Vida woke, morte branca
Contou-me a minha amiga Sandra que, na abertura da exposição In this new picture your smile has been to war (“Nesta nova fotografia, o teu sorriso esteve na guerra”), de Gisela Casimiro, assistiu a um diálogo impressionante entre uma mãe e o seu filho, ainda em idade pré-escolar. Explicava a mulher, enquanto percorria as imagens da mostra - povoada, entre outros, de registos de várias manifestações anti-racistas -, que ainda hoje há pessoas que continuam a ser assassinadas apenas por serem negras.
Aconteceu com Bruno Candé, em Julho de 2020. Tinha sucedido com Alcindo Monteiro, em Junho de 1995. Voltou a repetir-se em Março deste ano com Ademir Araújo, e sabemos que vai continuar a acontecer, enquanto estes crimes forem tratados como algo circunstancial, e não como resultado de uma estrutura racialmente envenenada.
Candé, Alcindo e Ademir foram mortos por serem negros. Mas, quer isso dizer que depois ficaram brancos?
O questionamento, adaptado a partir da conversa captada naquela exposição - encerrada na semana passada -, tem tanto de pueril quanto de perturbador.
Imagino que, aos olhos ainda inocentes daquela criança, alguém assassinar uma pessoa apenas por ter uma pele mais escura é tão incompreensível e gratuito, que só a possibilidade absurda de uma mudança de cor lhe poderá dar algum sentido.
Encontro muita verdade nessa lógica infantil: se as pessoas negras são perseguidas até à morte por terem pele escura, talvez possam ficar brancas com a morte e encontrar aí alguma redenção.
Ao mesmo tempo, a prática historicamente enraizada de violentar corpos negros, assassinando-os, só pode carregar um desejo doentio de extermínio da negritude e branqueamento do mundo.
Bem sentidas as coisas, qualquer semelhança com as ideias que conduziram ao Holocausto não é pura coincidência. Mas, ao contrário do que aconteceu com os crimes cometidos contra as pessoas judias, globalmente reconhecidos, as matanças contra populações negras continuam por reconhecer.
A ignorância sobre o passado escravocrata e colonial explica o desligamento colectivo que se observa em relação ao seu impacto no presente.
Fruto de uma História que transformou pessoas negras em coisas, assistimos, ainda hoje, à reprodução das práticas que nos mercantilizaram. Reparem, por exemplo, no que acontece nos relvados: enquanto os futebolistas estão a super-produzir, são tolerados, mas basta evidenciarem o mais ínfimo sinal de humanidade - que é como quem diz, de erro - para deixarem de ter qualquer valor, e serem animalizados.
Não há um pingo de afeição pela pessoa, apenas uma estrutura bem oleada de exploração do corpo.
A longa tradição extractivista branca renova-se a cada época, agarrada a um jugo narrativo. Na Escravatura éramos destratados como seres sem alma; depois, a partir de pressupostos pseudocientíficos, fomos desumanizados como seres inferiores.
Hoje somos uma ameaça “woke”, termo que surgiu na comunidade negra dos EUA entre apelos à consciencialização e intervenção por justiça social, e que, entretanto, foi distorcido pela branquitude dos privilégios.
Fiéis à tradição, os brancos costumes apropriaram-se de mais essa criação negra e inventaram uma narrativa que protege benefícios adquiridos.
Foi assim que ser “woke” deixou de significar apenas ter consciência social e racial, e, a partir dela, confrontar opressões instaladas; e passou também a ser entendido como expressão de um movimento extremista, que prega a sua superioridade moral através de ideias progressistas que pretende impor aos outros.
É também por causa desta ficção narrativa que o racismo e o argumentário anti-imigração se propagam. Defender Direitos Humanos tornou-se “woke”. Lembrar que as vidas negras importam tornou-se “woke”. Recordar que todas as estatísticas desligam o fenómeno da criminalidade da imigração tornou-se “woke”. Combater ataques contra imigrantes tornou-se “woke”. Denunciar o racismo tornou-se “woke”.
A normalização das múltiplas exclusões e opressões que nos rodeiam, como resultado do comportamento do “outro”, está tão impregnada que quando Pedro Passos Coelho associou imigração a insegurança, depressa mobilizou um coro de apoiantes.
Não nos esqueçamos de que, na altura, ainda em campanha eleitoral, Luís Montenegro defendeu que as pessoas que vêm de fora “criam um sentimento, quando não são bem integradas, e esse sentimento tem de ser combatido, como é evidente”.
Dos discursos políticos às leituras populares e populistas, nos últimos dias, esse sentimento falou mais alto no Porto, quando um grupo racista invadiu uma casa habitada por imigrantes para as agredir.
O caso, já associado à extrema-direita, deveria chocar tudo e todos. Mas isso do choque, claro está, é “woke”.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.