Uma dupla vantagem
Diz o programa do PS em relação à Saúde, e transcrevemos: “Avaliar a possibilidade de introdução de um tempo mínimo de dedicação ao SNS pelos profissionais de saúde, nomeadamente médicos, na sequência do período de especialização.”
E na sequência desta medida, quem não estivesse na disposição de cumprir esse tempo mínimo de dedicação, teria de indemnizar o Estado.
Quem escreve este artigo, trabalhou cerca de 45 anos no SNS, nunca em exclusividade, mas no que se enquadraria hoje em dedicação plena. Percorreram todas as etapas da carreira médica, alicerçadas em concursos públicos, atingindo o topo e acabando directores de serviço nas suas especialidades. Ambos já retirados, sem quaisquer ambições políticas ou presunção de vir a ter qualquer cargo executivo dentro do SNS.
A ideia da permanência no SNS depois da especialização não é nova. No Estatuto do SNS de 2019 já eram propostos pactos de permanência, reafirmados na revisão de 2022. Nada impede que os hospitais e os respectivos serviços, que fazem formação, façam acordos de permanência para além do tempo da especialização, exigindo, a quem a queira fazer no seu serviço, aí tenha de permanecer mais tempo, a acordar entre as partes. Existirão, seguramente, diferenças de especialidade para especialidade.
Naturalmente que isto não é possível sem que as condições de trabalho e remuneratórias melhorem substancialmente. É importante que se saiba que os jovens especialistas, tomam posse como Assistentes Hospitalares, mas só passados cinco anos podem concorrer ao grau seguinte, que hoje se chama Assistente Graduado. E só três anos depois, podem concorrer ao, e eventualmente alcançar o, grau máximo de Assistente Graduado Sénior.
Continuar, mais dois anos a trabalhar em serviços públicos, não ficando imediatamente autónomos e sem supervisão, é a única maneira de os fazer progredir com segurança, ir ganhando experiência, tornando-os cada vez mais autónomos para casos clínicos progressivamente mais graves e complexos.
Um dos signatários é cirurgião, foi responsável pela formação de muitos especialistas, e nunca abdicou de saber-lhes atribuir, mesmo depois de acabarem o internato, diferentes responsabilidades à medida que os via progredir e se diferenciarem. E este tipo de progressiva diferenciação só é possível fazer-se dentro do SNS. Ficar mais tempo neste tipo de organização é fundamental para assegurar mais competência para tratar os doentes.
Mas todo este trabalho é pago, tal como foi pago ao longo do período de formação anterior. E deve (TEM) de ser pago com remunerações justas e dignas.
Vamos agora ver as vantagens para o SNS. Em Portugal 99,2% dos especialistas médicos são formados na vertente pública, pagos pelo Orçamento do Estado, e apenas nos locais onde a Ordem dos Médicos entende reunirem-se as condições para o fazer. Nenhum médico é obrigado a ser especialista, mas se for essa a sua opção, concorrem aos locais de formação, e recebem salários.
Ambos os signatários fizeram esse percurso, adoraram ser internos da especialidade, têm a noção clara que foram fundamentais no funcionamento do SNS, apesar de mal pagos, mas também sabem que o seu papel foi progressivamente mais importante à medida da sua progressiva diferenciação. Mas também sabem que à medida que os doentes e as doenças eram mais graves, lhes dava muita tranquilidade poderem recorrer à experiência dos mais velhos, integrados numa vasta equipa.
Para o SNS, ter nos seus serviços jovens especialistas que acabou de formar, permite garantir recursos humanos, que de outra maneira poderia perder imediatamente, com aliciamentos muito facilitados por um mercado onde os privados oferecem melhores condições e o Estado não soube, ou não quis, adaptar-se à concorrência. E como ficou dito acima, é bom para os jovens especialistas, bom para o SNS, mas sobretudo óptimo para os nossos doentes.
Claro que medidas como estas, devem ser articuladas com a Ordem dos Médicos e com os Sindicatos, e de acordo com os direitos garantidos pela nossa Constituição. Mas lembremos, a reforma estrutural foi, para nós, uma das mais importantes do nosso SNS.
Introduzida em Setembro de 2014, num Governo PSD/CDS, pelo ministro Paulo Macedo. A criação dos Centros de Referência, para tratamento de doenças raras ou de enorme complexidade. Foram exigidas condições infra-estruturais, técnicas e humanas para que serviços médicos pudessem ser considerados competentes para tratar certas doenças. Esta legislação não foi contestada por ninguém, concorreram a CR imensos serviços hospitalares, e foram acreditados apenas aqueles que reuniram as exigências previstas na lei. Dos 112 CR até agora acreditados apenas dois pertencem a hospitais privados, não por acaso, numa patologia em que o público tem também uma oferta talvez exagerada.
