Não estarei em casa para o Natal
No carreiro de terra batida que liga a estrada da aldeia até à casa de Anabela Paiva há pedras soltas no chão. A chuva fez da terra lama, e por isso todo o cuidado é pouco para atravessar o Beco do Mário e subir ao outeiro, de onde se avistam os montes e vales queimados pelo fogo. Passou um ano, seis meses e três dias desde aquele fatídico 17 de junho que lhes destruiu a casa. E a vida. "Sabe o que é perder tudo? Nós perdemos tudo. Por isso já nada mais me importa. Faço um esforço para ter cara alegre para os meus filhos. Mas é muito duro". Anabela, 46 anos, mãe da Inês (13) do César (16) vive de empréstimo na casa de uns tios, com o marido, a mãe e os dois filhos. Antes morou em casa dos sogros. É ela o rosto de uma meia dúzia de famílias que ainda não tem casa, depois do fogo.
A moradia está a ser reconstruída exclusivamente por voluntários, gente dos concelhos de Pombal, Leiria e Ansião que integram o grupo Reconstruir o Pinhal Interior Norte, criado na sequência do fogo que consumiu grande parte dos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos. Todos os materiais foram também cedidos gratuitamente, num ato único de todo o processo de reconstrução. Quando criou um grupo no WhatsApp e decidiu por mãos à obra, Joel Silva achava que no Natal seguinte já seria possível ter a família instalada na casa nova. Foi ele quem serviu de elo de ligação entre todos, quem bateu à porta das Câmaras para se propor a levar por diante esta empreitada. A ideia era "provar que o amor pode tudo, até reconstruir exclusivamente assim uma casa".
A realidade, porém, atravessou-se no caminho: "A partir daquela reportagem do compadrio, que a TVI emitiu, tudo se complicou. As pessoas passaram a desconfiar de tudo, e isso notou-se na mão-de-obra voluntária", conta ao DN o dinamizador do grupo, que nas últimas semanas tem tido dificuldade em mobilizar braços de trabalho. Entretanto, o núcleo duro da organização - aqueles que iam todos os sábados para a aldeia da Figueira - começa a acusar algum cansaço. E num instante se passou do primeiro para o segundo natal em que a família de Anabela não tem a casa pronta.
"Eles têm sido impecáveis, eu sei que eles não podem fazer mais. Mas é verdade que custa não ter a nossa casa", desabafa Anabela, num fim de tarde cinzento, igual aos outros, quando regressa do trabalho na Santa Casa da Misericórdia de Pedrógão Grande. Joel diz que a obra está a 70%, que o maior trabalho é este que agora está em marcha - o revestimento da casa e xisto.
Na aldeia a casa destaca-se de todas as outras. Foi concebida pelo arquiteto Pedro Santos, é uma das maiores e talvez aquela que mais respeite a paisagem envolvente. Já que estamos na rota das aldeias de xisto, foi o material de eleição. Mas as pedreiras da região já pouco trabalham, e por isso foi preciso ir ao norte encontrar a quantidade necessária. O resto, garante Joel, far-se-á rapidamente. "Os trabalhos de chão, eletricidade e colocação de janelas e portas são coisa para demorar pouco mais de um dia cada", garante ao DN. Mas não arrisca uma previsão, porque não quer voltar a falhar.
Anabela encolhe os ombros, enquanto olha em redor. Era ali, entre o poço e a estrada, que tinha o seu quintal, que plantava a horta. Nesta altura era hábito ter couves viçosas, que haveriam de acompanhar o bacalhau cozido com todos, regado com azeite produzido a partir da azeitona que apanhava. O fogo daquela tarde/noite de 17 de junho haveria de lhe levar tudo.
Quando no dia seguinte regressou a casa, com esperança de a ver apenas chamuscada, deparou-se com uma imagem que até hoje não lhe sai da cabeça: o azeite a escorrer pela encosta a abaixo, o resto de tudo. O fogo tinha destruído por completo a casa, o carro do pai, a máquina de costura, o ouro, tudo o que a família tinha, afinal. "Sabe o que é ficar sem uma fotografia? Só tenho duas dos meus filhos porque tinha-as lá no trabalho, e uns dias antes mandei fazer uma do meu pai, que ainda estava no fotógrafo. Do meu casamento tenho aquela que a minha cunhada entretanto me deu. Queimou-se tudo".
Anabela Paiva vive agora o Natal como "um dia igual aos outros". Aos problemas de saúde da filha (asmática), juntaram-se os do foro psicológico. Sobreviver ao fogo - ao contrário das 66 vítimas daquela região - não foi de todo sinal de lhe escapar. A vida nunca mais foi a mesma. Os filhos - que eram as últimas crianças da aldeia - deixaram de lhe pedir presentes. No Natal passado, horas antes da consoada, a família recebeu a visita de Sandra Jorge, do marido e do filho, integrantes do grupo de voluntários que lhe anda a reconstruir a casa. "Foi uma alegria. Não só pelo que nos levaram, mas sobretudo por terem lá ido".
