Há 1250 crianças à espera de uma família de acolhimento em Lisboa

No mês em que se comemora os 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança da UNICEF, a Santa Casa de Lisboa lança uma campanha de sensibilização para o acolhimento familiar. Portugal é dos países que ainda não dão uma resposta suficiente às necessidades.
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"Acolher uma criança é devolver-lhe a infância." Este é o mote da campanha que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa lança nesta sexta-feira a nível nacional, com o objetivo de divulgar, sensibilizar e criar uma cultura de "acolhimento familiar" que, de facto, "não existe em Portugal", explicou ao DN Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção, Acolhimento e Apadrinhamento Civil da Santa Casa.

Apesar de a medida constar da legislação portuguesa desde 2015, "ainda há muitas pessoas que não sabem o que é ou que confundem com outras medidas. Por isso há necessidade de clarificar este conceito".

Para o legislador, a medida de acolhimento familiar deve ser temporária ou de transição, até ser definido o projeto de vida da criança, quer seja o regresso à família de origem quer o destino seja a adoção.

De acordo com dados divulgados pela Santa Casa, hoje, numa reunião com jornalistas, só no distrito de Lisboa, há neste momento 1250 crianças em instituições em situação de poderem ser acolhidas por uma família. Ou seja, à espera de uma família de acolhimento, mas nem de longe nem de perto há forma de dar resposta a esta necessidade.

Por isso, "o primeiro objetivo da campanha agora lançada é o de divulgar, sensibilizar e criar uma cultura; o segundo é o de poder fomentar o direito de qualquer criança viver em família - especificamente as que, por qualquer motivo, como dificuldades financeiras, negligência, maus-tratos, etc., estão temporariamente privadas dos cuidados parentais - através da captação de famílias disponíveis e capazes de acolher uma criança no seu meio ambiente para dar todo conforto necessário ao seu desenvolvimento", explica a diretora da Santa Casa.

A campanha, que vai estar em destaque em vários órgãos de comunicação social até a 26 de novembro, congrega, acima de tudo, "a responsabilidade de concretizar o direito de manter as crianças sempre que possível num ambiente familiar".

A Santa Casa trabalha neste projeto de criação de uma bolsa de famílias de acolhimento desde há dois anos e, neste momento, tem já famílias selecionadas, formadas e preparadas para o acolhimento de crianças. "Podemos dizer que temos uma família já a acolher uma criança, três formadas e preparadas para acolher outras e seis em situação de avaliação para serem selecionadas", referiu.

Para erguer este projeto de acolhimento familiar a Santa Casa enviou alguns dos seus técnicos ao Canadá, país com uma legislação de proteção de menores idêntica à do nosso país, para perceberem como se construiu e funciona o modelo de seleção, recrutamento e acompanhamento de famílias de acolhimento.

Até agora, Portugal é dos países com menor percentagem de acolhimento familiar face ao acolhimento residencial, de 3, para 97%, enquanto em Espanha esta percentagem é de 60% para 40%, na Irlanda de 90% para 10% e na Noruega de 85% para 15%.

O paradigma tem mesmo de mudar, até porque a legislação portuguesa, traduzida no Decreto-Lei n.º 139-2019, aprovado em Conselho de Ministros em agosto último e que entra em vigor a 1 de dezembro, torna este tipo de acolhimento prioritário para qualquer criança ou jovem, mas sobretudo para as que estão na faixa etária dos zero aos 6 anos.

No entanto, Isabel Pastor esclarece que estas percentagens muito elevadas de acolhimento familiar noutros países têm também uma outra razão, a de incluir e contabilizar neste modelo de acolhimento aquele que é feito por outros elementos da família de origem, como tios, avós, padrinhos, etc. O que não acontece em Portugal, já que a legislação deixou de integrar o acolhimento em família alargada como acolhimento familiar.

Mas, reconhece, "sem dúvida que a reposta em Portugal ainda é insuficiente, por isso há necessidade de mudar o paradigma e fazer que o acolhimento em família seja a norma, ficando o acolhimento residencial apenas para situações residuais e muito específicas".

Para que tal aconteça é necessário também que os próprios magistrados estejam dispostos a aplicar a medida. "Há muitos magistrados que estão motivados para a aplicação desta medida, mas, não sabendo que já há resposta, acabam sempre por aplicar aquela que até agora tem sido viável e que é o acolhimento residencial."

O objetivo da campanha é selecionar, recrutar, formar e acompanhar famílias de acolhimento para que seja possível criar "uma bolsa de famílias disponíveis que permita, em qualquer circunstância e independentemente da idade, dar resposta a uma criança que temporariamente tem de ser afastada da sua família de origem".

Assim que contactarem a Santa Casa para manifestar disponibilidade para acolher crianças, as famílias serão convidadas a fazer uma ação formativa, em que irão receber todas as informações sobre este tipo de acolhimento e sobre todas as outras soluções para crianças privadas de cuidados parentais.

Depois ser-lhe-á fornecida toda a informação sobre a forma de se candidatarem e de como serão preparadas para o exercício da sua função parental em relação à criança que acolherem. "A família tem de ser preparada para receber a criança e até para a deixar a partir. A família tem de ser acompanhada no apoio e na relação que deve ter com a família de origem da criança, que deve estar sempre presente neste processo."

O novo decreto sobre o acolhimento familiar veio definir algumas compensações pecuniárias para quem receba a criança. "Não é um salário, não é uma contrapartida, porque não há contrapartidas para o amor, para o afeto, para o carinho. Digamos que é uma compensação para os encargos financeiros que acresce a entrada de uma criança", explica Isabel Pastor.

A legislação que entra em vigor a 1 de dezembro prevê ainda incentivos fiscais para estas famílias, não tributando com impostos os subsídios atribuídos, bem como a atribuição de um regime de conciliação entre as funções profissionais e familiares, como acontece com qualquer filho menor.

A campanha é a nível nacional para sensibilizar e consciencializar a sociedade, mas o recrutamento e a formação das famílias serão feitso pela Santa Casa em Lisboa e pelo Instituto de Segurança Social no resto do país.

O lançamento desta campanha "Acolher uma criança é devolver-lhe a infância" surge a propósito dos 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança pela UNICEF a 21 de novembro de 1989. No entanto, esta foi também a semana que ficou marcada pela divulgação de que um recém-nascido foi deixado num contentor na Av. Infante D. Henrique, em Lisboa. A criança está hospitalizada mas estável, e a PJ anunciou ter detido uma jovem de 22 anos que alegadamente poderá ser a progenitora.

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