Como a máfia do tráfico de droga da Córsega foi travada em Portugal
É um homem de 44 anos, solteiro, de Ajaccio, capital da ilha da Córsega, que está a ser julgado em Lisboa por sequestro, coação agravada e tráfico de droga, apesar de nenhum estupefaciente ter sido apreendido. Em julho do ano passado, foi detido em alto mar pela Unidade de Contra-Terrorismo da PJ, após o veleiro em que seguia com outro francês, sequestrado, ter sido abordado durante a madrugada por fuzileiros portugueses. Seguiam rumo à Martinica para comprar droga e a bordo havia 380 mil euros que seriam para a aquisição. Em França, este homem é suspeito de pertencer a associação criminosa e já foi pedida a sua extradição.
A detenção deste corso foi possível graças à comunicação entre as autoridades portuguesas e francesas em julho de 2018. Mas a história destes crimes começa antes. Em 2017, o proprietário do veleiro, também da Córsega, conheceu o homem que agora responde pelo seu sequestro. Este dizia que era negociante de barcos e pretendia importar embarcações para a ilha francesa. No final do ano, a vítima decidiu vender o veleiro que possuía e adquirir um outro.
Já em maio de 2018, com novo veleiro na sua posse, foi contactado pelo arguido, por telefone, e a conversa culminou com uma proposta de negócio - devia tripular o referido veleiro até à ilha da Martinica, nas Caraíbas, e aguardar pelas suas instruções. Diz o Ministério Público que "na verdade, o arguido tinha arquitetado um plano que se traduzia em carregar o aludido veleiro com produtos estupefacientes na Martinica e transportá-los para a Córsega, sem o conhecimento do ofendido".
Dias depois, houve mesmo um encontro cara a cara, com o alegado traficante a fazer-se acompanhar por indivíduo conhecido por Armand. "Entregou ao ofendido um saco, que continha a quantia de 380 mil euros e um telemóvel, ordenando-lhe que o contactasse com esse aparelho quando estivesse perto da ilha da Martinica", refere o despacho de acusação. O dono do veleiro, sem aparentemente saber o que estava no interior do saco, recebeu ainda a instrução de esconder o saco com o dinheiro na embarcação e ainda ficou nas mãos com um envelope com sete mil euros, dinheiro que se destinava a cobrir as despesas da viagem.
O homem saiu da Córsega no veleiro, com o saco colocado no painel de costas de um sofá. Quando estava a navegar, apercebeu-se do conteúdo. Ao ver tal soma de dinheiro, compreendeu que havia um provável negócio ilegal e decidiu não seguir a rota prevista. Rumou em direção a Gijon, nas Astúrias, onde ficou cinco dias. Depois seguiu no barco para a Corunha. Foi nesta cidade galega que telefonou ao alegado traficante e, como pretexto de não viajar para a Martinica, disse-lhe que tinha uma avaria no piloto automático do veleiro.
A resposta do outro lado não foi simpática. O arguido disse que tinha mesmo de prosseguir a viagem para a Martinica e o velejador, sem dar conhecimento ao traficante, seguiu no veleiro até ao Porto de Leixões onde deu entrada no dia 26 de junho. Colocou o passaporte, os documentos do barco e os pertences num cacifo numa estação ferroviária do Porto, antes de telefonar de novo ao suspeito. Comunicou-lhe então que tinha sido vítima de roubo e ficara sem documentos.
"O arguido perguntou ao ofendido se com o 'papel' estava tudo bem, referindo-se à quantia monetária escondida no veleiro e disse-lhe: 'não te mexas de onde estás, dá-me a tua localização precisa, que vou imediatamente ter contigo'".Terminou anunciando que se iria juntar a ele dentro de dois ou três dias e que "não pensasse em fugir, porque sabiam onde estava a sua família".
Já tinha passado quase um mês de paragem em Leixões quando, a 24 de julho, o alegado traficante viajou de Frankfurt para o Porto. Aterrou às 23.00 e uma hora depois estava no Porto de Leixões onde se encontrou com a vítima. Sem rodeios, ameaçou-o. Disse-lhe que a viagem para a Martinica era mesmo para ser feita "custe o que custar" ou "haveria consequências". Em tom sério, diz o MP, exigiu que não dissesse nada a uma sua amiga e para "cortar com ela de imediato", caso contrário "enviavam alguém para a cortar em dois" e que "sabia bem onde é que os seus pais viviam e que também iriam enviar alguém para tratar deles".
