Baleizão. Aldeia com história e muitos imigrantes abandonados e com fome

Com a impossibilidade de se deslocarem para outros locais em busca de trabalho, pelo menos dois mil imigrantes, na sua maioria hindustânicos, ficaram retidos no interior do Alentejo, após o final da campanha de apanha da azeitona.
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São trabalhadores indiferenciados que foram abandonados pelos engajadores ou que estão nas mãos de redes ilegais de contratação de mão-de-obra. Uma comunidade invisível, que passa à margem das estatísticas e das entidades oficiais, que sobrevive sob o lema do medo. E da fome.

Passada a maré viva da apanha da azeitona, onde, segundo um estudo encomendado pelos grandes produtores do setor, cerca de 32 mil trabalhadores agrícolas indiferenciados rumaram às plantações do Alqueva, são agora percetíveis os "destroços" que a gigantesca vaga migratória abandonou nas aldeias e montes do Alentejo. Ninguém sabe ao certo quantos são os imigrantes, na sua grande maioria asiáticos, que ficaram para trás. Embora as associações locais de apoio social estimem que possam ser mais de dois mil. Todos eles com uma história comum para contar. E cujo argumento passa invariavelmente pela extorsão, pelo medo e pela fome extrema.

O exemplo é o de Baleizão, pequena localidade do concelho de Beja, mas o foco poderia estar a incidir sobre qualquer uma de entre as dezenas de aldeias que na última década se viram rodeadas pelas novas culturas intensivas fomentadas pela água do Alqueva. Porém, estamos em Baleizão, não sem alguma ironia histórica.

Terra emblemática das lutas rurais no sul do País durante o Estado Novo e a denominada "campanha do trigo", cujo símbolo de maior relevo é Catarina Eufémia, Baleizão, passados 40 anos sobre a Reforma Agrária, voltou a ser um dos palcos "onde a degradação das relações laborais na agricultura tomou proporções intoleráveis". As palavras são de Alberto Matos. E, com elas, este dirigente da Associação Solidariedade Imigrante (Solim) diz pretender "denunciar uma realidade que salta aos olhos de todos, mas que vai escapando às autoridades competentes".

A "realidade" de que fala Alberto Matos prende-se "com o tipo de contratação de mão-de-obra que é feito nos campos de Alqueva". Fortemente dependente de "trabalho braçal" durante a colheita, a cultura do olival absorve largos milhares de trabalhadores entre os meses de outubro e janeiro. "Gente que, em boa parte, chega através de empresas de trabalho temporário de cariz mafioso e que, agora, foi largada à sua sorte", conclui o ativista da Solim.

Num ano dito "normal", estes trabalhadores indiferenciados, finda a campanha da azeitona, partem para outras paragens, nomeadamente para as regiões frutícolas do litoral alentejano e da Andaluzia. Mas com as medidas de confinamento e de restrição da mobilidade impostas pelo Estado de Emergência, muitos deles acabaram por ficar retidos no interior do Alentejo. Sem rendimentos, abandonados pelos engajadores, recolhidos em casebres sobrelotados e insalubres, com grandes carências alimentares. "São pessoas que vivem com muitas necessidades e num absoluto clima de medo", garante João Pedro Cascalheira, que preside do Centro Social Nossa senhora da Graça, em Baleizão.

Tudo bons patrões

Traz um boné com as cores portuguesas, Lakhwinder Singh, como se pretendesse assim demonstrar o seu sentimento de pertença ao país onde chegou há 10 anos. Conseguiu carregar a bateria do telemóvel e anda sozinho pela aldeia em busca de uma rede sem fios onde se possa ligar aos seus pelo WhatsApp. O sobrenome não engana, Singh. O tal patronímico que é dado aos seguidores do sikhismo e que foi imposto como remédio contra a estruturação da sociedade indiana em castas. "A minha família ainda está lá toda, no Punjab, e eu é que lhes mandava algum dinheiro para se irem aguentando", conta.

Pelo modo imperfeito como conjuga o verbo "mandar" percebe-se de imediato que as coisas não lhe estão a correr em absoluta "perfeição". O patrão de Lakhwinder Singh, um dos muitos engajadores indianos de mão-de-obra indiferenciada, desapareceu há mais de três meses. "É um homem muito bom, mesmo sem haver trabalho, ainda é ele que paga a renda da casa. É um homem muito, muito bom", repete vezes sem conta.

Mas o que Lakhwinder talvez não saiba é que o seu "bom patrão", além de não lhe pagar qualquer remuneração desde janeiro, também deixou de enviar ao senhorio os vencimentos da renda e que se ainda tem uma cama para dormir é porque os despejos foram proibidos ao abrigo do Estado de Emergência. E também talvez não saiba que o seu caso configura uma situação suscetível de recurso ao Fundo de Desemprego. "Não tenho dinheiro para comprar comida. Ao fim destes anos todos, tenho de pedir ajuda à minha família lá na Índia. Tenho vergonha de dizer isto, mas é o que se passa. Eles agora é que me mandam algum dinheiro", lamenta-se.

