Faziam da burla modo de vida. 195 foram lesados em 3,2 milhões de euros
O julgamento começou em setembro de 2017 e só foi concluído com a leitura do acórdão em janeiro de 2019. "Faziam da burla o seu modo de vida", concluiu o Tribunal ao condenar seis pessoas a penas de prisão entre os 12 anos e os três anos e meio de prisão efetiva por terem cometido um conjunto de burlas de elevado valor entre 2010 e 2013 - o valor apurado das burlas foi de 3.253.163,96 euros com um total de 195 lesados, entre empresas e instituições de crédito. O esquema resume-se à criação de diversas empresas fictícias, com pessoas sem instrução ou imigrantes como gerentes testas de ferro a troco de dinheiro, para depois, com cheques pré-datados, os mentores procederem à aquisição de milhares de bens, desde máquinas a eletrodomésticos, até materiais de construção ou veículos como camiões. Nunca pagavam nada e, mal tinham a mercadoria em sua posse, procuravam vendê-la.
O principal arguido, definido pelo Tribunal de Lisboa, onde no final de janeiro foi lido o acórdão, como o mentor das burlas é um português de 60 anos, com residência em Espanha e em Moscavide, que, entre 2010 e 2013, geriu este esquema, apoiado por alguns colaboradores, entre os quais a sua mulher. Já com antecedentes criminais e pena de prisão cumprida em Espanha, José Francisco Chalaça foi condenado a 12 anos de prisão em cúmulo jurídico (somadas, as penas parciais por nove crimes de burla qualificada e branqueamento de capitais superavam os 30 anos) e a sua mulher Isabel foi punida com nove anos. Um outro arguido, que nunca compareceu em julgamento, apanhou dez anos e meio de prisão. Houve mais quatro condenados a penas de prisão, entre os três anos e meio e os 10 anos e meio. Os restantes, com menor envolvimento, apanharam penas suspensas e seis foram absolvidos.
Entre os 195 lesados constam vários bancos, empresas dos mais diversos ramos e de variada dimensão, como a Miele, NOS ou Pinto & Cruz, com 35 a serem demandantes. Durante o período em que o caso foi investigado e julgado, quatro empresas lesadas foram declaradas insolventes, outras desistiram do processo. As indemnizações definidas em tribunal como devidas às demandantes ultrapassam os 700 mil euros mas lê-se na decisão que o "arguido Francisco Chalaça não tem qualquer atividade registada, não entregou qualquer declaração de rendimentos desde 2010 e não possui qualquer bem imóvel registado em seu nome". A sua mulher recebeu subsídio de desemprego entre 2012 e 2014. Possuem uma casa em Ayamonte (Espanha) avaliada em 400 mil euros na mesma cidade tinham arrendados armazéns onde escondiam a mercadoria. De resto os cinco principais condenados não têm atividade conhecida e os percursos de vida são marcados por sucessivos negócios, desde a restauração ao transporte de mercadorias, que nunca duravam muito tempo. Apresentaram-se à justiça com profissões como empregado de armazém, administrativo ou comerciante. São todos da área da Grande Lisboa.
O processo teve início em Olhão mas, em 2013, as autoridades deram conta que os casos se espalhavam pelo país, tendo o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) assumido a investigação, com 18 inquéritos a serem incorporados. No momento em que o grupo foi desfeito, num armazém alugado ainda foi apreendida mercadoria no valor superior de 241 mil euros.
Quando o julgamento arrancou, o processo com 54 volumes incluía 29 arguidos acusados mas em relação a oito, na maioria "gerentes fantasma", alguns já fora do país, foram separados os processos. Dos restantes, quatro arguidos não compareceram a nenhuma das sessões de julgamento.
A maioria da acusação relativa a crimes de burla e branqueamento de capitais foi dada como provada, no que toca aos seis principais acusados. Procediam à aquisição de bens e de serviços junto de diversos fornecedores, utilizando sociedades comerciais já existentes, criadas por eles mas com sócios-gerentes que aceitavam dar o nome a troco de dinheiro. "Recrutaram pessoas, algumas sem qualquer experiência na gestão ou na atividade das sociedades utilizadas pelos arguidos, nomeadamente cidadãos estrangeiros ou indivíduos sem qualquer instrução, os quais adquiriram as quotas das sociedades a utilizar, efetuaram a alteração do respetivo pacto social, recebendo estes, em contrapartida, uma quantia monetária variável", diz o acórdão judicial.
Depois solicitavam o pagamento de mercadorias e serviços fornecidos através da emissão de cheques pós-datados, cujas datas fossem posteriores às das entregas dos bens e da prestação dos serviços. Mal tinham os bens em sua posse, vendiam imediatamente esses bens a diversos comerciantes ou industriais, abaixo do preço de custo. "Não procederam ao pagamento dos cheques emitidos para pagamento dos bens adquiridos e serviços prestados, por falta de provisão das contas bancárias sacadas, ficando os respetivos fornecedores prejudicados nos montantes neles constantes", concluíram os juízes.
Para conseguirem aceder ao dinheiro, davam instruções aos "testas-de-ferro" para lhes darem autorização para movimentarem as contas bancárias das respetivas sociedades "a fim de evitar qualquer responsabilidade dos arguidos, os quais se apresentavam como trabalhadores por conta de outrem, quando, de facto, eram os únicos que controlavam a gestão e a atividade das sociedades".
Passados três ou quatro meses depois de serem criadas, as sociedades eram encerradas, sem empregados ou instalações, e insolventes. Eram logo criadas novas empresas que funcionavam do mesmo modo. "Os montantes obtidos através desta atividade eram a única fonte de rendimento dos arguidos, com eles assegurando os seus gastos e necessidades diários, bem como adquirindo bens móveis e imóveis, de forma a, simultaneamente, garantirem a sua não apreensão e não revelarem a sua origem."
Criaram, pelo menos, nove empresas, com nomes de onze pessoas. Por exemplo, em dois casos recorreram a cidadãs brasileiras que a troco de 7900 euros aceitavam ser testas-de-ferro. Após receberem o dinheiro, saíram logo de Portugal.
Em julgamento havia outro grupo de empresários, acusados de recetação por comprarem os bens aos arguidos. Quatro foram condenados a penas suspensas de prisão (entre ano e meio e dois anos) e dois foram absolvidos.
Uma das viaturas adquiridas, sem pagar, pelo grupo de burlões a uma locadora financeira foi apreendida em França numa fiscalização. O camião MAN tinha sido transformado e transportava na altura 225 quilos de cannabis, que seguia para Itália. Os dois passageiros, motorista e acompanhante, foram detidos em Montpellier e acabaram condenados a penas de prisão, já cumpridas. Neste processo, foi reaberto um inquérito relativo a estes factos mas os três acusados - os arguidos principais - acabaram por ser absolvidos, por falta de provas.
Neste momento está em investigação um caso de contornos semelhantes, com valores ainda superiores. Em novembro, a Polícia Judiciária de Leiria desmantelou um grupo criminoso que também se dedicava à compra e venda dos mais variados géneros de mercadorias para revenda em todo o país. De igual forma, não pagavam às empresas com que negociavam e depois revendiam as mercadorias.
Segundo a PJ, o esquema durava há muitos anos, estimando que tenha causado prejuízos da ordem dos dez milhões de euros. Este grupo criou firmas fictícias e os suspeitos estão indiciados dos crimes de falsificação de documentos, recetação e fraude fiscal, além de burla qualificada. Foram detidas 18 pessoas no âmbito desta operação com o nome de Cordial Mente