Após esta conversa e antes de partirem, o dono do barco conseguiu contactar telefonicamente um amigo a quem informou de toda a situação. Nesse dia a polícia judiciária francesa foi informada e contactou a congénere portuguesa. Sem saber disto, o arguido ordenou que seguissem viagem. "No dia 26.07.2018, pelas 08h30m, o ofendido, apavorado, zarpou de Leixões, na aludida embarcação, nela transportando o arguido", indica a acusação. Durante a viagem repetiu as ameaças sobre os familiares e amigos.
Dois dias depois, as autoridades portuguesas já tinham o barco monitorizado, já que, pelas 13.05 de 27 de julho de 2018, a embarcação foi localizada pela Força Aérea em pleno ato de navegação em direção à Madeira. No dia seguinte, a PJ, com o apoio das Marinha e da Força Aérea, decidiu abordar a embarcação que seguia com todos os sistemas de comunicação desligados. No dia 28 de julho, eram 04.16 da madrugada quando os fuzileiros entraram no barco, sendo seguidos por elementos da PJ. A abordagem silenciosa e rápida não permitiu qualquer reação. No interior do veleiro, a PJ encontrou o saco com a quantia de 380 mil euros, no painel das costas do sofá, uma bolsa com o passaporte e a carta de condução do arguido, 30 mil pesos colombianos, e mais cinco mil euros, além de um computador portátil da marca Apple e seis telemóveis, de diversas marcas. Estes equipamentos, acusa o MP, "destinavam-se aos contactos entre o arguido e as pessoas que iriam fornecer-lhe produtos estupefacientes".
O alegado traficante "atuou, também com o fito concretizado de manter o ofendido no interior da embarcação e de lhe cercear a sua autonomia de deslocação, sabendo que o fazia sem a autorização e contra a vontade deste". A vítima estava de tal forma assustada que só ao fim de algumas horas, e quando o arguido já estava detido e longe da vista, é que ficou convencida que estava a salvo, com a polícia portuguesa a garantir que estava em contacto as autoridades francesas.
Por estes factos descritos, o suposto elemento da organização criminosa está acusado e responde em julgamento no Juízo Central Criminal de Lisboa por um crime de tráfico de estupefacientes, um crime de sequestro e outro de coação agravada. Já se realizou uma audiência e está agendada uma segunda em que o arguido continuará a ser ouvido e prestarão testemunho os inspetores da PJ. A vítima não vem ao julgamento já que foi ouvida pela memória futura, após a detenção do suspeito, em julho do ano passado.
Após a detenção em Portugal, as autoridades francesas pediram a extradição do homem indicando que já se encontrava, desde 2016, sob investigação em Bastia, na Córsega, por "factos integradores da prática de crime de participação numa organização criminosa com vista à prática de crimes de importação de estupefacientes, de coação e sequestro cometidos em bando". Crimes que em França podem valer penas de prisão de 10 e 30 anos, respetivamente.
Como o indivíduo se encontrava em prisão preventiva em Portugal e opôs-se à entrega às autoridades francesas, o Tribunal da Relação de Lisboa analisou em janeiro passado o pedido de extradição. Acabou por negar no que se refere aos factos deste inquérito português, mas deferiu o pedido de forma parcial, isto é, o homem deve ser julgado em Portugal mas poderá ser extraditado temporariamente para ser interrogado em França caso isso não prejudique a ação penal em Portugal.
Em França, o corso é também investigado por "factos ilícitos ocorridos em datas e locais distintos" dos agora em julgamento em Lisboa. De resto, em Leixões, além do arguido terão estado dois espanhóis, segundo relatou a vítima ao seu amigo em França quando pediu ajuda. Além disso a polícia francesa sabe que o alegado traficante tinha estado na Colômbia dias antes de viajar para o Porto, além de outras ligações ao mundo do tráfico de droga.