Lakhwinder Singh foi um dos muitos trabalhadores estrangeiros apanhados pelas medidas de confinamento ao abrigo da pandemia do coronavírus. Sem possibilidade de se deslocar, ficou retido numa região onde agora as necessidades laborais pura e simplesmente não existem. "Mas sabe por que razão não me quero mesmo ir embora? É porque sou daqui. É aqui que eu sinto que pertenço. É aqui que eu quero estar. Mesmo que agora as condições não sejam as melhores".

Dizer que as condições em que vive Lakhwinder "não são as melhores" é um eufemismo a toda a prova. A casa, sem qualquer janela para o exterior, tem dois quartos minúsculos, ao fundo de um pequeno corredor, em cujas laterais estão encostados dois colchões para o que der e vier. As paredes das alcovas estão negras de sarro. E a atmosfera, onde o ar puro não entra, parece coada pela respiração e pelos odores dos 17 homens adultos que ali pernoitam. Há uma casa de banho, que todos partilham. Assim como uma cozinha, esta bastante ampla e estranhamente arrumada.

É, de facto, um cenário inesperado. E o imprevisível nem está tanto no facto de nove pessoas partilharem um quarto minúsculo e oito, o quarto sobrante. Está no arrumo da cozinha. Onde não há cadeiras, de todo, nem os tachos estão em amotinação, como seria espetável numa cozinha frequentada por 17 homens. Também não há panelas sobre os fogões. A única coisa comestível que ali se consegue observar são os papos-secos duros que alguém terá deixado à porta da casa, dentro de um saco de plástico. Entretanto, um dos homens joga a mão ao bolso e mostra a palma cheia de moedas de cêntimos. "Foi o que conseguimos juntar hoje, entre todos. Vamos ver o que conseguimos comprar com isto", riu-se da própria desgraça.

Um padre na mercearia

Não será fácil imaginar o que terá sido o jantar daquela noite de 30 de abril. Mas talvez António Alexandre Hilário, que há largos anos atende a clientela do Minimercado Machado, possa ajudar: "Estes moços vivem numa crise que não tem explicação. Há meses e meses que não recebem. Antes, compravam coisas boas para comerem. Agora, o que levam daqui é um pacote de arroz, uma cebola, uma batata, às vezes uma couve." É a ementa possível para quem apenas dispõe de um punhado de cêntimos.

Nem a fome, nem a própria existência destes guetos de imigrantes costumam figurar nas estatísticas ou nos relatórios oficiais. Só em Baleizão, no dizer de João Pedro Cascalheira, existirão "centenas de casos, isto para nem falar nos montes isolados, aqui ao redor, onde são postos num mundo à parte, que nos é completamente vedado". Sandra Bagulho, que é a assistente social no terreno, partilha da mesma ideia e lamenta o facto de "estas comunidades não pedirem apoio porque estão muito vulneráveis e são manipuladas pelos supostos patrões. O medo está fortemente instalado".

E, mesmo aqueles que ainda recebem alguma coisa, vivem numa espécie de "colete de forças" imposto pelos engajadores. "Eles têm de andar bem-comportados para serem chamados para trabalhar, caso contrário o patrão deixa-os em casa", refere Alberto Matos. A chantagem é a prática comum destas empresas de prestação de serviços no setor agrícola. Um esquema que passa pela angariação de um número de trabalhadores muito superior às necessidades efetivas, que são amontoados em casas sobrelotadas, sem qualquer tipo de privacidade e de salubridade, e que são escolhidos ao dia para determinadas tarefas. "Assim, estão sempre na dependência dos chefes e dos seus humores", diz Silvestre Troncão, presidente da Junta de Freguesia de Baleizão: "Isto é trabalho escravo. Uns vão trabalhar, outros ficam em casa... têm de ser obedientes a quem lhes angaria o trabalho".

É o caso Akash Singh. Não, embora tenha o mesmo nome, não é a grande estrela do críquete indiano. É "apenas" um "padre", como o próprio se autointitula, que fez todos os seus estudos religiosos no Harmandir Sahib, o grande Templo Dourado da religião sikh, e que há cerca de um ano veio parar aos olivais do Alqueva. "O patrão é muito bom", já sabemos, e "este mês de abril até me deu 11 dias de trabalho", declara com contentamento. Tanta generosidade, ter-lhe-á rendido qualquer coisa como 300 euros, antes de lhe ser descontado o alojamento, que costuma andar na ordem dos 120 euros por cama. "Não é muito", reconhece, "mas é bom. As coisas na Índia, se já estavam mal antes do coronavírus, agora estão péssimas. Aqui é muito melhor".

