União, alegria e disciplina na mensagem

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O Partido Democrata é uma grande tenda e tem tido, em diversas fases da sua história, uma grande dificuldade em fazer a ponte entre o centro moderado e institucional (de onde costumam partir os seus candidatos presidenciais vencedores: Bill Clinton, Barack Obama, Joe Biden) e a ala esquerda e mais radicalmente progressista (Bernie Sanders, Elizabeth Warren, Ocasio-Cortez).

Essa dificuldade aumentou com o agravar do tom “woke” de algumas correntes esquerdistas, que em temas como a Palestina ou os direitos das minorias sexuais têm tentado fazer o contraponto à força do polo radical e extremista no Partido Republicano.

Nas últimas três décadas, só dois líderes democratas conseguiram, verdadeiramente, fazer a pacificação dessas duas geografias políticas dentro do Partido Democrata: Bill Clinton nos anos 90 e Barack Obama entre o final da primeira década deste século e o início da segunda.

Hillary Clinton terá perdido a eleição de 2016 precisamente por ter falhado a construção dessa ponte entre o centro e a esquerda. Os 45% de Bernie Sanders sinalizaram a quebra de quase metade do partido – e, apesar do posterior apoio de Sanders a Hillary para a eleição geral, terá havido uns 10 a 15% de votantes de Bernie nas primárias que não votaram Hillary em novembro de 2016. 

A consequência faz parte da História: a eleição choque de Donald Trump. A Convenção de Chicago, que dominou as atenções da eleição presidencial norte-americana na última semana, foi totalmente pensada para que 2024 não seja uma repetição de 2016. 

União em torno de Kamala

Kamala Harris recebeu o endosso de todo o partido. 

Foi, literalmente, uma Convenção em estado de graça. Há um mês, a perceção geral era a de que seria uma grande confusão, com forte risco de divisões internas e contestação quanto a quem sairia nomeada. 

Não foi nada disso que aconteceu. 

Kamala tem o Partido Democrata na mão e capitalizou isso. Se a Convenção Republicana foi toda sobre Donald Trump, a Democrata mostrou uma diversidade de trunfos e várias estrelas que coexistem (três ex-presidentes, uma ex-candidata presidencial, três Primeiras Damas, uma ex-speaker, vários governadores presidenciáveis). 

Joe Biden fez, em jeito de despedida e passagem de testemunho, o caso pela defesa da Democracia, apontando Kamala como a candidata ideal neste momento histórico para travar o regresso de Donald Trump. “Ela será a Presidente de que todos se orgulharão. Será a Presidente para quem as nossas crianças podem olhar. Respeitada pelos líderes mundiais, porque ela já uma líder mundial. E será a Presidente que vai pôr um selo na América do futuro”. 

Três palavras-chave dominaram toda a Convenção: Democracia, Liberdade e Alegria. 
Em primeiro lugar, a defesa da Democracia: todos em Chicago apontaram esse como o grande desígnio. Biden passou a tocha a Kamala nessa defesa, necessidade de travar regresso Trump.

Bill Clinton foi mais longe: “Temos de ser duros”. E Tim Walz: “Vocês todo o tempo do mundo para dormir quando estiverem mortos. Agora é para trabalhar!”. 

Depois, a Liberdade. Tim Walz fez a definição: “Quando os republicanos usam a palavra ‘liberdade’, eles querem dizer ‘liberdade para o governo invadir o consultório do vosso médico’. Empresas livres para poluir o vosso ar e água e bancos com carta verde para explorar os seus clientes. Mas quando nós, democratas, falamos de Liberdade, falamos da liberdade para tornar melhor a vossa vida e a daqueles que amam. Liberdade para tomarem as vossas próprias decisões quanto à vossa saúde e liberdade para os vossos filhos irem para a escola sem se preocuparem em serem mortos a tiro nos corredores”.

