Descodificação da Enigma apanhou espião português na II Guerra. E foi um problema para a diplomacia

Gastão Ferraz trabalhava na Marconi, chateou-se e alistou-se no navio-hospital Gil Eanes como radiotelegrafista. Aliciado pelos alemães para espiar os Aliados, preparava-se para passar informação ultrassecreta. Mas o código da Enigma acabava de ser descodificado e foi apanhado.
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Chamava-se Gastão Crawford de Freitas Ferraz, era natural do Funchal, e trabalhava em Lisboa, na Marconi. Teve problemas com a empresa e alistou-se no navio-hospital Gil Eanes, onde era um dos dois radiotelegrafistas a bordo. Aliciado pelos alemães para espiar os Aliados, o português teve uma curta carreira como espião: foi apanhado graças a Alan Turing, o génio matemático que descodificou o código secreto dos alemães (e é agora o novo rosto das notas de 50 libras).

O navio-hospital Gil Eanes tinha como missão dar apoio aos bacalhoeiros que pescavam na Terra Nova, Canadá. E foi para esse fim que Gastão Ferraz foi contratado. Mas antes de partir foi aliciado por um agente do Eixo (Alemanha, Japão e Itália), Fernando Sepúlveda Rodrigues, que o pôs em contacto com o agente alemão Ernest Schmidt.

Conta José António Barreiros, advogado com obra publicada sobre a espionagem durante a II Guerra Mundial, que Ernest Schmidt era uma personagem relevante de espionagem naval em Lisboa, com casa na Estrada das Laranjeiras, junto a Sete Rios. Ofereceu-lhe uma verba de 1500 escudos mensais, quatro vezes mais do que o salário médio em Portugal na altura (Fernando Rosas, "Dicionário da História de Portugal") para enviar informações sobre as movimentações navais dos Aliados na Terra Nova.

Gastão Ferraz não terá sido espião durante muito tempo. Há muito que os britânicos tentavam descodificar as mensagens nazis, encriptadas na Enigma. Fizeram-no a partir do trabalho desenvolvido pelos polacos, posteriormente eram os criptógrafos polacos que levavam as mensagens para a unidade de codificação de Bletchley Park, em Inglaterra. E foi aí que o cientista e matemático britânico Alan Turing e a sua equipa acabaram por descobrir os códigos nazis. E o português acabou por ser desmascarado.

Informação ultrassecreta

"A sua localização foi concebida graças à radio-escuta das comunicações alemãs, que apesar de criptografadas pela máquina Enigma, foram descodificadas em Bletchley Park por uma equipa de que o mais proeminente elemento foi Alan Turing. Tratava-se de informação de tal modo secreta que a sua fonte era indicada nos documentos que se produzissem como ULTRA", explica José António Barreiros ao DN. Ainda houve trabalho para se perceber qual dos dois radiotelegrafistas passava a informação, acabando a investigação por se centrar em Gastão Ferraz.

Os serviços secretos britânicos foram alertados e, através da Royal Navy, efetuaram a detenção em alto mar. Barreiros cita um relatório da PIDE de 18 de janeiro de 1943, dizendo que Ferraz foi retirado do navio em Freetown (Canadá) a 1 de novembro de 1942, com a nota: «ignora-se para onde foi conduzido».

Uma das informações ultrassecretas era sobre a Operação Torch, denunciando que as tropas britânicas e norte-americanas sob o comando do general George S. Patton se preparavam para invadir Marrocos e Argélia. A invasão concretizou-se a 8 de novembro, uma semana depois da detenção do português. O que indica que a história teria sido outra se tivesse continuado a atividade, uma vez que a Terra Nova - por onde se fazia a ligação da Europa com a América -, era uma zona estratégica do ponto de vista militar.

A atividade de Gastão Crawford de Freitas Ferraz é relatada no livro do jornalista Rui Araújo, "O diário secreto que Salazar nunca leu", publicado em outubro de 2008. Cinco meses depois, os Arquivos Nacionais do Reino Unido divulgam ficheiros secretos da II Guerra Mundial, incluindo os que revelavam a participação de Gastão Ferraz.

