidão ao bairro que lhe salvou a vida. "Foram estas pessoas que me deram a mão quando eu achei que já não tinha soluções. Se não fossem eles, ou estava na rua ou tinha morrido."

Não gosta de funfuns nem gaitinhas, conta a sua história sem paninhos quentes. "Nunca digo que fui prostituta ou trabalhadora sexual. Fui puta mesmo. É a minha vida, não tenho vergonha dela. Fiz o que precisava de fazer para alimentar o meu filho."

Luísa não foi sempre Luísa, até aos 30 anos chamava-se Luzia Martins. Nasceu em Luanda, aos sete anos os pais meteram-na no barco para Lisboa - vinha servir para casa dos padrinhos. "Eu gostava muito de cozinhar e não gostava nada da escola. Então nunca estudei, mas comecei a tratar da comida. E estava tudo bem."

Aos 30 anos engravidou, mas o pai da criança não assumiu o filho. "O meu padrinho expulsou-me de casa quando o bebé tinha seis meses. E não tinha por onde me virar." Nunca esquecerá a primeira vez que alugou o corpo: "Fechei os olhos com muita força e só esperava que ele não me batesse ou fugisse sem pagar. Acontecia muito"

Esteve mais de duas décadas na rua. De dia atacava no Intendente, à noite no Cais do Sodré. "Tinha um quarto na rua do Benformoso mas esse era só para mim e para o meu filho. Se arranjasse homem, levava-o a uma pensão. Pagava-se à hora, não era caro."

O álcool ajudava a anestesiar os dramas, em drogas nunca se meteu. "Quando és puta nunca pensas no futuro, é um dia de cada vez. Nunca me perguntei o que faria quando o corpo me falhasse."

Em 2012 falhou mesmo: foi-lhe diagnosticado cancro da mama e teve de retirar uma mama. A carreira chegou ao fim abruptamente, não estava nos planos. E agora, o que é que Luísa ia fazer?

"O Intendente estava a mudar muito", conta Luísa. Fizeram-se obras de requalificação, as ruas onde ninguém entrava viam-se agora de cara lavada. António Costa, então presidente da câmara de Lisboa, acabara de mudar o seu gabinete para o Largo.

Depois abriu um café moderno, a seguir outro. Várias associações instalavam-se com projetos sociais que abriam possibilidades a quem nunca as tinha tido. Um dia, queixou-se a Marta da falta que um almoço de Natal da comunidade fazia.

"Antigamente, a Comunidade Vida e Paz oferecia aqui uma refeição e a Luísa lamentava que a modernização do bairro tivesse posto fim a isso", conta Marta Silva, diretora do Largo Residências, uma cooperativa de projetos artísticos e sociais que tentava estabelecer a ponte entre o novo mundo que chegava ao Intendente e a comunidade que já estava estabelecida.

A ideia inicial era fazerem um almoço comunitário no bairro, cada um trazia o que podia e haviam de juntar-se todos à mesa. Mas então Luísa disse que sabia cozinhar - e isso muda a história toda. Em vez de trazerem comida feita, houve vizinhos que ofereceram feijão, outros carne, alguém trouxe umas couves. "Vou fazer uma feijoada", anunciou Luísa.

Pouco tempo antes tinha aberto a Cozinha Popular da Mouraria, um projeto comunitário de gastronomia liderado pela fotógrafa Adriana Freire. Fogão e tachos já havia - e ainda hoje é ali que Luísa cozinha o almoço de Natal para o seu bairro. Mas faltavam mesas e cadeiras para sentar tanta gente.

Aos bares onde antigamente arranjava homens, Luísa foi pedir mesas e cadeiras. Marta divulgou o almoço pela vizinhança, que trouxessem as bebidas e os doces. E então, num domingo de dezembro de 2012, Luísa começou a servir o almoço que trocaria as voltas à sua vida.

Nos meses seguintes abriria portas o Café do Largo, propriedade do Largo Residências, e Marta disse-lhe que a associação precisava de não só de uma cozinheira, como também de alguém que tomasse conta do balcão. Ao mesmo tempo, começou a frequentar aulas de português nas Irmãs Oblatas, uma obra religiosa que apoia mulheres nesta zona da cidade.

"Já tinha mais de 50 anos quando aprendi a ler e a escrever", conta Luísa, que tem agora 58, e isso é alegria quase tão grande como o nascimento dos netos. "E passei a ganhar um ordenado, imagina eu, com um ordenado."

Com o contrato de trabalho, pode finalmente legalizar-se. Saiu do quarto na rua do Benformoso, alugou casa em Almada, onde vive com o filho e os netos. "Mas venho para aqui todos os dias, trabalho no café e depois fico a conversar com as raparigas que ainda andam na vida. Dou-lhes conselhos." Às que querem sair da rua, Luísa apresenta-as às instituições. Às que querem ficar recorda técnicas para não correr riscos nem ficar dependente de qualquer homem.

No café do largo, há uma caixa para gorjetas - e é com esse dinheiro que Luísa monta o seu almoço de Natal. Com os anos, vários comerciantes começaram a contribuir com dinheiro ou comida, a Junta de Freguesia providencia mesas, vieram mais mãos ajudá-la na confeção do repasto.

Mas aquela refeição é toda dela. Há sete anos que devolve a generosidade com que os outros a trataram apurando o tempero. É que o chouriço tem de ir ao lume primeiro que tudo, as couves têm de entrar no tacho ao mesmo tempo que a carne e o feijão nem precisa de escaldar muito, há de cozinhar com o calor do caldo.

Durante duas horas ficou ali a servir toda a gente, não largou a concha enquanto não estivesse toda a gente saciada. Depois, recebeu uma ovação dos vizinhos, 400 almas a aplaudirem-lhe a iniciativa. E ela ria-se, ria-se, ria-se. É um espetáculo bonito de se ver, a felicidade de Luísa.

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