Para confirmar as credências religiosas de Akash Singh, um companheiro que não foi possível assentar o nome em função do seu sotaque altamente cerrado, exibia pelo Minimercado Machado um vídeo, com banda sonora em altos berros, que teve o efeito de pôr um sorriso na face de todos os presentes. Apesar de apenas ter trabalhado oito dias em abril, o homem mostrava grande orgulho em estar ali com o "padre", "a pessoa que trouxe a fé" para Baleizão. Não deixa de ser curioso que numa das regiões com menos crentes na Europa, onde os homens ainda têm alguma reticência em entrar numa igreja, mesmo em casos de extrema solenidade, um "padre" seja assim tão celebrado. Sinal dos tempos.

Ele é mais é críquete

De facto, tudo mudou nas aldeias do Alentejo na última década com o incremento da agricultura intensiva, nomeadamente o olival, em Alqueva. Foi a propriedade da terra, foi a paisagem, mas foi, sobretudo, o tecido social. Desde a mecanização das culturas cerealíferas, na década de 1940, que a curva demográfica não para de decair. No caso concreto de Baleizão, o quadro censitário de 2011 expunha uma população a rondar os 900 habitantes. Números que, nos últimos tempos, "terão, pelo menos, duplicado", assegura João Pedro Cascalheira, "hoje, não há uma casa fechada, está tudo arrendado às empresas que contratam imigrantes".

Nas aldeias, os turbantes misturam-se com os chapeirões e com os lenços negros que algumas mulheres ainda lançam por cima dos cabelos. E o desporto oficial, uma vez que deixou de haver jovens em quantidade suficiente para formar equipas de futebol, passou a ser o críquete. "Apesar de tudo o que se está a passar", constata António Alexandre Hilário, "a verdade é que esta gente veio dar um outro impulso aqui à aldeia. Isto estava morto, ou quase. Tivemos de empregar mais uma pessoa aqui na mercearia e até começamos a vender coisas que eu nunca na minha vida tinha ouvido falar". Como por exemplo? "Gengibre"!

Que é precisamente um dos aromas dominantes na casa que serve de "quartel-general" a uma das empresas de trabalho temporário em Baleizão, esta de capitais portugueses. Qualquer semelhança com os casebres coletivos que proliferam pela aldeia é puro insulto. À porta da casa, um todo-o-terreno de alta cilindrada deixa antever o estatuto dos seus habitantes. Lá dentro, dois homens imaculadamente vestidos e de uma simpatia extrema, tagarelam. Amrat Raj Singh, um valente homenzarrão, come chamuças à descrição. O outro, Sumant Kumar Roy, vagueia entre a papelada do escritório improvisado no hall de entrada.

É Sumant quem lança a conversa: "Não somos patrões, somos os supervisores de 110 homens que trabalham na plantação de novos olivais". Entre os quais estão o "padre" e o amigo. "Como eles não falam português", ajuda Amrat a arranhar a língua de Camões, "nós tratamos de tudo". O que este "supervisor" ainda não conseguiu tratar foi de arranjar elementos suficientes para organizar uma equipa de voleibol. "É o meu desporto favorito", informa apontado para as três bolas que tem alinhadas numa estante, "mas não há ninguém para jogar". Até nisto, as diferenças são gritantes.

Apesar de ambos garantirem que "na empresa tudo está dentro da lei" com a contratação de pessoal, Alberto Matos garante que "este modelo de trabalho é altamente precário, ilegal e lesivo para os trabalhadores". Uma ideia que é partilhada por Paulo Torres. Para este inspetor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, há situações que neste momento estão a ser investigadas criminalmente pelos serviços e elas acontecem "principalmente quando existem sub-contratadores que alojam trabalhadores em péssimas condições". A verdade é que raramente estas situações são denunciadas. "E a explicação é simples", assegura José Lúcio, juiz presidente do Tribunal de Comarca de Beja, "esses trabalhadores não se queixam. Se estão mal, vão-se embora... se puderem. Mas se não puderem ir, enquanto cá estão ficam calados".

Paulo Torres afirma, por seu turno, que quando os trabalhadores rurais são contratados diretamente pelas próprias empresas agrícolas, sem intermediação, são-lhes fornecidas, regra geral, "condições condignas". No entanto, essa não é a prática comum em Alqueva. É o próprio presidente da Olivum, Associação de Olivicultores do Sul, Pedro Lopes, que esclarece que "é conhecida uma grande falta de mão-de-obra local, pelo que os produtores são obrigados a recorrer a prestadores de serviços exteriores para suplantar as necessidades".

E é precisamente neste desligamento, neste hiato, entre quem necessita da mão-de-obra e quem está disponível para trabalhar que "prolifera a ilegalidade e a precariedade", conforme refere Alberto Matos. O que, em casos de situação de crise, como a atual, leva a "um aumento significativo de pedidos de ajuda, sobretudo alimentar, uma vez que estes migrantes ficaram sem trabalho e não estão a conseguir fazer face à sua subsistência", informa Teresa Martins, coordenadora do setor das Migrações da Caritas de Beja. Ainda que tal os encha de embaraço e de vergonha. Tal como acontece com Lakhwinder Singh: "mas a fome é a fome".

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