"O fogo deste ano tem um comportamento mais agressivo", alerta Proteção Civil
Habituada a ver arder pinhais inteiros, eucaliptos e outros espécies, quase todos os anos, a população de Vila Cã, no concelho de Pombal, distrito de Leiria, viu-se ontem a braços com o primeiro grande fogo do ano na região, e um dos que mobilizou mais meios no país. Foi na localidade de Outeiro, onde cerca de 140 bombeiros (apoiados por 38 viaturas e três meios aéreos) combatiam ainda ao final do dia o fogo que deflagrou por volta das 15 horas. O incêndio consumia uma zona de mato, afastado das habitações, mas fez-se notar através de extensas nuvens negras de fumo, em toda a região, causando uma onda de preocupação. É assim desde há muitos anos, só não era hábito acontecer nesta altura do ano, quando faltam ainda cerca de três meses para o verão, quando terminou há tão poucos dias o prazo para a limpeza dos terrenos pelos particulares, e está em curso outra fase, a cargo das autarquias.
"O que está a acontecer este ano não é só termos vários dias com condições climatéricas propícias ao fogo. É que não chove desde o início do ano, para manter os mínimos da humidade de combustível, na vegetação. Qualquer ocorrência se torna logo num fogo de comportamento muito mais agressivo", disse ao DN Alexandre Penha, adjunto nacional de operações da ANPC (Autoridade Nacional de Proteção Civil).
Ao final do dia de ontem, por volta das 19.00, a ANPC registara 111 fogos em território nacional, em que os mais preocupantes foram os de Vila Cã, no distrito de Leiria, e de Bragança. Este último obrigou ao corte de uma estrada municipal, mas não chegou a pôr em risco pessoas e bens. Foi no distrito do Porto que se registaram mais ocorrências (22), embora a maioria não tenha inspirado grandes cuidados, ficando resolvida nos primeiros 90 minutos. Seguiram-se os distritos de Braga (20), Viana do Castelo (18), Vila Real (12), sendo que nenhum dos outros chegou à dezena de fogos. No total, estiveram envolvidos 1465 meios humanos, 437 meios terrestres e 22 meios aéreos.
O adjunto Alexandre Penha fala de uma "necessidade de adequar comportamentos" por parte da população: "O ambiente não se comporta hoje da mesma maneira que há cinco, dez ou vinte anos. E o hábito de fazer queimadas nesta altura é um dos que temos de alterar. Hoje já não existem condições para fazer esses trabalhos da mesma forma, com a mesma metodologia."
Tal como defendeu já esta semana o especialista em incêndios Xavier Viegas, também este responsável da ANPC coloca grande ênfase nas alterações climáticas. "Claro que é importante cumprir as indicações do governo para limpar os terrenos em volta das casas, porque a resposta aos incêndios não pode centrar-se no combate. A resposta não passa por mais meios nem por mais leis, porque o combate é o último elo da cadeia. É aquele que se aplica quando todas as outras respostas já falharam. Passa sobretudo por adequar comportamentos", sublinha.
Ainda o governo não tinha determinado a passagem ao estado de Alerta Especial Amarelo e já os números da Proteção Civil davam sinais de alarme. Na terça, dia 26, registaram-se 147 incêndios (mais do que na quarta, quando já estava em vigor o conjunto de medidas especiais). Há um ano, no mesmo dia, a ANPC contabilizava apenas 28. "Logo num dia temos aqui um aumento de 425%", acrescenta Alexandre Penha. O adjunto nacional de operações encontra mais semelhanças com o ano de 2017, quando no início de março se registou "um número elevado de ocorrências", mas apenas num dia. Quando olha para o retrato destes últimos dias, aquele responsável não tem dúvidas de que "este fogo se revela mais agressivo", face às condições em que se expande.
O dia de ontem confirma, assim, as previsões meteorológicas que na terça-feira levaram o governo a decretar a situação de alerta para todo o território do continente, apontando para significativo agravamento do risco de incêndio florestal no território do Continente, e considerando a decisão da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, que determinou a passagem do Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais ao Estado de Alerta Especial Amarelo em todos os distritos. A decisão - a cargo dos ministros da Administração Interna e da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural - tem efeitos desde ontem, dia 27, e prolonga-se até ao próximo domingo, 31 de março.
No âmbito da Declaração da Situação de Alerta, prevista na Lei de Bases de Proteção Civil, estão a ser implementadas diversas medidas de carácter excecional. A primeira prende-se com a "elevação do grau de prontidão e resposta operacional por parte da GNR e da PSP, com reforço de meios para operações de vigilância, fiscalização, patrulhamentos dissuasores de comportamentos de risco e de apoio geral às operações de proteção e socorro que possam vir a ser desencadeadas". Enquanto o governo apela aos cidadãos "para que adequem os seus comportamentos ao quadro meteorológico que tem sido amplamente divulgado", o despacho aponta para a proibição da realização de queimadas, de queimas de sobrantes de explorações agrícolas e florestais e de quaisquer ações de gestão de combustível com recurso à utilização de fogo.
A dispensa dos trabalhadores dos setores público e privado "que desempenhem cumulativamente as funções de bombeiro voluntário, nos termos do artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 241/2007", é outra das medidas que constam do despacho da situação de alerta.
A mudança das condições climatéricas e a falta de adequação dos meios a este novo tempo podem bem proporcionar a repetição de incêndios similares ao de Pedrógão Grande, em junho de 2017. Foi esse alerta que deixou esta semana no Tribunal de Leiria o professor Xavier Viegas, quando questionado sobre a forma como está a decorrer a limpeza de terrenos no âmbito da prevenção.
Na verdade, o perito em incêndios considera que fixar a data de limpeza para os privados até 15 de março se revela insuficiente. Numa altura em que as temperaturas chegam próximo dos 30 graus, registando-se já diversos incêndios de grandes dimensões, a voz de Xavier Viegas eleva-se também na advertência: "Infelizmente este cenário de seca tem sido normal nos anos mais recentes. As mudanças climáticas apontam nesse sentido. Há um défice de precipitação, proporcionando esta situação de seca, nos últimos anos associada aos piores incêndios." E, sendo assim, faz sentido fixar até 15 de março a limpeza dos terrenos? "Não. Porque a natureza não conhece essas datas. Pode chover daqui para a frente, tem de haver outra flexibilidade", disse.
Xavier Viegas - que falava aos jornalistas depois de ter sido ouvido como testemunha no processo (em fase de instrução) do incêndio de Pedrógão - entende que, de facto, "ainda não adequámos os meios para a preparação do combate". Depois, junta-se um outro problema: "É preciso que os nossos quadros de comando (bombeiros) tenham formação adequada para estarem à frente do incêndio. Há incêndios com grau de dificuldade e perigosidade tais que exigem recursos que não estão sempre garantidos."