Nas aldeias varridas pelo fogo a solidariedade é quase uma palavra vã, talvez gasta nos dias que se lhe seguiram. "As pessoas ficaram más. Ficaram revoltadas umas com as outras", explica Anabela. Na aldeia da Figueira - cuja antiga escola primária foi transformada na sede da Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande - arderam então 15 casas, nem todas de primeira habitação. A maioria está totalmente reconstruída, faltando concluir a de Anabela, de uma vizinha que está em Moçambique, e há os ajustes a fazer na casa de Rosalina Rosa, a proprietária do único café da localidade. É viúva, mora com o filho, Lino, de 54 anos. Mudou-se para a casa ainda não há um mês, mesmo antes de lhe ligarem a eletricidade. Mas rapidamente percebeu que o filho (obeso) não iria caber na cabine de duche que lhe construíram, numa obra que esteve a cargo da Cáritas Diocesana de Coimbra. Sendo assim, Rosalina continua a valer-se da irmã, Leontina, dois anos mais velha. Foi ela que lhe deu guarida no último ano e meio. E provavelmente o Natal será passado à lareira dela.
O café que tem o nome do filho de Rosalina lembra a quem entra que quadra é esta, mesmo que dentro das casas resista um clima sombrio, sem grande entusiasmo para festejos natalícios. Na Figueira moram ainda 20 pessoas, quase todas idosas. Algumas terão a companhia dos filhos, que migraram para as grandes cidades, outras nem por isso. A maioria dos filhos é emigrante, em vários países da Europa, só regressando à terra no verão.
É ainda no concelho de Pedrógão Grande, mas na aldeia de Troviscais, que mora outra casa vazia neste Natal. Isabel Marques e a mãe moram ainda provisoriamente numa casa da Câmara, na vila de Pedrógão Grande, onde a filha é funcionária municipal. Prefere não adiantar estados de alma, nem falar muito sobre esse atraso nas obras, que a levam a passar mais um Natal longe do seu teto. Pelo que se vê, já não falta muito para que a obra seja considerada pronta, conforme o DN pôde testemunhar. O cão, fiel amigo, continua lá, de guarda. Isabel vai todos os dias alimentá-lo, e cuidar daquele canto. Há dióspiros maduros que anunciam vida, por ali, só falta transpô-la para dentro das paredes.
As autoridades contabilizaram quase 500 casas destruídas pelo fogo, nos diversos concelhos afetados. A reconstrução está praticamente feita, dividida entre o fundo REVITA, a Cáritas Diocesana de Coimbra, a União das Misericórdias e um conjunto de outras entidades que abraçaram projetos individuais. Na semana passada o bispo de Coimbra foi à região inaugurar as casas a cargo da Cáritas, mesmo a tempo da mudança das famílias antes do Natal.
"Já deviam estar todas feitas, as casas", afirma ao DN Alda Correia, presidente da Câmara de Castanheira de Pera, onde em junho de 2017 arderam cerca de 60 casas, e ainda falta concluir a reconstrução de quatro. A autarca - que recuperou a Câmara para o PSD nas eleições de outubro de 2017, meses depois do fogo - sabe de cor o nome e a situação de cada família. Explica detalhadamente cada um dos processos, e lamenta que cada uma das pessoas não tenha ainda a casa pronta neste Natal. Ou funcional. É o caso da moradia de José Vicente, em Sarzedas do Vasco. O proprietário confirmou ao DN que "falta apenas ligar a eletricidade", o que deverá acontecer por estes dias. Se tudo correr bem, a passagem de ano já vai acontecer na casa nova. Ao longo deste ano e meio que passou, José Vicente tem morado numa casa arrendada pela Segurança Social.
No lugar de Rapos está outro dos projetos a cargo do grupo ReConstruir o Pinhal Interior Norte. "Demorou mais tempo porque houve um processo complicado com os herdeiros, a propósito do terreno onde estava implantada a casa", adianta Alda Correia. Joel Silca confirma que foi quase um processo kafkiano, só desbloqueado há alguns meses. Neste caso, e tendo em conta a experiência da casa da Figueira, o grupo de voluntários optou por outra via. "A casa está a ser reconstruída através de crowdfunding. Nós angariamos o dinheiro e paga-se assim a quem lá anda a trabalhar", explica o mentor. Também naquele caso não há previsão de entrega da obra. A proprietária continua a morar em casa de familiares.
Há ainda uma nota a registar: os estrangeiros que moram em muitas aldeias daqueles concelhos e que decidiram reconstruir as casas sozinhos, sem qualquer ajuda pública. É o caso dos holandeses, alemães e checos de Vale Salgueiro e Goladinha, em Figueiró dos Vinhos.
Na viagem até Pedrógão passa no rádio uma canção de Frank Sinatra - I'll be home for Christmas - que não se cantará para um conjunto de famílias. As estradas estão de novo rodeadas de eucaliptos, que rebentaram com um vigor assustador, depois do fogo. Os populares chamam-lhe um barril de pólvora. Nas lareiras das casas queima-se ainda a lenha que resultou do fogo, e pensa-se no futuro: "Daqui por um ano ou dois já não haverá nada para queimar".