Uma leitura de portugal: um livro-problema

Publicado a
Atualizado a

Sem a história estamos fora do presente e, por isso, do futuro - a consciência histórica reconcilia-nos com nós próprios. Não como um tribunal ou um divã, mas com as possibilidades efectivas da transformação social. Para isso quisemos escrever este livro. Ser e estar no presente exige-nos confrontar o passado para perspectivar o futuro. E o ponto de partida para fazê-lo é este: qual é a história da formação social à qual se pertence? É preciso conhecer a própria história para ser parte dela como sujeitos.” (p.17).

Assim entramos neste poderoso livro de Raquel Varela e de Roberto Della Santa: autores do incómodo, posto que heterodoxo e por isso mesmo essencial livro Breve História de Portugal: a Era Contemporânea 1807-2020 e que a Bertrand, em boa e oportuna hora, publicou. O pensamento de Varela e de Della Santa - com o facto não despiciendo de este professor e investigador, por ser brasileiro e ter uma vasta experiência docente no seu país, ter uma perspetiva sólida sobre questões sociais que hoje se não podem pensar fora do recrudescimento das derivas totalitárias (com a Brasil a constituir um dos laboratórios do neo-fascismo) - não pode ser reduzido a uma simples cartilha socializante ou de teor esquerdista. Usar, para eventual ataque a um objecto de investigação sério e documentado tais armas de arremesso dirá mais de quem possa querer denegrir este livro e os seus autores, do que do labor que aqui se explana. É um livro que não deixa de dizer ao que vem e por que razões vem: “O leitor tem diante de si [um livro movido] a partir de três convicções dos autores: em primeiro lugar, todos os homens e mulheres são intelectuais, ainda que nem todos desempenhem a função de intelectual. O acto de pensar e de agir, de forma criativa e autónoma, está inscrito em todas as áreas da actividade humana, desde os fundamentos da linguagem à divisão do trabalho - e em todas as esferas relevantes da vida”. Duas outras convicções: a constatação de que o mundo do trabalho obedece à lógica da hierarquia: haver quem mande e quem obedeça, estar centrado em relações de poder: entre quem governa e é governado, assim se estrutura a realidade social. Brecht, o dramaturgo alemão (e força dos argumentos de autoridade blinda o argumentário de muitos capítulos deste volume), serve a Raquel Varela e a Roberto Della Santa como maná do discurso que procuram divulgar: são historiadores comprometidos com a res publica, têm para si que, como defendeu o autor de Mãe Coragem, a seguinte premissa: “muito tempo não é sempre”.

Trata-se de pensar Portugal a partir dum quadro mais vasto de movimentos sociais: das invasões francesas aos movimentos socialistas e à grande força do sindicalismo no século XIX, da Iª República ao 25 de Abril de 1974. FOTO: Arquivo / Diário de Notícias

De facto, se outra premissa, “Conhece-te a ti mesmo”, vinda de Sócrates, e que animou o pensamento de Gramsci, igualmente mobiliza a força de pensamento deste livro-problema sobre Portugal, isso fica a dever-se ao facto de os autores constatarem, na senda das várias heterodoxias e utopias da modernidade, que a concepção do mundo é uma construção imposta aos subordinados, aos humilhados e oprimidos desse mundo. O caso que importa estudar neste livro é simples: o nosso país. Mas trata-se de pensar Portugal a partir dum quadro mais vasto de movimentos sociais: das invasões francesas aos movimentos socialistas e à grande força do sindicalismo no século XIX, da Iª República ao 25 de Abril de 1974, mas vindo até a momentos da nossa contemporaneidade: o fim do Pacto Social em 1986, a criação da “Gerigonça” (palavra que é criação de uma das figuras da direita e que minou, desde o princípio, a verdade da aliança entre partidos de Esquerda depois da troika e do Governo de Passos Coelho - e a linguagem importa, pois adjectivar assim uma aliança histórica é, sem dúvida, fazer doutrinação); a tese central de que a Revolução dos Cravos começou em África com os movimentos de independência na década de 1960; pensar, enfim, a ditadura de Salazar-Caetano e o Estado Novo à luz da ideologia bonapartista, fonte dos fascismos e, num conspecto crítico sobre finanças, movimentos associativos e revoltas do povo (estatísticas, transcrições de discursos, cruzamento das questões de história social com questões literárias - é magistral o capítulo sobre as Conferências Democráticas do Casino e a Geração de 70, impulsionadora do pensamento socialista em Portugal), muito do que aqui se diz deveria fazer-nos pensar no nosso presente à luz de uma tese verdadeira. Esta: com o intuito claro de as classes detentoras do poder manterem o monopólio económico do país, Portugal participa das grandes tensões de uma Modernidade que tem, na célebre alegoria de Walter Benjamin, o seu emblema: o Anjo da História olha as ruínas do tempo.