E também a Alegria: os democratas reforçaram a mensagem que têm um caminho alegre e solar para a América, em contraponto com a “carnificina americana” de Trump e Vance. Não deixa de ser algum descolar da “busca pela alma da América”, de Biden 2020, que implicava sempre alguma dor e sacrifício.

A candidata apresenta-se à América

Harris apresentou-se à América no momento da aceitação. Tentou ligar-se aos indecisos. Falou muito da mãe, que a criou como mulher divorciada, imigrante e investigadora e que incitou as filhas a sonharem alto. 

Kamala passou com boa nota nesse seu primeiro grande exame a nível nacional. Fez um bom discurso, bem construído na forma e a destacar os pontos fortes que levaram a campanha Kamala a passar para a frente da corrida em menos de mês. Entregou a mensagem com lisura e sem falhas, ainda que sem grande capacidade de arrebatamento de multidões (os discursos dos Obama e partes do discurso Walz foram mais entusiasmantes). Barack Obama, no X, fez o resumo: “Ela mostrou o que sempre soube: que está preparada desde o Dia 1 para ser Presidente”.

A candidata democrata exortou: “Vamos escrever um novo capítulo, uma nova via para seguir em frente (A New Way Forward). Kamala escolheu estar do lado da mudança, não tanto da herança Biden. Posicionou-se como candidata do futuro, colocando Trump no passado, no risco de se voltar atrás. É, em parte, uma estratégia parecida com a reeleição Obama 2012, contra Romney. Kamala apresenta-se mais como “challenger”, colocando Trump quase como incumbente; tenta fazer desta eleição um referendo a Trump e não a Biden.

Num claro intuito de afastar receios de ser demasiado à esquerda, Kamala posicionou-se como a candidata da classe média. “É de onde eu venho”. Voltou a falar numa economia de oportunidades. Avisou que Trump se prepara para cortar impostos aos amigos bilionários e propõe-se a cortar, ela, os impostos aos 100 milhões de americanos com menos rendimentos.

Quis mostrar que está na tradição de centro-esquerda de anteriores candidatos presidenciais democratas e não demasiado à esquerda.

O primeiro grande aplauso que conseguiu arrancar foi quando prometeu, a propósito do 6 de janeiro de 2021: “Não vamos voltar atrás”. Teve um segundo grande aplauso quando falou do aborto. “Vários direitos fundamentais estarão em risco com Trump, como o acesso ao voto”.

Houve um terceiro grande aplauso quando acusou Trump de ser amigo de ditadores e gostar de ser um, exortando: “Na luta determinante entre liberdade e tirania eu sei onde estou e onde os EUA estarão”.

Sobre Israel e Gaza, conseguiu ultrapassar uma difícil quadratura do círculo: deixou claro que manterá via Biden de cessar-fogo, libertação reféns e defesa da segurança de Israel, mas lembrou os 10 meses de destruição de Gaza e falou no direito à autodeterminação da Palestina.

Quanto vale Kennedy?

A candidatura de Robert Kennedy Jr. esteve sempre envolta em contradições. Filho de um herói progressista do Partido Democrata, enveredou por uma agenda conspirativa, por vezes até lunática, baseada em desinformação e dados pouco fundamentados. O reconhecimento do nome de família levou-o a começar a concorrer pelos democratas, mas a incapacidade de se afirmar nas primárias de um partido que cedo mostrou estar apenas disposto a selar a nomeação de um segundo mandato Biden fez com que começasse uma candidatura independente. A impopularidade de Biden e Trump permitiu que tivesse caminho para passar dos 10%, roubando metade aos democratas e a outra metade aos republicanos. Mas quando emergiu Kamala, o balão de Kennedy esvaziou.Desde a Convenção Republicana que Trump tem vindo a cortejar Kennedy, com vista a uma possível desistência. Os problemas de financiamento da campanha Kennedy aceleraram o que já parecia inevitável: Kennedy apoia Trump.

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