Opinião. Pobre carnaval lisboeta
@ M PHOTO

Opinião. Pobre carnaval lisboeta

"Falo deste tema com a propriedade de quem ajudou a construir o Carnaval de Lisboa. Assista ao programa Bem-vindos, da RTP África, de 12 de Fevereiro de 2018"
Publicado a
Atualizado a

Texto: Diogo Batalha*

Na queda de braço entre o governo português e os blocos de carnaval, quem fica realmente espremido é o trabalhador imigrante. 

De um lado, o receio de não conseguir exercer o seu direito ao lazer. Do outro, os blocos que dizem lutar por este direito, mas que acabam recorrendo ao bolso dos imigrantes para colocar o carnaval de pé. Com isto, quem sofre é quem deveria ser o coração da festa: os trabalhadores imigrantes que realmente fazem o carnaval.

Falo deste tema com a propriedade de quem ajudou a construir o Carnaval de Lisboa. Assista ao programa Bem-vindos, da RTP África, de 12 de Fevereiro de 2018, e verá que eu já alertava sobre os desafios de organizar um bloco de carnaval em Lisboa. Na época, a junta de freguesia de Santa Maria Maior tratava a criação de um pequeno bloco como se fosse um megaevento, exigindo taxas e burocracias que mais pareciam destinadas a um Rock in Rio. 

E aqui faço um parêntese: hoje, o próprio Rock in Rio é isento dessas taxas pela Câmara Municipal de Lisboa (CML). Enquanto isso, os blocos de carnaval, que nascem da comunidade, são sobrecarregados com custos. Para mim, essa incoerência da CML revela uma prioridade clara: grandes eventos que geram publicidade para a cidade, em detrimento da cultura de rua. Fecho o parêntese.

E, de lá para cá, o pequeno carnaval de Lisboa cresceu à base de muita mídia e poucos recibos. Em 2018, havia cerca de 40 mil imigrantes brasileiros em Lisboa. Hoje, estima-se que sejamos 77 mil. Por isso, há blocos que prometem levar 20 mil pessoas às ruas vão vender milhares de bilhetes para as suas festas privadas. 

Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!

Entretanto, o problema das licenças de utilização de espaço público persiste. Para cobrir os custos, os grupos carnavalescos repassaram o valor aos foliões através de crowdfunding. O imigrante, que já sofre com o custo de vista, recebeu mais um, de certa forma.

Pode haver quem diga que as pessoas que participam nos blocos não querem se profissionalizar. Que querem apenas se divertir. Mas, a meu ver, se os blocos cobram todos esses valores claramente têm interesses financeiros, e não está ali apenas pela diversão. 

Se há dinheiro envolvido, se há cobranças e lucros, os trabalhadores devem ser remunerados dignamente. Os instrumentos, barracões e adereços tem custos, é verdade. Mas se eles nascem fruto do trabalho de quem faz o carnaval, também é justo que estas pessoas sejam contempladas. Acredito que o amor à cultura não pode ser usado como desculpa para sacrificar ainda mais o orçamento de quem já enfrenta dificuldades financeiras no dia a dia. 

A ideia de estar indo contra um sistema é tentadora. Mas a questão não está apenas na opressão da elite política portuguesa que é contra a celebração na rua. Está também neste modelo de negócios onde falta a responsabilização dos organizadores e do governo com quem realmente constrói a festa.

Não quero ser o estraga-prazeres da folia. Até porque, gosto de celebrar a festa tanto quanto qualquer um. Criticar e não gostar, são coisas diferentes, afinal. Mas acredito que é possível fazer diferente de como é feito hoje. 

Um carnaval onde a CML entenda a importância da festa de rua para a cidade. Onde os organizadores dos blocos garantam pagamentos justos dos direitos dos trabalhadores. Onde haja um sistema de prestação de contas transparente que realmente inclua a comunidade. 

Aí sim, veríamos cada paralelepípedo da velha cidade se arrepiar. E o carnaval de Lisboa seria realmente uma forma de resistência. Pois deixaria de reproduzir este sistema em sua pior fantasia: que terceiriza os custos, cobra taxas dos trabalhadores e lucra sem prestar contas claramente. 

O carnaval não pode ser só mais um negócio disfarçado de alegria, ao melhor estilo 'Ei, você aí! Me dá dinheiro aí!”. Ele pode e deve ser uma festa de todos. Mas só vale a pena colocar o bloco na rua quando todas as pessoas forem remuneradas dignamente. Pois, na quarta-feira, sempre desce o pano e na quinta feita sobram as contas para pagar.

*Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.

Opinião. Pobre carnaval lisboeta
Opinião. Bloco de Rua Não Tem Abadá
Opinião. Pobre carnaval lisboeta
Opinião. Ser estrangeiro não é o mesmo que ser imigrante

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt