Uma só solução: regressar à instrução!

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1. Não há mais dúvidas, o modelo de Ministério Público (MP) tal como foi concebido na Constituição (CRP), na sua primeira Lei Orgânica e no mais recente Estatuto (EMP) não é mais aceite pelas elites políticas e forenses que, alternadamente, atuam no poder e se empenham profissionalmente na jurisdição criminal.

Na mesma recusa juntam-se, ainda, os “lesados do MP”, que são muitos e com variadas e mais ou menos reais ou inventadas razões de queixa.

Para tal implosão de fé neste órgão constitucional, contribuíram, sem dúvida, alguns dos seus membros que sempre gostaram de agir nas margens incertas e arriscadas das interpretações doutrinárias e jurisprudenciais mais ousadas e menos no respeito seguro pelos pouco flexíveis direitos fundamentais, que lhes cumpre, especialmente, defender.

Foram eles, também, que, pela espetacularidade das suas intervenções - que não conseguiram ou, porventura, não quiseram filtrar - refletem hoje, para o bem e para o mal, a imagem mediática do MP.

Sendo uma minoria, cujos procedimentos, de inspiração mais policial do que judicial, grande parte de procuradores não partilha, são eles que que são apresentados, para o bem e para o mal, como imagem mediática do MP.

2. Depois de tudo que se passou recentemente, com a escandalosa divulgação pública de mais alguns importantes documentos processuais – assumida, de imediato e como dogma, como da responsabilidade objetiva do MP – pouco resta, agora, da, também, indispensável legitimidade comunitária, para que esta magistratura possa continuar, indiferente ao sucedido, a exercer as funções que a CRP e as leis lhe cometem.

Perderam, assim, porventura, oportunidade algumas boas sugestões de reforma do sistema feitas por um renomado advogado, que tem acompanhado o manifesto dos 50.

Repescando algumas ideias, já ensaiadas com êxito em outros lugares, e divulgadas nos textos de uns tantos procuradores mais velhos e informados - sem, contudo, os citar, para, através da revelação da origem, não comprometer a bondade e legitimidade de tais propostas – propunha-se ele, por essa via, salvar e reformar o que, entendia, dever ser corrigido.

3. Os últimos acontecimentos, sendo ou não da autoria do MP - mas isso não se discute, pois, como disse, é um dogma de fé – desgastaram gravemente a autoridade social e moral que permite a esta magistratura continuar a exercer as funções que a Constituição, o Estatuto e o Direito Europeu lhe atribuíram.

Constatado e confirmado o desvanecimento da legitimidade institucional e popular - que nenhum órgão do poder político quis, desta vez, sustentar - cabe, agora, aos deputados encontrar, na Assembleia da República, uma outra solução e, se possível, um outro titular mais fiável para assegurar a direção e exercício da ação penal.

Uma solução diferente e que respeite, na mesma medida, a independência funcional que a CRP e o Direito europeu exigem hoje do MP e exigirão amanhã de quem passar a exercer tais funções.

Não há, contudo, que puxar muito pela imaginação: a Constituição continua a prever uma “Instrução” atribuída aos juízes.

Só pode ser essa, portanto, a solução político-constitucional do problema.

Veremos, então, o que mudará e como, depois, se comportarão os que hoje rasgam vestes de indignação pela “conspiração” do MP.

Não nos esqueçamos, porém, que a decisão sobre as medidas mais graves e limitativas das liberdades – como por exemplo a interceção e controlo das comunicações realizadas e sua manutenção - são, já hoje, da competência de um juiz e não do MP.

4. Uma coisa são, porém, as responsabilidades do MP por esta crise, ou melhor, as dos que lhe emprestam a cara nos media; outra, não menos importante, nem menos grave, é a dos que, imprudentemente, tudo misturaram para, como um todo, desautorizar publicamente tal órgão constitucional.

Isto, mesmo sabendo que esta magistratura não se organiza nem atua como um corpo de soldadinhos de chumbo: afinal não se podem acusar os procuradores de insubordinados por não respeitarem a hierarquia e, ao mesmo tempo, afirmar que agem em conjunto e com fins perversos comuns.

De fora desta fronda desgovernada nos métodos e nos propósitos, cuja eficiência mediática e os respetivos resultados estão, contudo, à vista, demarcaram-se, porém, os autênticos líderes políticos do país.

Politicamente mais maduros e, porventura, mais conscientes do que, verdadeiramente, se pode estar a passar, não quiseram participar nesta desabrida e desassisada, mesmo que, em alguns casos, bem-intencionada iniciativa.

E, note-se, alguns deles teriam tantos ou mais motivos para o fazer do que muitos dos que nela se envolveram.

Será neles e na capacidade que os deputados da Assembleia da República tiverem para encontrar soluções novas e capazes de resguardar os valores que o Constituinte e o atual Direito penal europeu quiseram salvaguardar que reside a esperança de um povo que – estou certo – não consentirá, de novo, uma tutela política, explícita ou implícita, sobre o exercício da ação penal.

Uma ação penal que a CRP pretende, desde logo, dever ser regida pelo princípio da legalidade, de molde a garantir, de verdade, a igualdade dos cidadãos perante a lei.

5. Em suma, as responsabilidades negativas concorrentes dos que não acautelaram os direitos à sua guarda e a dos que de tais erros se quiseram politicamente aproveitar só podia ter conduzido a esta hecatombe institucional.

Os procuradores que, consciente ou inconscientemente, para isto contribuíram com indesculpável ligeireza de ânimo ou, pior ainda, com a pura inconsciência das crianças travessas, não podem, pois, rejubilar-se com os resultados obtidos.

O mundo é muito mais complicado e perigoso do que se deixa ver nos jogos de computador e nos filmes americanos de ação policial e espionagem.

Nada pior, com efeito, do que, desleixadamente, dotar os arrivistas de qualquer ordem e origem de uma doutrina, de um dogma e de um pau.

O resultado fatal está assegurado há séculos.

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