"Os ficheiros secretos britânicos, agora revelados, dão conta de como o operador de rádio do navio-hospital Gil Eanes, de apoio à pesca do bacalhau, foi apanhado em alto mar antes de conseguir avisar a Alemanha de que uma frota aliada se preparava para invadir o Norte de África", escreve o DN a 4 de março de 2009.

Acrescenta: "As forças alemãs - ao contrário das francesas que foram rapidamente dominadas - sob o comando do general Erwin Rommel (também conhecido como a Raposa do Deserto), resistiram aos Aliados. Só em 1943 e após violentas batalhas no deserto, os alemães foram derrotados. Tratou-se de um momento de viragem na guerra que ajudou nos planos para a invasão do Dia D, em 1944". Informação que é corroborada por Christopher Andrew, da Universidade de Cambridge. Considerou o historiador que o ficheiro de Ferraz "muda o entendimento da história britânica" e fornece informação nova dos serviços secretos do país na luta contra os nazis.

Portugal e a neutralidade

Os serviços secretos suspeitaram do "comportamento anormal" de navios de pesca portugueses, incluindo alguns com equipamento de comunicações elaborados. Segundo os ficheiros secretos britânicos, Ferraz foi levado para Gibraltar e depois para o Reino Unido, onde foi interrogado. Três anos depois, foi deportado para Portugal e, em 1953, Londres retirou-o da lista que o impedia de entrar no país.

No interrogatório, foi confrontado com as suas ligações ao agente alemão Kuno Weltzien, representante da empresa Krupp em Portugal e que se dedicava à espionagem. Segundo os serviços secretos britânicos, Ferraz acabou por confessar essas ligações, bem como o facto de ter passado informações sobre a atividade naval na Terra Nova.

No entanto, a notícia da chegada de Gastão Ferraz a Lisboa, publicada do Diário de Notícias de 17 de setembro de 1945, referia que o radiotelegrafista disse nada se ter provado. Deixou Londres num avião da KLM, juntamente com outros três portugueses, todos os quatro detidos num campo de concentração em Inglaterra. Os outros três eram acusados de transporte de correspondência clandestina.

A sua detenção causou problemas às tropas do Eixo, mas também ao governo português, que proclamava a sua neutralidade perante o conflito. Explica José António Barreiros: "O caso colocou complexos problemas diplomáticos devido à neutralidade portuguesa e à proteção de que gozava a frota bacalhoeira portuguesa. Ademais, os ingleses tiveram que ocultar a fonte de informação que levou à sua localização, a quebra da cifra alemã, o mais bem guardado segredo da guerra. E não havia evidência material que provasse a sua conduta pois tivera o cuidado de se livrar do livro de código através do qual codificava as mensagens que enviava através do sistema radiotelegráfico do navio".

Para combater a Enigma Alan Turing inventou a Bomba, equipamento eletromecânico utilizado pelos criptologistas para a descodificação das mensagens secretas alemãs.

A Enigma foi inventada pelo engenheiro alemão Arthur Scherbius, que registou a patente em 1918. Inicialmente, era utilizada nas mensagens comerciais, acabando por usada para fins militares, nas comunicações terrestres e marítimas. Muito parecida a uma máquina de escrever, na configuração e no peso, foi evoluindo e teve vários modelos.

O primeiro navio-hospital Gil Eanes (onde Gastão Ferraz esteve) era um Lahneck, construído pelos alemães. Foi apreendido na sequência da entrada de Portugal na I Guerra Mundial e, posteriormente, adaptado a navio-hospital nos Países Baixos. Em 1927, zarpa para a Gronelândia e Terra Nova, para apoiar os portugueses da pesca do bacalhau. Em 1955, é substituído por uma nova embarcação, homónima, construída nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Este navio deixou de estar ativo em 1973 e está ancorado em Viana do Castelo com a função de espaço museológico e Pousada da Juventude.

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