Armadores pararam os barcos. "Com estas condições ninguém quer ir para o mar"
Manuel Marques, de 40 anos, pescador desde os 12, nunca assistiu a tempos tão difíceis para a comunidade piscatória. Das condições de trabalho à falta de mão-de-obra, passando pelas multas que nos últimos meses têm assolado embarcações, exercer esta profissão atualmente é "viver com enormes dificuldades". É um dos 300 armadores, entre a zona de Aveiro e Viana do Castelo, que esta quinta-feira estão a fazer uma paralisação em prol dos seus direitos. E um dos 70 concentrados esta manhã no porto de pesca da Póvoa de Varzim, uma das maiores comunidades piscatórias do país.
As centenas de armadores portugueses manifestam-se pelos mesmos motivos. Pedem um subsídio para a paragem biológica na pesca - o período em que não há determinadas espécies no mar para pescar -, até agora só disponível para a pesca de sardinha. Também medidas de apoio para a "enorme falta de mão-de-obra". "Durante os últimos anos, recorremos à contratação de indonésios, mas mesmo indonésios já é difícil conseguir. E demora oito meses a recrutar um homem. Um barco não pode ficar oito meses parado à espera", diz Manuel Marques, em entrevista ao DN. Garante que, na Póvoa de Varzim, onde opera, há "barcos que precisam de dez pessoas para trabalhar e estão a trabalhar com cinco".
Um cenário justificado por uma "degradação natural do setor", explica Rui Rodrigues, fiscalista e economista, que esta quinta-feira também se apresentou no porto de pesca da Póvoa de Varzim em representação dos pescadores e armadores. "Há menos peixe, há uma desvalorização do peixe - compra-se as mesmas quantidades por um valor muito inferior (às vezes, a 9 cêntimos) -, e menos pessoal para trabalhar", conta.
Mas estes armadores reivindicam, acima de tudo, uma regulamentação na venda do peixe. Rui Rodrigues conta que, "nos últimos meses, tem acontecido uma série de inspeções" na comunidade piscatória da Póvoa de Varzim, que já levaram à aplicação de 30 multas, no valor de milhares de euros.
"As inspeções são sempre meritórias, no sentido em que toda a atividade deve passar por elas. O que está aqui em causa é a ideia daquilo que faz a riqueza dos pescadores", começa por explicar. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) concluiu que, neste setor, "a riqueza tem sido superior às despesas que os barcos deles fazem, ao longo dos anos". Isto "porque se declara um IRS de determinado valor, mas depois há outras despesas - que resultam, muitas vezes, de um passado de informalidade no setor: uma carrinha que sai com peixe que não está declarada, a venda a preços mais elevados na lota".
O pescador-armador Manuel Marques garante que a questão de irregularidade nos preços acontece por uma questão de garantias. "De há uns anos para cá, perdemos a chamada 'retirada do peixe': quando o peixe ia a leilão, baixava até a um mínimo, era retirado para fora do mercado, dado a instituições e o governo garantia-nos esse mínimo. Quando isto acabou, criamos contratos para tentar equilibrar o preço, para que nunca baixasse de um determinado valor. Queremos regularizar isto, não deixar que uma venda possa chegar a zero", diz.
E o presidente da Apropesca, organização de produtores da pesca artesanal, garante que o que acontece nos leilões é "a forma como o mercado funciona e sempre funcionou". Carlos Cruz lança um exemplo: "A pesca do cerco começa às 7:00 da manhã a vender a leilão um cabaz de sardinha, com 22,5 quilos, a 100 euros. Passados 15 minutos, o mesmo peixe e os mesmos quilos estão a 50 euros. E passada meia hora está a 20 euros. Isto é normal. E se houver pouco peixe e, naquele dia, o tempo não estava para todos os barcos, podem vender logo os 22,5 quilos de sardinha a 100 euros. Porque o mercado é assim mesmo."
Até agora, nunca trouxe problemas de maior aos trabalhadores do setor. Mas, desde maio, 30 armadores já foram sancionados neste sentido.
"Soubemos que a presunção dos inspetores que vieram para o terreno é de que estamos a ganhar por fora na venda do peixe, que em vez de estarmos a vender a seis euros, como está estipulado nos nossos contratos, estamos a vender a oito ou a nove euros ao comprador do cabaz", explica Carlos Cruz. "Daquelas irregularidades que eles dizem ter detetado, já temos aqui multas de 200 e tal mil euros, sem qualquer prova de que elas existam" por parte da AT, remata.
Nos passados dias 14 de outubro e 5 de novembro, a Apropesca esteve presente em reuniões com a Autoridade Tributária, a Direção Geral do Registos e do Notariado (DGRN), a Docapesca e outras associações piscatórias, como a Vianapesca. Têm sido "reuniões pacíficas" garante o presidente da Apropesca, nas quais a AT "pediu mais tempo para estudar os casos".
"Mas os armadores estão assustados, não têm dinheiro para garantir a multa, porque nem a trabalhar uma vida inteira conseguem este dinheiro. Com estas condições ninguém quer ir para o mar", frisa. Carlos Cruz tem a certeza de que ganhariam em tribunal, "mas esta gente não pode estar a gastar dinheiro em advogados".
O economista Rui Rodrigues diz que a entidade financeira escolheu "extrapolar meia dúzia de casos" e culpabilizar todo o setor. "Tenho isso em relatórios: arguímos que aquela pessoa sempre fez tudo dentro da lei, mas eles dizem que estão convictos que não. Por um ter feito, acreditam que todos fazem, sem apresentar provas. Aplicam multas com base em cálculos, através de uma média do mercado do leilão."
O DN tentou contactar a Autoridade Tributária e Aduaneira, mas sem sucesso.