Os portugueses têm de saber a razão da importância dos CR. Que para certas doenças raras e/ou complexas, só devem recorrer a que tem casuísticas mínimas e formas organizativas para garantir competência. E para garantir a formação! Não existe formação nos privados. Porque não têm competências e, sobretudo, porque não é essa a sua vocação!
A capacidade formativa acontece na esmagadora maioria dos casos dentro do SNS. Por isso é fundamental mantê-lo e aperfeiçoá-lo. Estes CR, formam especialistas com custos enormes. Mantê-los, podendo tirar partido de os ter formado, parece-nos uma medida correta e justa. Provavelmente muitos deles quererão, depois de essa vivência, manter-se no SNS por realização profissional, mas terão direito a ter outras opções após esse período.
Para se formarem especialistas, depois de adquirida a licenciatura, são precisos muitos anos. De Internato Geral e de Internato da Especialidade. Internatos que são remunerados, e obrigatoriamente feitos no SNS. Se os privados os querem vir buscar imediatamente após adquirirem o título de especialistas, deviam ter de indemnizar o Estado das despesas efectuadas e aceitarem que contratam especialistas com menos experiência, o que, nalgumas especialidades, pode ser um factor dissuasor. A Ordem dos Médicos devia concordar com esta medida, pois ela também beneficia a qualidade da Medicina oferecida aos nossos doentes.
Todos concordam (ou tiveram de aceitar) que, os pilotos da Força Aérea, tenham de ficar 12 anos na instituição antes que as companhias comerciais os venham buscar para os seus quadros. E formar um piloto no curso básico demora dois anos, em jactos de alta performance muitos mais, e a um preço altíssimo. As regras são essas, e é preciso arranjar novas regras no SNS.
Avaliar essa possibilidade e conseguir implementá-la é importante para ter recursos humanos no SNS. Claro que não é uma medida única, outras serão necessárias, entre elas, reformular as carreiras médicas voltando a dar-lhes um prestígio perdido, garantir a inovação, melhorar as condições de trabalho, apostar na investigação, regular as horas extraordinárias e evidentemente melhorar os salários.
A grande preocupação desta medida, é conseguir que os portugueses queiram recorrer ao SNS, para tratamento de doenças graves e complexas, não apenas porque é um serviço, total ou tendencialmente gratuito, mas porque sabem que é aí que podem, com mais probabilidade, vencer as suas doenças.
Sabemos que todos os anos se formam no SNS cerca de 1500 especialistas nas mais variadas especialidades. Se esta medida for contemplada, a partir do segundo ano desta regra ser implementada, haverá sempre mais profissionais especializados no SNS.
Não será necessário manter esta medida para sempre, poderá até ser reduzida a médio prazo. Dos cinco anos obrigatórios para um especialista poder concorrer ao grau seguinte da carreira, chamado Assistente Graduado, propor que os primeiros dois sejam obrigatoriamente exercidos no SNS, em Especialidades a definir, parece ser uma medida socialmente justa, benéfica para a qualidade da medicina praticada, e por isso, em última análise, óptima para os doentes. A Ordem dos Médicos devia apoiá-la, tal como não discordou com a implementação dos CR.
Finalmente um último argumento. Os recém-especialistas, nesses anos não são obrigados à exclusividade no SNS. A exclusividade deve ser apenas uma opção individual, e eventualmente premiada: nada impede esses especialistas de poderem trabalhar em períodos que entenderem no privado ou no social.
Os dois signatários deste artigo de opinião pertenceram ao primeiro curso de medicina que fez o chamado Serviço Médico à Periferia em 1975, na altura um ano obrigatório para aqueles que quisessem entrar depois nas vagas da especialidade. Esse ano em que os médicos recém-formados foram para todo o País, no continente e nas regiões autónomas, foi um precursor do SNS. Permitiu uma cobertura médica de todo o País, e durou meia dúzia de anos.
Na situação actual do nosso SNS, pedir aos jovens especialistas a permanência no SNS é uma reforma estrutural importante e necessária, tal como a criação dos CR o foi. Discuti-la na campanha eleitoral, com realismo e sem demagogias, pode ser esclarecedor, e os portugueses que pagam com os seus impostos, através do SNS, a formação dos novos especialistas, devem poder usufruir desses quadros, num curtíssimo período. Esta medida é importante, e pode garantir ao SNS recursos fundamentais. E ao mesmo tempo garante mais qualidade aos jovens especialistas, que mantendo-se mais tempo numa estrutura funcional baseada na hierarquia da competência e na supervisão, garantem aos doentes mais qualidade nos actos clínicos praticados. Porquê adiá-la?
Pensamos ser possível uma discussão serena destas ideias, sem acusações ridículas e demagógicas de serem estalinistas.