Ao integrarem os diversos capítulos deste volume numa grande angular histórica (que lembra as sínteses de Adam Schaff) subordinada a um pensamento social e socialista, e de que não estão ausentes perspectivas da verdadeira social-democracia (o fito de Olof Palme: uma política democrática e cristã, de facto e não de nome), este livro mostra-nos o Estado como instrumento real de afirmação da burguesia e expropriação dos meios de produção autónomos dos trabalhadores. O século XIX é, em Portugal, como na Europa, “o tempo transnacional das Revoluções do Sul”: desenvolvimento do jornalismo, multiplicação da cultura letrada e livresca, dinâmica imparável do movimento corporativo de matriz socialista ou anarquista; revoluções que, no nosso caso, apesar de tardias, põem em confronto, na luta entre quem manda e quem obedece, a Igreja à burguesia ilustrada. Que se defendeu? A burguesia liberal a Utopia como projecto de futuro, Igreja e aristocracia de casta, a contra-revolução, o conservadorismo, a tríade pré-fascista Deus-Pátria-Família, na tentativa de cercear a imaginação como dínamo da acção política.

Esta é, sem dúvida, uma das pedras-de-toque mais instigantes desta Breve História de Portugal: entre a aristocracia militar e fundiária e a burguesia capitalista, a monarquia oitocentista espelha bem uma das traições das elites: foi a substituição de uma classe de linhagem antiga por uma outra classe de linhagem moderna o que veio a suceder-se. A manutenção dos privilégios de classe justifica o combate do século XX: burguesia vs trabalhadores. A Iª República, eivada de um progressismo corajoso (os investigadores vincam bem a ideologia fraternitária, o esforço por conferir à Mulher os mesmos direitos que ao homem se dão), não concretizou essa promessa de Antero: “O cristianismo foi a revolução do mundo antigo. O socialismo será a revolução do mundo moderno.” A classe trabalhadora, o operariado (precisamente a Voz do Operário, fundada em 1889, funciona como símbolo agregador desse espírito crítico - José Mário Branco, em 2019 e Fausto Bordalo Dias, em 2024, ambos foram aí velados, num sinal de inequívoca consciência cidadã) debatem-se, como sublinham Raquel Varela e Roberto Della Santa, com a máquina tentacular da opressão: censura, perseguição das liberdades individuais, index, delação, instituição do medo como camisa de forças de onde os povos se não libertam a não ser por um esforço enorme de dar voz e corpo, sacrificando milhões de vidas, à liberdade como suprema meta da História e dos Povos.

Breve História de Portugal tem capítulos absolutamente marcantes: as páginas dedicadas à primeira greve geral do movimento operário português, a forma clara e directa como os autores explicam a lógica da mais-valia, o móbil da exploração salarial, a lembrança de nomes hoje ignorados pelos portugueses (da deportação do líder da Associação dos Trabalhadores Rurais de Évora, em 1912, José Sebastião Cebola, à morte, em 1972, de Ribeiro Santos, estudante universitário, até às grandes manifestações do professores em 2022-23, sem esquecer as cargas policiais da Ponte 25 de Abril a mando de Cavaco Silva, o rol da indignação e da luta do povo português é aqui rigorosa e apaixonantemente descrito e analisado), tudo converge para que este livro - que seja lido por muitos, por todos - constitua, hoje, em 2024, uma das pedras angulares daquilo que está inscrito na política como possibilidade de construção da Pólis: a Utopia. A explicação do porquê de termos participado na Iª Guerra Mundial; as sucessivas manifestações das classes trabalhadoras contra a carestia de vida (as greves, os desfiles de desempregados em Lagos, os trabalhadores de Setúbal abandonando os seus locais de trabalho contra a especulação do preço do pão; em Aveiro os combates de rua entre pescadores e GNR, esse ano de 1915, como outros, absolutamente movido pela indignação dos pobres), o racionamento, o açambarcamento, as greves sectoriais, a traição de Afonso Costa, o “racha-sindicalistas”, muito do que lemos com Raquel Varela e Roberto Della Santa deve levar-nos a fazer uma pergunta: quando é que tomaremos nós, sem paternalismos de qualquer espécie, o nosso futuro nas nossas mãos? Mas a esta pergunta os autores não respondem… Ou melhor, respondem, mas pelas vozes dos poetas e dos romancistas (dos neo-realistas a Saramago, de Manuel da Fonseca às “Três Marias”); respondem escrevendo as páginas inspiradas sobre Antero e sobre a canção de protesto dos anos 1960/70 e quando, de forma sagaz, no final do livro, transcrevem memoráveis páginas da grande luta pela liberdade: “Qual o coração honesto de trabalhador que não se indignaria ante a ideia de servir de instrumento aos interesses dos seus inimigos naturais contra os seus amigos e irmãos de trabalho?” (p.450).

Se, como disse um dia, Walter Benjamin, “a história não faz nada, não condena nem absolve”, certo é que - como defendem estes empenhados professores, investigadores e autores - “o destino social [só mudou] por meio da autodeterminação, esta sim, foi a revolução nestes últimos duzentos anos”. Em 2024, à beira de uma guerra de contornos que podem ser apocalípticos e quando, mais uma vez, de Trump a Bolsonaro, de Órban a Putin, da China imperialista à Europa refém dos interesses de uma Comissão que se auto-elege em colégio interno, mais do que nunca, ler este livro e livros que nos despertam, é preparar já o fim dos sucessivos “estados de excepção”. Não foi sempre em nome dos “estados de excepção” que, de Hitler à intervenção russa na Ucrânia, das ditaduras da América do Sul a Pol-Pot, da prisão e morte de Rosa do Luxemburgo aos campos de concentração e aos gulag, se defendeu a opressão como vida normalizada? “Precisamos de construir um conceito de história que corresponda à verdade”, disse Benjamin. Raquel Varela e Roberto Della Santa perseguiram esse desígnio digno. 


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt