"Entrevista de Neto de Moura é deitar gasolina no fogo"

Bastonário da Ordem dos Advogados reputa declarações de juiz ao Expresso de "desnecessárias" e "demonstrando uma certa inconsciência". E considera que o juiz afirmar ser contra leis como a que permite a adoção por casais do mesmo sexo, a da descriminalização do consumo de drogas e contra o casamento de pessoas do mesmo sexo "cria uma certa desconfiança nos cidadãos."
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"É uma entrevista desnecessária, que cria mais ruído ainda e vem apenas potenciar a argumentação que está nos acórdãos, com a insistência na possibilidade de se usar a Bíblia na fundamentação, com a afirmação de ser absolutamente contra a infidelidade, mostrando uma inconsciência da desvalorização que é feita da violência doméstica... É deitar gasolina no fogo. Mas se calhar o juiz acha o contrário."

Guilherme Figueiredo, bastonário da Ordem dos Advogados, confessa que ficou muito surpreendido quando soube que o juiz desembargador que está no centro de uma das maiores polémicas de sempre na justiça portuguesa tinha dado uma entrevista ao Expresso , e mais perplexo ficou quando a leu. Além dos aspetos relevados, também lhe pareceu que "cria uma certa desconfiança ele dizer que é contra uma série de leis."

É o caso da descriminalização do consumo de drogas, que data de 2000, do acesso ao casamento por parte de casais do mesmo sexo (desde 2010) e da adoção por casais mesmo sexo (2016). "Claro que um juiz pode dizer que é contra algo mas quando está a decidir aplicar a lei. Pode", diz o bastonário. "Mas do ponto de vista da apreensão que o cidadão faz da justiça... O dever de reserva, que é imposto aos magistrados, não é só para casos concretos. E esta entrevista parece-me muito contraproducente na perspetiva da pacificação."

A pacificação em causa é, crê, a pretendida pelo Presidente do Tribunal da Relação do Porto, Ataíde das Neves, com a transferência do juiz da secção criminal daquele tribunal para a cível.

Uma secção onde poderá apreciar casos de Direito de Família, como frisou Paulo Pimenta, presidente do Conselho Regional do Porto da OA, aplicando as suas peculiares conceções pessoais nessa área. "A simples mudança para uma secção cível equivale a manter o problema de fundo: se o problema está, como parece, numa certa compreensão da vida e da realidade por parte do Desembargador Neto de Moura, em particular nas questões de índole familiar e conjugal, não faltarão ocasiões para essa compreensão vir novamente ao de cima, reacendendo toda a polémica", lê-se num comunicado do Conselho Regional desta sexta-feira, que, frisando ser necessário aproveitar o caso para repensar questões como a do acesso à magistratura judicial, a progressão na carreira, a fiscalização e a inspeção dos Juízes, assim como a sua formação contínua. chega mesmo a falar em "casos patológicos": "Tudo quanto contribua para uma autêntica legitimação dos Tribunais e dos Juízes, o que também permitirá enfrentar casos patológicos, que, sendo embora excecionais, não podem ser tolerados, nem tratados de modo displicente, gerando incompreensão na comunidade."

"A transferência de Neto de Moura não pode ser um ponto de chegada"

Guilherme Figueiredo que em 2017, quando foi revelado acórdão de Neto de Moura que ficou conhecido como "da mulher adúltera" tinha defendido logo a mudança de secção como medida inicial "para estancar o problema", e recentemente afirmou que "ele deixar de julgar só casos de violência doméstica não resolve, deve é deixar de julgar todas as matérias relacionadas com Direito de Família (...) por as fundamentações proferidas [em alguns dos acórdãos conhecidos] revelarem uma forma de pensar inconstitucional", parece adotar uma postura menos dura que a do Conselho Regional do Porto.

Se lamenta que se tivesse levado tanto tempo para decidir a transferênca, frisa que na secção cíve há uma diferença importante em relação à criminal: "Deixam de ser dois juízes apenas e passam a ser três, o que já permite a formação de uma maioria. Não é indiferente mudar de dois para três juízes." E que agora é"preciso trabalhar o resto, dirigindo medidas a todos os outros netos de moura. Porque se vamos ater-nos só a Neto de Moura não se resolve nada. Temos e passar a uma fase de racionalidade. Sempre que temos um epifenómeno discute-se muito e exigem-se medidas radicais mas depois pode morrer o assunto."

Questionado sobre como interpreta a frase do presidente do Tribunal da Relação do Porto sobre a transferência de Neto de Moura - "Não resolve nada, mas atenua" --, Guilherme Figueiredo diz crer que Ataíde das Neves tem consciência de que existe um problema para resolver que não se esgota no juiz transferido: "Oque retirei dessa frase é que se tratou de uma medida rápida e pragmática, e fácil de executar - mas que como ponto de chegada não pode ser." Porque, acrescenta, "não é fácil ele simplesmente deixar de ser juiz. Seria um processo moroso, e o que é necessário agora é tratar deste problema que não é só judicial, tem de ser tratado a vários níveis."

Considerando o caso Neto de Moura "muito mais que um problema de sanção", vê-o como levantando questões relacionadas com a metodologia da tomada de decisão: "Percebe-se que as decisões não são só técnicas, têm lá a mundividência toda." E, na linha do defendido no comunicado do Conselho Regional do Porto da OA, crê que é preciso não só reforçar a formação dos magistrados, não só a inicial, no Centro de Estudos Judiciários, mas ao longo da carreira, assim como estender as inspeções regulares que existem na primeira instância aos tribunais da Relação. E, sugere, "olhar-se para os modelos de outros países." E, sobretudo, "não desvalorizar o problema", como diz ter feito a Associação Sindical de Juízes.

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