Há um café que proíbe a leitura de jornais, revistas e livros. E pode?
Numa tarde de sábado, com mais de metade das mesas vazias, um cidadão senta-se na esplanada do Spot Fenix Portela, Loures, no Jardim Almeida Garrett, preparando-se para consumir uma bebida fresca e pôr a leitura em dia. Tira o DN para cima da mesa e já não o consegue abrir. O empregado de mesa aponta o dedo e diz lá do fundo: "não está a ver o aviso?"
Refere-se a um papel colado no tampo das mesas que diz "NÃO É PERMITIDO ESTUDAR OU LER (jornais, revistas livros ...) NA ESPLANADA, a gerência"), mas sem estar assinado. Sabíamos do aviso (informados por um leitor), mas não acreditámos que fosse possível, tanto que íamos consumir. Além de que, mais de metade das 15 mesas estavam desocupados e acabávamos de nos sentar.
Contactada a ASAE, a autoridade diz que é possível aquele tipo de regras e que se enquadram no Direito de Admissão, DL n.º 10/2015, de 16 de janeiro. O mesmo é referido por um jurista da Deco, salientando as duas organizações que não receberam queixas de consumidores sobre esta matéria. Nem há notícia de um outro estabelecimento comercial com semelhante limitação.
A lei sobre o acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração, artigo 131 º, permite a recusa o acesso "a quem perturbe o seu funcionamento normal, designadamente por se recusar a cumprir as normas de funcionamento impostas por disposições legais ou privativas do estabelecimento, desde que essas restrições sejam devidamente publicitadas".
Mas a jurista da Deco também salienta que, quando se tratam de proibições não regulamentadas, as autoridades não podem impedir tais práticas. Com base em que lei?
Tal facto é confirmado pelo diretor do Gabinete de Imprensa e Relações Públicas da PSP, intendente Alexandre Coimbra. Informa que não têm ocorrências relativas a pessoas que insistam em ler num café que o proíba e que, mesmo que existissem, os agentes não podiam atuar uma vez que há disposições legais sobre essa matéria.
Voltando ao Spot Fenix Portela, o dito funcionário continuava a insistir na proibição. Num tom alto, desagradável, e a falar do quiosque para a ponta da esplanada, onde nos encontrávamos. Ameaçou chamar a polícia.
Questionámos? "Chamar a polícia porquê? Estamos a perturbar o funcionamento do café? Estamos sentados há muito tempo? Não estamos a consumir?"
O homem gritou a resposta: "Não está a cumprir as nossas regras, estão afixadas. Guarda o jornal ou chamo a polícia". Retorquimos: "E se ler o jornal num telemóvel?" Ao que o empregado responde: "Espero que tenha o bom senso de não o fazer". Dissemos que íamos apresentar uma reclamação.
Insistimos na leitura e o homem telefonou para a esquadra de Sacavém. Aparentemente, estávamos a cometer um crime. Percebeu-se pela conversa telefónica que a polícia estava relutante em se deslocar ao café, mas o homem justificou que a esplanada estava cheia e havia um problema de ocupação, o que não era verdade.
Acabaram por chegar dois agentes da esquadra de Sacavém, um deles falou com o dito funcionário e dirigiu-se à nossa mesa. O agente tentou dissuadir o cliente na leitura do jornal, explicou que eram as normas da casa, leu o artigo sobre o direito de admissão, concluiu que o melhor era apresentar uma reclamação. "E se não o fizer, se continuar a insistir, vou presa? Estou a perturbar? Há pessoas à espera de mesa? Com base em que lei me vai prender?"
Percebeu-se alguma indefinição por parte dos polícias, até que nos apresentámos como jornalistas do DN. Informámos os agentes que a informação do porta-voz da PSP era a de que não podíamos ser presos por não cumprir uma norma interna e que não está regulamentada."Eu também não a detive, não fiz nada".
O homem/ empregado não se assume como dono do estabelecimento, ao contrário do que parecia inicialmente. Indica a proprietária, que não se quis identificar. Justifica a proibição: "Introduzimos esta medida porque não há respeito, As pessoas ficavam horas a ler, as mesas estavam ocupadas e já não se podiam sentar outras. É um problema transversal a todos os estabelecimentos, tivemos que implementar esta medida".
Acrescenta que apresentaram o caso à Associação Empresarial do Comércio e Serviços (Loures e Odivelas), a quem pediram a impressão do aviso.
O Spot Fenix Portela é um quiosque que abriu há três anos com esplanada no Jardim Almeida Garrett, um espaço público., sem serviço de mesa. A proibição de leitura foi imposta há meio ano, argumenta a proprietária, "quando foram obrigados a reduzir o espaço das mesas".
No Facebook, há clientes que se queixam do atendimento, nomeadamente da proibição da leitura.
Se os estabelecimentos comerciais podem definir as regras de acesso, é constitucional impedir que um cliente exerça a sua liberdade em ler? Há dúvidas.
Um parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, votado em 26 de março de 2010, sobre a proibição do acesso a pessoas que tenham cometido ilícitos em estabelecimentos de restauração e afins, considerava que "a proibição de acesso e permanência em estabelecimentos de restauração ou de bebidas, que, em princípio, são espaços de livre acesso pelos respetivos utentes, constitui uma privação parcial do direito à liberdade consagrado no n.º 1 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa (CRP)";
Acrescentava que "tal proibição só poderá ser imposta, em aplicação do disposto em lei da Assembleia da República ou de decreto-lei emitido ao abrigo de autorização legislativa, por sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou por aplicação judicial de medida de segurança, conforme se extrai da regra estabelecida no artigo 27.º, n.º 2, da CRP, conjugada com as exceções constantes do n.º 3 do mesmo artigo".
Pela nossa parte, acabámos por apresentar queixa no Livro de Reclamações. Até porque acabámos por ler o DN ao lado da esplanada, sentados num muro do jardim.