Texto: Helenara Braga Avancini*Sou advogada, mulher, imigrante e mãe. A partir destas quatro dimensões que se cruzam, se reforçam e moldam a minha forma de ver o país, testemunho diariamente algo que raramente chega com nitidez ao debate público: a crise profunda das instituições administrativas em Portugal. Não se trata de um problema setorial, episódico ou fruto de “pressão migratória”. Trata-se de um colapso estrutural que atinge cidadãos, profissionais e funcionários públicos, e que o Estado parece incapaz de reconhecer ou enfrentar.Quem acompanha as notícias já escutou as promessas: novos portais, digitalização, modernização do atendimento, facilidade de agendamento. A realidade é outra. Na AIMA, nas Finanças, nas Conservatórias, no IMT e na Segurança Social, os serviços permanecem atolados em atrasos, com prazos imprevisíveis, sem atendimento presencial, sem respostas a emails, com telefones que ninguém atende e agendas que nunca abrem. No país real, a vida das pessoas depende de serviços que deixaram de funcionar.Recentemente, acompanhei um casal num atendimento da AIMA. A funcionária começou a chorar logo no início e assim permaneceu durante quase duas horas. A explicação foi curta e devastadora: “É a pressão.” Em outra situação, ao enviar processos para uma conservatória do interior, recebi um telefonema de um oficial que anunciou, sem rodeios, que “não faria o trabalho”, porque era o único funcionário disponível. Dias depois, chegou um ofício formal afirmando que seria “humanamente impossível” cumprir o serviço. Humanamente impossível: esta expressão tornou-se, tristemente, o retrato mais fiel da administração pública portuguesa.Os cidadãos conhecem esta realidade. Os imigrantes também. E os profissionais, como advogados, solicitadores, contabilistas, tentam navegar um sistema que, muitas vezes, simplesmente não responde. A consequência é previsível: quem precisa de ajuda recorre aos tribunais, e os tribunais, igualmente saturados, demoram meses para emitir uma simples notificação. A crise administrativa alimenta a crise judicial, que reforça a sensação de paralisia generalizada.Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!É evidente que o Estado tem o direito e o dever de desenvolver políticas migratórias sérias. É assim em qualquer democracia madura. O que não pode é transformar a política migratória numa cortina de fumo para esconder falhas internas. Nos últimos anos, tornou-se cômodo apontar a pressão dos imigrantes como causa dos atrasos, justificar reformas restritivas como “necessárias” e insinuar que o sistema não aguenta porque chegam demasiadas pessoas. Esta narrativa, além de injusta, é falsa. O que não aguenta é um aparelho administrativo subdimensionado, mal remunerado, envelhecido e há muito tempo abandonado por opções políticas sucessivas.Importa também sublinhar o que raramente é debatido: o Estado arrecada milhões em emolumentos, taxas e serviços administrativos. Milhões. Contudo, essa receita não se traduz em equipas reforçadas, salários dignos, formação adequada, condições de trabalho humanas ou modernização real. Não existe coerência entre o que o Estado cobra e o serviço que entrega. Não se trata de falta de dinheiro, trata-se de falta de prioridades claras.A crise das instituições é o resultado direto de decisões políticas e administrativas: congelamento de carreiras, ausência de concursos, desinvestimento continuado, reformas tecnicistas que prometem muito e entregam pouco, e uma dependência excessiva de portais que tentam substituir pessoas por sistemas frágeis que frequentemente falham. A máquina pública não precisa de mais plataformas, precisa de mais pessoas. E de melhores condições para as pessoas que já lá estão.A verdade é simples e desconfortável: todos sofrem. Os funcionários públicos, sobrecarregados e sem meios; os cidadãos, que não conseguem resolver questões básicas; os imigrantes, empurrados de guichê em guichê; os profissionais, impedidos de exercer plenamente o seu trabalho; e até o Judiciário, que se vê transformado na instância derradeira de quem não encontrou resposta em mais lado nenhum.Portugal precisa reconhecer que vive uma crise administrativa, não uma crise migratória. E precisa de assumir que restringir direitos não melhora serviços; apenas desvia atenções. O Estado deve responsabilizar-se pelo sistema que criou, pelas escolhas que fez e por ter permitido que o problema chegasse a este ponto. O caminho é outro: investimento humano, reorganização estrutural, transparência nos tempos de resposta, valorização dos funcionários e coragem política para enfrentar o que está à vista de todos.Nenhuma sociedade se desenvolve culpando quem chega ou varrendo problemas para debaixo do tapete. Desenvolvimento exige visão, responsabilidade e instituições que funcionem. Portugal merece isso. E todos nós, advogados, cidadãos, imigrantes, funcionários, merecemos ser tratados não como obstáculos, mas como parte essencial da comunidade que o Estado existe para servir.*Helenara Braga Avancini é advogada, está em Portugal desde 2013 e atua especialmente no Direito dos Estrangeiros e Imigração..O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..Opinião. O imigrante sofre sozinho? Os advogados também sofrem por políticas insanas que operam em Portugal.Opinião. Quando o imigrante fala a sociedade portuguesa desdenha. Quando o tribunal fala, o estado se cala